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Processo n.º 1016/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, A. veio interpor dois recursos, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais requisitos se encontram presentes, relativamente aos recursos interpostos.
(…) Face à delimitação do objeto dos recursos, a que procede a recorrente, resulta claro que a mesma não pretende a sindicância da constitucionalidade de um verdadeiro critério normativo – norma ou interpretação normativa – que, em nenhum momento, enuncia, mas a apreciação das decisões jurisdicionais concretas, no aspeto da sua alegada desconformidade com preceitos constitucionais e infraconstitucionais.
Na verdade, para garantir a admissibilidade de cada um dos recursos de constitucionalidade, deveria a recorrente ter autonomizado e enunciado um critério normativo - enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica - que tivesse sido utilizado como ratio decidendi pela respetiva decisão recorrida, reportando-o a uma determinada disposição legal específica.
Tal enunciação teria necessariamente de corresponder a um dos sentidos extraíveis da literalidade do(s) preceito(s) escolhido(s) como suporte da norma ou interpretação normativa colocada em crise, devendo ser apresentada, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, pudesse reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral ficassem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Porém, no caso, verifica-se que, relativamente ao recurso interposto em 16 de maio de 2013, a recorrente, não obstante se referir, em vários momentos, a interpretações normativas, não apresenta qualquer questão que possa considerar-se consubstanciar um enunciado de uma norma ou de uma interpretação normativa. Pelo contrário, resulta claro que, sob a denominação de “interpretação”, a recorrente expõe as circunstâncias concretas do caso, pretendendo, dessa forma, obter a sindicância do próprio acórdão recorrido, na dimensão de apreciação dos factos concretos e juízos subsuntivos que os envolvem.
A asserção precedente resulta, aliás, confirmada pela circunstância de a recorrente afirmar que “a decisão (…) violou o texto Constitucional”.
Nestes termos, verificando-se que, ainda que sob a aparência de uma dada “interpretação”, as questões que a recorrente coloca correspondem a uma pretensão de sindicância da própria decisão jurisdicional, teremos de concluir pela inadmissibilidade do recurso, uma vez que tal sindicância se encontra subtraída à competência do Tribunal Constitucional, face à inexistência, no nosso sistema jurídico, da figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
A este propósito, pode ler-se, no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt ), o seguinte:
“ (…) cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (dircta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…).”
No que concerne ao recurso interposto em 4 de julho de 2013, são aplicáveis idênticas considerações.
Na verdade, não obstante a recorrente se referir a uma “interpretação conferida ao artº 430 do CPP”, não enuncia um verdadeiro sentido interpretativo de qualquer número ou segmento de tal preceito, limitando-se a repetir a argumentação já utilizada como fundamento da arguição de nulidade invocada, construindo, desta forma, a questão de constitucionalidade com base na sua apreciação concreta da situação - nomeadamente a sua convicção de que o tribunal de recurso se absteve de se pronunciar sobre o requerimento de renovação de prova – independentemente de tal apreciação não ter sequer merecido adesão por parte do tribunal a quo, que expressamente concluiu que “dado que não se verificavam os pressupostos (a decisão recorrida não padecia de qualquer dos vícios previstos no art. 410º nº 2) para haver lugar à renovação da prova, esta questão estava prejudicada (…) não competia ao tribunal conhecer de quaisquer outras questões, para além daquelas sobre as quais se pronunciou.”
Pelo exposto, demonstrada que se encontra a natureza não normativa do objeto de ambos os recursos interpostos, torna-se ociosa a apreciação sobre os restantes pressupostos de admissibilidade, atenta a sua necessária verificação cumulativa, sendo, desde já, possível, concluir pela inadmissibilidade dos recursos.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta a reclamante a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, referindo, em síntese, que as normas, cuja sindicância de constitucionalidade pretende, estão especificadas de forma suficiente. Porém, ainda que assim não se considerasse, deveria ter sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC.
Mais refere a reclamante que as questões de constitucionalidade foram suscitadas, no tempo e modo oportunos, tendo o Tribunal da Relação de Évora proferido pronúncia sobre tais questões, ainda que de indeferimento das pretensões formuladas.
Nestes termos, estando em causa a constitucionalidade da interpretação das normas indicadas, no requerimento de interposição de recurso, conclui a reclamante que deverá prosseguir o recurso, havendo lugar à notificação prevista no artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC.
4. O Ministério Público, em resposta, pugna pelo indeferimento da reclamação.
Refere que as duas questões de constitucionalidade enunciadas pela recorrente, no requerimento de interposição do recurso – momento em que se fixa o respetivo objeto – não têm natureza normativa, não constituindo objeto idóneo de um recurso de constitucionalidade.
Acentua que, relativamente ao segundo recurso interposto, a questão enunciada não encontra sequer reflexo na decisão recorrida. Na verdade, o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre a renovação da prova, porque essa questão estava prejudicada, o que é absolutamente diferente daquilo que a recorrente afirma.
Quanto à afirmação de que o Tribunal da Relação se pronunciou sobre questões de constitucionalidade, refere o Ministério Público que não existe qualquer apreciação sobre questões de constitucionalidade normativas no acórdão recorrido, muito menos que tivessem sido suscitadas pela recorrente. De facto, o acórdão recorrido limitou-se, neste contexto, a descrever as concretas circunstâncias do caso, concluindo que não ocorreu a violação de princípios constitucionais.
Nestes termos, conclui o Ministério Público que deve ser indeferida a reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pela reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
De facto, refere a reclamante que lhe deveria ter sido dirigido um convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 75.º-A, n.os 5 e 6, da LTC.
Não lhe assiste, porém, razão.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.os 5 e 6, da LTC, só deve ter lugar quando faltam requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito – e não quando, em vez de uma omissão, existe uma indicação errada – no sentido de não legalmente admissível – desses elementos. Deste modo, se do requerimento de interposição de recurso ressalta a natureza não normativa do respetivo objeto – como no presente caso - encontra-se vedada a possibilidade de o recorrente alterar tal objeto, em peça processual ulterior, não tendo, por isso, qualquer fundamento legal a expetativa de poder beneficiar, para esse efeito, de um convite ao aperfeiçoamento.
Face ao alegado na reclamação, mais se enfatiza que a natureza não normativa do objeto dos recursos de constitucionalidade interpostos foi apreciada com base na enunciação plasmada nos respetivos requerimentos de interposição. Assim sendo, não releva qualquer eventual suscitação prévia de questões de constitucionalidade, por parte da reclamante, nem a posição que o tribunal recorrido veio a assumir sobre as mesmas, razão por que a decisão sumária não procedeu a tal análise. De facto, como pode ler-se em tal decisão, “demonstrada que se encontra a natureza não normativa do objeto de ambos os recursos interpostos”, seria “ociosa a apreciação sobre os restantes pressupostos de admissibilidade”, posição que secundamos.
Pelo exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação.
III - Decisão
6. Nestes termos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 12 de dezembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de fevereiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.