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Proc. nº 272/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO deduziu acusação contra o arguido J..., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de desobediência previsto e punível pelo art. 388º, nº 1, do Código Penal de 1982, na sua primitiva redacção, ou pela alínea a) do nº 1 do art. 348º do mesmo diploma, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, consoante o regime que concretamente se viesse a mostrar mais favorável, disposições aplicáveis por força do art. 59º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro.
O arguido veio a responder em processo comum, com intervenção de juiz singular, no Tribunal Judicial da Comarca de Ovar.
Por sentença de 10 de Outubro de 1996, foi condenado na pena de multa de 60 dias, à taxa diária de 600$00, perfazendo a pena global de
36.000$00, tendo-se provado que o mesmo tinha em construção um pavilhão com a
área de 120 metros quadrados, sem estar munido com a necessária licença camarária. Tendo havido embargo da referida obra por acto dos fiscais camarários, tal embargo foi ratificado por deliberação de 9 de Junho de 1994, tendo mais tarde a Câmara indeferido o pedido de licenciamento e cominado ao arguido a obrigação de proceder à demolição da construção. A demolição, porém, não fora levada a cabo pelo arguido no prazo indicado.
Inconformado com esta sentença, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, recurso que foi admitido.
Na motivação desse recurso, o arguido suscitou a questão da inconstitucionalidade do art. 59º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, norma que estabelece que o desrespeito dos actos administrativos que determinem, entre outros factos, a demolição é considerado crime de desobediência nos termos do art. 388º do Código Penal. Desde logo sustentou que aquele diploma fora publicado para além do prazo de 90 dias constante da correspondente lei de autorização legislativa (Lei nº 58/91, de 13 de Agosto). Além desta inconstitucionalidade orgânica, considerou que a mesma norma enfermava de inconstitucionalidade material, não podendo admitir-se a criminalização da omissão de acatamento de uma ordem administrativa, quando a 'desobediência' a uma condenação judicial numa prestação de facto não é criminalizada (por exemplo, condenação na demolição de uma obra). Acrescia ainda a circunstância de o mesmo Decreto-Lei nº 445/91 prever que, em caso de recusa de demolição, esta possa ser realizada pela autoridade administrativa. Haveria, assim, ofensa do princípio constitucional da proporcionalidade consagrado no art. 266º da Lei Fundamental.
Por acórdão de 19 de Março de 1997, a Relação do Porto negou provimento ao recurso. Considerou que o momento relevante para aquilatar sobre a utilização tempestiva pelo legislador governamental de uma autorização parlamentar era o da aprovação do diploma autorizado em Conselho de Ministros, conforme jurisprudência fixada pelo Tribunal Constitucional. Quanto à questão da inconstitucionalidade material, pronunciou-se deste modo o Tribunal da Relação:
' A este respeito, como doutamente sustenta o M. Público na 1ª instância, citando Gomes C. e Vital Moreira, CRP anotada, diz-se que o princípio constitucional da proporcionalidade prende-se com a questão da legitimação da restrição de direitos fundamentais segundo o qual «são ilegítimas as medidas desnecessárias, inadequadas ou desproporcionadas ao objectivo constitucionalmente fixado nos estados de excepção constitucional». A sujeição da administração à imparcialidade na aplicação do princípio da proporcionalidade consiste em que aquela «deve proceder com imparcialidade para verificar se a prevalência do interesse público exige sacrifício total ou parcial dos interesses particulares» (obra citada). Entendido assim o referido princípio, conclui-se que a possibilidade que a administração tem de proceder, ela própria, à demolição da obra, não contende com a possível integração do crime de desobediência pela conduta do arguido ao não acatar a ordem de demolição que legitimamente lhe foi dada. Na verdade, com o dispositivo legal que prevê a dita conduta como crime de desobediência, pretende-se tutelar o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública, enquanto que com o poder conferido à autoridade administrativa de executar, ela própria, a demolição, pretende-se conferir à mesma autoridade um direito previsto no art. 149º do C. do Procedimento Administrativo com a finalidade de melhor e mais rapidamente dar satisfação às funções que lhe competem [...]. O crime baseia-se na desobediência a uma ordem legítima, que podia ter sido a de não continuação da obra; a demolição da obra, por acto próprio da entidade administrativa, baseia-se no enunciado princípio da executoriedade do acto administrativo.' (a fls. 93-94)
Ainda inconformado, interpôs o arguido recurso de constitucionalidade ao abrigo do art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 102 vº.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1ª O art. 59º do DL 445/91 de 20 de Novembro é inconstitucional na parte em que considera crime de desobediência um particular não proceder à demolição de uma construção após notificação para tal da câmara municipal;
2ª A lei ordinária já prevê para essas situações a demolição por iniciativa da própria câmara municipal, embargo e contra-ordenação de 100.000$00 a
20.000.000$00. O DL 445/91 veio também tipificar essa conduta como crime;
3ª O legislador ordinário deve respeitar a 'proporcionalidade' nas suas três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade;
4ª A defesa do interesse público deve ter em conta os valores que em concreto estão em jogo, e não deve ser feita por leis que sejam totalmente desajustadas à defesa desses valores, e também desajustados do sistema jurídico no seu todo;
5ª O não acatamento das decisões dos tribunais, como órgãos de soberania, não constitui crime de desobediência, salvo se a decisão foi com essa cominação;
6ª O citado preceito viola o disposto no art. 266º da Constituição da República Portuguesa.' (a fls. 107 vº - 108)
O Ministério Público, por seu turno, concluiu a sua contra-alegação do seguinte modo:
' A norma constante do artigo 59º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na parte em que estatui que o desrespeito dos actos administrativos que determinem a demolição é considerado crime de desobediência, não é inconstitucional, por a punição criminal não se apresentar como manifestamente excessiva, não havendo, assim, razão para censurar o uso feito pelo legislador da sua liberdade de conformação legislativa.' (a fls. 118)
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do pedido.
II
4. O Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, alterado pela Lei nº 29/92, de 5 de Setembro, e pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, disciplina o licenciamento de obras particulares.
De harmonia com o art. 1º, nº 1, a), deste diploma encontram-se sujeitas a licenciamento municipal 'todas as obras de construção civil, designadamente novos edifícios e reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações, e ainda os trabalhos que, não possuindo natureza exclusivamente agrícola, impliquem alteração da topografia local'.
Para tutelar esta exigência de licenciamento municipal, o art. 54º do mesmo diploma tipifica situações de ilícito de mera ordenação social e os arts. 57º e 58º prevêem a atribuição de poderes administrativos destinados a reprimir as violações de legalidade (decretamento de embargos administrativos à construção; decretamento da demolição da obra ilegalmente construída; imposição do dever de repor os terrenos nas condições existentes antes do início das obras).
O art. 59º do Decreto-Lei nº 445/91 - norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente durante o processo - estatui:
' O desrespeito dos actos administrativos que determinem o embargo, a demolição, a reposição do terreno na situação anterior à infracção ou a entrega do alvará de licença de construção é considerado crime de desobediência, nos termos do artigo 388º do Código Penal' (a referência é feita à versão originária do Código Penal de 1982; veja-se hoje o art. 348º da versão alterada pelo Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março).'
Acrescente-se que este artigo foi aprovado na sequência de expressa autorização legislativa (art. 2º, 7), da Lei nº 58/91, de 13 de Agosto.
5. Como refere Maia Gonçalves - em anotação ao art. 348º da nova versão do Código, Código Penal Português Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 11ª ed., 1997, págs. 893-894 - o art. 388º da versão originária do Código de 1982 punia explicitamente a conduta desobediente ainda que a incriminação 'não estivesse prevista em outras disposições legais', na linha do Projecto de 1966. Tal solução era excessiva, como reconhece este comentador, visto que se incriminava a desobediência 'a toda e qualquer ordem da autoridade'. Na Comissão de Revisão do Código Penal foi discutida a bondade da solução consagrada em 1982, tendo um dos membros, o Conselheiro José de Sousa e Brito, defendido a necessidade de restrição do âmbito de aplicação daquele artigo, pois que era 'excessivo proteger desta forma toda a ordem'. Contra a posição assim expressa foram invocados argumentos relativos ao tipo de Administração Pública existente e à sua prática (segundo a acta da 35ª Sessão da Comissão, manifestaram posições opostas Costa Andrade e Figueiredo Dias) acabando por ser dada nova redacção à norma incriminatória, nos seguintes termos que se acham no art. 348º da nova versão do Código:
'1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2. A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.'
Acrescente-se que, em recente tentativa de revisão do Código Penal, não aprovada pela Assembleia da República, se propunha a eliminação desta alínea b) do nº 1 do art. 348º, sendo aditadas duas novas alíneas com o seguinte teor:
'b) A ordem ou o mandado se destinarem a dar cumprimento a decisão judicial e o agente for advertido de que a desobediência constitui crime; ou' 'c) Da desobediência resultar perigo para a vida, a integridade física ou a liberdade de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado' (cfr. a justificação desta solução na exposição de motivos do anteprojecto de 1996 publicado em anexo ao estudo de Rui Carlos Pereira, Código Penal: as ideias de uma revisão adiada, in Revista do Ministério Público, nº 71, págs. 70 e 83).
6. O recorrente considera ferida de inconstitucionalidade a disposição legal que comina, no caso, a desobediência - o art. 59º do Decreto-Lei nº 445/91 - por violação do princípio da proporcionalidade ou da necessidade de incriminação.
Nas suas alegações sustenta que a Administração Pública pode reprimir as infracções à legislação sobre licenciamento de obras particulares, nomeadamente a construção de obra sem licença camarária, através de pesadas coimas, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, encontrando-se na panóplia de medidas repressivas o embargo administrativo e a substituição da Administração ao infractor na demolição ou destruição da obra ilegal. Seria, pois, excessivo, além dessas medidas, criar uma incriminação por desobediência paa a situação de desrespeito pelo infractor do acto administrativo pertinente, in casu, a intimação para demolição em certo prazo.
Procederá a sua posição?
É o que importa ver.
7. Será censurável, do ponto de vista constitucional, a opção de criminalização do acto de não acatamento da intimação que deu origem ao presente processo?
Para responder a esta questão importará chamar à colação o art. 18º, nº 2, da Constituição, que dispõe que 'a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionais protegidos'.
A partir de normas como a presente tem a doutrina penalista procurado fundar a necessidade da incriminação em categorias ou princípios como o da dignidade penal da conduta sancionada ou da carência de tutela penal, ou em ideias de sistema funcional, nomeadamente a da exigência racional de fazer penetrar as decisões de valor político-criminal no sistema do direito penal
(para uma notícia sobre a controversia dogmática veja-se Manuel da Costa Andrade, A «Dignidade Penal» e a «Carência de Tutela Penal» como referências de uma Doutrina Teleológico-Racional do Crime, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, 2º tomo, 1992, págs. 173 e seguintes). A partir da exigência de necessidade da pena e do próprio carácter fragmentário, instrumental ou simbólico da tutela penal, sustenta-se na doutrina penalista que o direito penal só pode intervir para assegurar uma protecção, necessária e eficaz, dos bens jurídicos fundamentais, a ponto de se afirmar que do disposto no nº 2 do art.
18º da Constituição 'decorre a proibição da intervenção do direito penal ao serviço de finalidades transcendentes e moralistas' (Costa Andrade, artigo e revista citada, pág. 183; no mesmo sentido, Alberto Silva Franco, Do Princípio da Intervenção Mínima ao Princípio da Máxima Intervenção, na mesma Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, 1996, Tomo 2, págs. 175 e segs.).
8. Na jurisprudência do Tribunal Constitucional encontram-se casos em que se tem debatido se certa norma incriminatória viola ou não os princípios da justiça e da proporcionalidade, tal como se extraiem das normas do art. 2º e do nº 2 do art. 18º da Constituição, ou ainda o princípio da culpa que se sustenta poder retirar-se dos arts. 1º e 25º da Lei Fundamental.
No acórdão nº 634/93 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º volume, págs. e seguintes) julgou-se inconstitucional a norma do art. 132º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei nº
33252, de 20 de Novembro de 1943, na parte em que estabelecia 'a punição como desertor daquele que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar, quando tal tripulante não desempenhe funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do mesmo navio'. Escreveu-se nesse acórdão, a propósito do confronto da norma incriminatória com 'o princípio da subsidariedade do direito penal (ou princípio da máxima restrição das penas)':
É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que correspondem à chamada 'constituição penal'
(artigos 27º e seguintes da Constituição). Todavia ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18º, nº 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2º da Lei Fundamental. Segundo Jescheck (Tratado de Derecho Penal - Parte General,trad., Bosch, 1986, pág. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios (proibição do excesso), também com consagração constitucional no direito alemão, refere-se ao conceito de Estado de direito material e foi introduzido expressamente no direito criminal como pressuposto de determinação das medidas penais. Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da liberdade resulta a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para
«assegurar a convivência humana na comunidade». Como é sabido, entre nós, a consagração constitucional destes princípios não merece contestação desde a revisão constitucional de 1982. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol 1º, pág. 170), o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:
1) princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
2) princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);
3) princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos). Ora, se parece controversa a afirmação de que a norma incriminadora em causa viola o princípio da proporcionalidade na primeira destas decorrências, e se não parece ainda totalmente líquido que o viola na segunda, já é indiscutível que o viola na terceira. Com efeito, ao tornar criminosa a conduta de um trabalhador de bordo cujas funções não estão directa e normalmente relacionadas com a segurança do navio, mas apenas têm a ver com a actividade económica através dele exercida, a norma em causa revela-se excessiva.
É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, «num Estado de Direito material, de raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem» (O sistema sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política criminal, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, págs.806/807).
Na sequência de outros acórdãos no mesmo sentido veio mesmo a ser declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessa parte do indicado artigo através do acórdão nº 527/95 (in Diário da República, I Série-A, nº 260, de 10 de Novembro de 1995).
Noutros casos, porém, entendeu-se que não violavam os princípios da justiça e da proporcionalidade certas normas incriminatórias, dada a dignidade dos bens jurídicos por elas tuteladas e a necessidade da intervenção do direito penal.
Assim, no acórdão nº 441/94 (in Diário da República, II Série, nº
249, de 27 de Outubro de 1994) foi considerado que a incriminação do tráfico de estupefacientes para consumo não violava o princípio da culpa, consagrado, conjugadamente, nos arts. 1º e 25º, nº 1, da Constituição, o qual se exprimiria, a diversos níveis, no direito penal, nomeadamente vedando 'a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética'.
Por outro lado e a propósito da cominação de certas penas, concretamente, no que toca a certas molduras penais no direito penal militar, ou da cominação da pena acessória de inibição da faculdade de condução quanto a condutores de veículos automóveis agindo sob o efeito do álcool, houve a preocupação de confrontar as soluções legais com o princípio constitucional da proporcionalidade, tendo-se concluído no sentido da inconstitucionalidade nas primeiras situações (cfr., entre outros, os acórdãos nºs. 370/94, no Diário da República, II Série, nº 207, de 7 de Setembro de 1994, 958/96, no mesmo Diário e Série, nº 293, de 19 de Dezembro de 1996, com referência às molduras penais dos crimes previstos nos arts. 203º, alínea a), e 204º, alínea c), do Código de Justiça Militar, respectivamente) e da não inconstitucionalidade nas segundas
(cfr. entre outros, os acórdãos nºs. 667/94, 73/95, 143/95, 234/95 e 237/95, publicados no Diário da República, II Série, nº. 47, de 24 de Fevereiro de 1995, nº 135, de 12 de Junho do mesmo ano, nº 140 de 20 do mesmo mês e ano e, nº 154, de 6 de Julho de 1995, respectivamente; no último destes acórdãos, afirmou-se que não podia 'considerar-se constitucionalmente imposta uma correspondência ou coincidência entre os limites máximos ou mínimos das sanções principais e os das acessórias', pois que se tratava 'de uma matéria em que a liberdade do legislador é muito ampla, sendo compreensível que a sanção acessória de inibição de faculdade de condução se configure como especialmente adequada aos fins de prevenção geral e especial, o que justificará a amplitude da moldura abstracta de inibição').
9. Nas contra-alegações que apresentou no presente recurso, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, depois de recordar a afirmação constante do citado acórdão nº 634/93 de que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade, só podendo a liberdade de conformação legislativa ser limitada em casos em que a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva, interroga-se sobre se não ocorrerá tal excesso no caso concreto em análise, visto a Administração Pública poder, ela própria, realizar a demolição, em caso de não acatamento pelo particular de intimação feita nesse sentido, sendo certo que a conduta do infractor é já sancionada no plano do ilícito de mera ordenação social.
A esta interrogação responde de forma negativa, nos seguintes termos:
'... O que o legislador claramente pretende, e com boas razões, é que seja o autor da obra a demolir o que ele próprio construiu em desconformidade com as regras do licenciamento, surgindo a hipótese de demolição pela entidade ordenante, tendo em vista a necessária reposição da legalidade, como solução de recurso [...] Na situação em apreço, a ordem de demolição, conferida ao presidente da câmara municipal pelo artigo 58º do Decreto-Lei nº 445/91 [...] poderia constituir praticamente letra morta, e assim abalado o sentimento de confiança no direito, caso o seu não acatamento não fosse sancionado criminalmente'. (a fls. 116-117 dos autos)
Afigura-se-nos de acolher este juízo.
De facto, as necessidades de ordenamento urbanístico e de defesa do ambiente justificam a opção do legislador pela exigência de licenciamento municipal das obras de construção particular, sancionando-se a prática de actividades de construção não licenciadas através de mecanismos do ilícito de mera ordenação social, do embargo administrativo e da intimação para demolição ou para adopção de outra conduta positiva adequada ao caso.
A opção de criminalização tomada pelo legislador quanto ao não acatamento da ordem de demolição por parte do infractor não se afigura violadora dos princípios da justiça e da proporcionalidade.
Na verdade, a Administração não tem de manter serviços dimensionados para proceder sistematicamente a tais demolições, nem é obrigada a celebrar contratos de prestação de serviço com entidades particulares para levar a cabo essas demolições. Não é exigível que a Administração tenha de realizar tais obras a expensas suas, em caso de desobediência do particular, sendo depois obrigada a recorrer à via judicial para ser compensada dos gastos que teve de realizar para proceder à demolição.
Nem se diga que ofende o princípio da igualdade a criminalização estabelecida nesta situação, face à não criminalização da atitude do réu de não acatamento de uma decisão judicial que ordene uma demolição. No primeiro caso é indubitavelmente o interesse público da Administração que está em causa e os interesses gerais da comunidade tutelados pelos mecanismos de licenciamento de obras particulares. No segundo caso, trata-se, em regra, de um mero conflito entre dois particulares, dispondo os tribunais de meios coercitivos na fase de execução de prestação de factos, mas pondo-se a cargo do exequente, movido pelo seu interesse particular na execução da sentença ou outro título executivo, o
ónus de realização da demolição, substituindo-se ao executado e suportando os inerentes custos, podendo depois a execução converter-se em execução para pagamento de quantia certa para o exequente se ressarcir do que tiver adiantado e dos prejuízos sofridos (cfr. arts. 933º, 935º, 936º e 937º, do Código de Processo Civil).
Não estando obrigado o legislador a criminalizar a conduta de desobediência à intimação administrativa de demolir, a sua liberdade de conformação, ao optar pela edição do referido art. 59º, não traduziu uma actuação injusta, desnecessária ou desproporcionada. A circunstância de existir, também, ilícito de mera ordenação social - sancionando-se a construção sem licença pela sujeição do infractor a coimas - não pode servir para considerar injusta ou desproporcionada esta solução de incriminação, sendo frequente o concurso de normas criminais e de ilícito de mera ordenação social relativamente a condutas entre si relacionadas, no âmbito de certa matéria jurídica.
10. Improcede, assim, o presente recurso.
III
11. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa