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Processo n.º 204/14
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Centro de Arbitragem Administrativa, em que é reclamante o Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira e reclamado o Cabeça de Casal da Herança de A., o primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido em 03/01/2014 pelo Centro de Arbitragem Administrativa, que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional interposto pela ora reclamante.
2. O cabeça-de-casal da herança de A. apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular tendo em vista pronúncia sobre um acto de liquidação de imposto de selo, no valor de € 531,65. Esse valor foi liquidado sobre o valor patrimonial tributário de € 106.330,00, correspondente ao 2º andar com utilização independente e afecto a habitação, de um prédio que compreende 10 andares com utilização independente, cujo valor patrimonial tributário (VPT) foi determinado separadamente, nos termos do disposto no artigo 7º, nº 2, alínea b), do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI). O prédio não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal. A Autoridade Tributária considerou, uma vez que nove dos dez andares e divisões com utilização independente têm afectação habitacional e o somatório dos respectivos VPT perfazia o valor de € 1.499.900,00, havia lugar a incidência de imposto de selo. Assim, do ponto de vista da Autoridade Tributária, para um prédio não constituído em regime de propriedade horizontal, o critério para a determinação da incidência do imposto de selo é o VPT global dos andares e divisões destinadas a habitação. A questão decidida pelo Tribunal Arbitral foi, pois, a de saber, com referência a prédios não constituídos em regime de propriedade horizontal, integrados por diversos andares e divisões com utilização independente, das quais algumas com afectação habitacional, qual o VPT relevante: ou o correspondente ao somatório do valor patrimonial tributário atribuído às diferentes partes ou andares (VPT global) ou, antes, o VPT atribuído a cada uma das partes ou andares habitacionais. O Tribunal arbitral entendeu o seguinte:
«O critério pretendido pela AT, de considerar o valor do somatório dos VPT atribuídos às partes, andares ou divisões com utilização independente, com o argumento do prédio não se encontrar constituído em regime de propriedade horizontal, não encontra sustentação legal e é contrário ao critério que resulta aplicável em sede de CIMI e, por remissão, em sede de IS.
Ao que acresce o facto da própria lei estabelecer expressamente, na parte final da verba 28 da TGIS, que o IS a incidir sobre os prédios urbanos de valor igual ou superior a € 1.000.000,00 - «sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI» (sublinhado nosso).
Assim, a adoção do critério defendido pela AT viola os princípios da legalidade e da igualdade fiscal, bem como assim como, o de prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico formal.
24. No caso dos autos o prédio em causa encontra-se em propriedade vertical e contém 10 andares e divisões com utilização independente dos quais, uma grande parte se destina a habitação, como ficou provado supra. Dado que nenhum dos andares destinados a habitação tem valor patrimonial igual ou superior a € 1.000.000,00, como resulta dos documentos juntos aos autos, conclui-se pois pela não verificação do pressuposto legal de incidência do IS previsto na Verba 28 da TGIS.
No caso do 2º andar, o único em apreço nos presentes autos, o seu valor patrimonial tributário é de € 106.330,00, pelo que, não ultrapassa o valor fixado na norma de incidência.»
3. Desta decisão vem o Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º1 do artigo 70.º da LTC. No requerimento de interposição de recurso alega, em conclusão que a sentença recorrida:
«a) Viola o princípio da legalidade formal consagrado no artigo 103.º, n.º2 da CRP, na interpretação da verba 28.º, n.º1, da Tabela Geral do Imposto de Selo e do artigo 6.º, n.º1 do CIMI de que o conceito de prédio aí referido não é jurídico-formal, mas um conceito material ou substancial. Sem qualquer expressão no direito constituído;
b) A interpretação conforme a Constituição apenas é constitucionalmente admitida em caso de conceitos pluri-significantes ou polissémicos e não quando o sentido e alcance da norma interpretada for inequívoco, como é o caso daqueles a que se referem essas normas do CIMI;
c) Violou assim o princípio da legalidade formal na medida em que, com esses fundamentos, anulou a liquidação efectuada nos termos da verba 28.1 da tabela Geral, a decisão arbitral referida no presente recurso».
4. O requerimento de recurso foi interposto directamente no Tribunal Constitucional. A Relatora, por despacho de 16 de Dezembro de 2013, veio considerar que, apesar de o nº 4 do artigo 25º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) determinar que o recurso de decisões arbitrais, em matéria tributária, seja directamente interposto perante o Tribunal Constitucional, tal preceito encontra-se em contradição com o disposto nos artigos 75º, nº 1, 75º-A, nº 5 e 76º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Assim, revestindo-se esta última de natureza reforçada, por se tratar de uma lei orgânica, a contradição entre a solução normativa fixada pelo nº 1 do artigo 25º do RJAT e o artigo 76º, nº 1 da LTC, resolve-se a favor deste último, em função da manifesta “ilegalidade «próprio sensu»” da primeira, pelo que se impunha a desaplicação da norma extraída do nº 1 do artigo 25º do RJAT e a consequente aplicação do regime processual previsto na Lei do Tribunal Constitucional. Os autos baixaram assim ao tribunal recorrido para o mesmo se pronunciar sobre a admissão do recurso interposto.
5. Por despacho datado de 03/01/2014, o juiz árbitro do Centro de Arbitragem Administrativa não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, com base nos seguintes fundamentos:
“A via de recurso para o Tribunal Constitucional não permite à parte recorrente sindicar a determinação e aplicação de conceitos técnico-jurídicos da norma aplicada ao caso concreto. Entendimento válido, quanto à operação de subsunção das circunstâncias do caso ao quadro normativo em presença, bem assim como na aplicação que a mesma faça directamente das normas de direito infraconstitucional em presença, ou ainda, das normas e princípios constitucionais.
Ora, no caso concreto dos presentes autos a Recorrente não pretende a apreciação de constitucionalidade de uma determinada norma jurídica, nomeadamente da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo (TGIS), sendo que em momento algum colocou em causa a sua constitucionalidade.
Por outro lado, sendo esta a norma jurídica em causa na decisão proferida, a verdade é que este tribunal arbitral não recusou a aplicação dessa norma nem a considerou inconstitucional. Pelo contrário, este tribunal arbitral aplicou a norma em questão ao caso concreto, de acordo com os princípios e fundamentos que se encontram vertidos na decisão arbitral recorrida. Não se encontra, pois, preenchido o requisito da alínea a) do nº 1 do artigo 70º, invocado pela recorrente como fundamento para o presente recurso.
Ao que acresce que, em nenhum momento ao longo do processo, mormente na Resposta apresentada nos autos a ora Recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma. Pelo contrário defendeu a sua aplicação ao caso concreto dos autos. O Tribunal arbitral, por sua vez, aplicou a referida norma e decidiu. O único ponto de desacordo que a recorrente invoca é o facto da Autoridade Tributária ter um entendimento sobre o conceito de «prédio» diferente daquele que a decisão arbitral considerou, sendo certo que este tribunal se limitou a definir tal conceito fazendo aplicação conjugada da norma contida na verba 28.1 da TGIS e dos preceitos do CIMI, aplicáveis por remissão expressa da lei.
Em síntese, na Resposta da Autoridade Tributária, apresentada nos autos não se vislumbra a invocação de qualquer norma concreta que repute de inconstitucional e, como vimos supra, essa invocação devia, desde logo, ter sido suscitada no articulado em causa, de modo a que a mesma fosse uma ratio decidendi da decisão proferida.
É pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade que a respectiva questão de constitucionalidade normativa tenha sido suscitada perante o Tribunal a quo, em termos deste verificar e estar vinculado ao seu conhecimento, o que não se afigura existir no caso concreto.
A Recorrente fundamenta o seu recurso na alínea a), do nº 1 do artigo 70º da LTC, preceito do qual resulta que cabe recurso para o TC das decisões dos tribunais que «recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade».
Ora, é evidente que tal fundamento não se verifica porquanto a decisão arbitral proferida não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade.
Pelo que, o fundamento invocado para sustentar o recurso não se verifica. A questão é que, o verdadeiro propósito da recorrente é sindicar o sentido da aplicação das normas do CIS bem como do CIMI, como resulta da decisão arbitral proferida, Porém, esse propósito, conforme sobejamente exposto supra, não cabe no âmbito do recurso de constitucionalidade.
Ao longo das conclusões e do próprio requerimento fundamentador do recurso não se vislumbra qual a norma jurídica concreta cuja bondade constitucional a Requerente pretenda analisar ou aferir.
A ora Recorrente não suscitou apreciação da questão da constitucionalidade de qualquer norma da TGIS, como uma quaestio decidendi normativa de conhecimento imperativo do Tribunal a quo.
Não se encontram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 70º, nº 1, alínea a), nem do artigo 75º-A da LTC.
Termos em que se decide não admitir o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
6. Inconformado com o teor de tal despacho, o Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira reclamou para o Tribunal Constitucional. É do seguinte teor a reclamação apresentada:
«1º O regime – regra da competência de admissão dos recursos jurisdicionais para o Tribunal Constitucional é, nos termos do referido art. 76º, nº 1, dessa Lei, do tribunal recorrido.
2º A decisão de rejeição do recurso não foi tomada, no entanto, por qualquer tribunal arbitral, mas por autodenominado juiz árbitro de um tribunal já dissolvido.
3º Esse facto seria, em nosso entendimento, implicitamente reconhecido pela decisão arbitral de rejeição do recurso.
4º A dissolução do tribunal arbitral consequente da decisão arbitral vem expressamente consagrada no art. 23º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).
5º Essa norma não é incompatível com o referido art. 76º, nº 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, nem reflexamente com o carácter reforçado dessa Lei.
6º O âmbito de aplicação do referido art. 76º, nº 1, em causa, pressupõe a não extinção do tribunal recorrido no período entre a prolação da decisão recorrida e o recurso para o Tribunal Constitucional.
7º Tal extinção pode resultar das próprias características dos tribunais “ad hoc”, como são geralmente os tribunais arbitrais, mas também de alteração legislativa superveniente à decisão recorrida.
8º Extinto por força da prolação da decisão recorrida ou da própria lei o tribunal recorrido, deve obviamente o recurso ser apresentado directamente junto do Tribunal Constitucional, sem necessidade de qualquer declaração de ilegalidade da norma ao abrigo da qual seria extinto o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
9º Não é, assim, efeito necessário do art. 76º, nº 1, a obrigação do legislador se abster de dissolver o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
10º Os tribunais arbitrais não são órgãos da jurisdição administrativa e fiscal.
11º Consequentemente não são órgãos de soberania.
12º Não podem multar ou aplicar qualquer outro tipo de sanções aos participantes processuais.
13º Não dispõem de poderes de execução das suas decisões.
14º Essa é a razão de ser pela qual o legislador consagrou a sua extinção como efeito necessário da decisão recorrida.
15º Inexiste, assim, qualquer incompatibilidade entre o mencionado art. 76º, nº 1, da Lei e o art. 23º.
16º Tal art. 76º, nº 1, não pode, assim, ser entendido como constituindo a imposição ao legislador ordinário do dever de manter os tribunais arbitrais em funcionamento para além da prolação da decisão arbitral recorrida, dever que, a existir, seria incompatível com as características especificas da jurisdição arbitral que resultam do texto constitucional.
17º Não houve, assim, qualquer violação de disposição legal de carácter reforçado.
18º A decisão recorrida não pode, assim, imputada a qualquer tribunal, mas a um auto- declarado juiz, que não recebeu as suas competências de qualquer disposição legal.
19º Em segundo lugar, deve ser referido que, conforme a A.T. demonstrou no processo, a inconstitucionalidade da interpretação da norma da verba 28 da Tabela Geral sustentada pelo autor do pronúncia arbitral e a que o juiz árbitro sem reservas aderiu foi reiteradamente sustentada no processo, em artigos das intervenções processuais especificados no recurso.
20º A “ratio decidendi” foi uma interpretação da verba 28 sem qualquer suporte legal e violadora, por isso, do princípio da legalidade tributária.
21º A rejeição do recurso com os fundamentos invocados pelo juiz-árbitro implicaria a possibilidade de, a coberto, como foi o caso, de uma interpretação conforme a Constituição, colocar na disponibilidade dos árbitros, sem qualquer possibilidade de sindicância pelo Tribunal Constitucional, a aplicação inconstitucional de quaisquer normas jurídicas.
22º Na verdade, a decisão arbitral recorrida não teve pura e simplesmente em conta o elemento literal da lei.
23º Adoptaria o entendimento que o elemento literal da lei pode ser livremente corrigido por uma interpretação conforme a Constituição.
24º A lógica da decisão arbitral recorrida implica a possibilidade de subtracção ao Tribunal Constitucional do controlo da interpretação inconstitucional de quaisquer normas jurídicas.
25º Bastaria ao juiz árbitro autodeclarar constitucional a interpretação a que procedeu.
26º Por mais aberrante que seja essa interpretação.
27º A adesão do Tribunal Constitucional desse entendimento conduziria a à falta de qualquer unidade do sistema fiscal.
28º Haveria o sistema fiscal aplicado pelos tribunais judiciais e o sistema fiscal aplicado pelos tribunais arbitrais.
29º O que colocaria em causa o princípio da igualdade tributária e a própria previsibilidade das receitas fiscais.
30º Tão pouco a unidade do sistema fiscal seria susceptível de ser preservada, a não ser em uma medida extremamente exígua, pelo mecanismo da uniformização da jurisprudência regulado pelo art. 23º, nº 2, do R.JAT, já que o acórdão fundamento do recurso, na medida em que é oriundo de tribunal superior, é geralmente muito superior ao trânsito em julgado da decisão arbitral
31º Essa interpretação violaria igualmente o princípio da igualdade das partes.
32º O Tribunal Constitucional tem vindo sistematicamente a aceitar os recursos deduzidos pelos autores de pedido de pronúncia arbitral com fundamento na inconstitucionalidade da interpretação da norma aplicada.
33º Já não o poderia fazer a A.T. segundo a interpretação singular do Sr. juiz árbitro.
34º Na verdade, objecto de declaração de inconstitucionalidade é sempre a interpretação de uma norma jurídica e não uma norma jurídica isolada da actividade interpretativa que, mesmo nas questões mais simples, implica a sua aplicação.
35º Concluindo:
a) A decisão de rejeição da admissão de recurso foi tomada por tribunal já dissolvido;
b) O carácter reforçado da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional não implica qualquer proibição legal de dissolução do tribunal arbitral após a prolação da decisão arbitral;
c) A inconstitucionalidade da interpretação da verba 28 da Tabela Geral a que aderiu, integralmente e sem reservas, o juiz-árbitro foi adequada e atempadamente durante o processo arbitral, motivo pelo qual o presente recurso deve ser admitido.»
7. Neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido do indeferimento da reclamação, nos termos seguintes:
«(…), a ora reclamante limita-se a discordar da forma como o Tribunal Arbitral aplicou o direito infraconstitucional («interpretação da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo e do art. 6º, nº 1, do C.I.M.I.»), limitando-se a dizer que, no seu entender, tal decisão violou, na interpretação adoptada, «o princípio da legalidade formal na medida em que, com esses fundamentos, anulou liquidação efectuada nos termos da verba 28.1. da Tabela geral».
Não há, pois, de facto, nenhuma suscitação de uma questão de constitucionalidade no referido recurso, de que o tribunal a quo, Tribunal Arbitral, devesse conhecer.
12. Por outro lado, os argumentos apresentados, na sua reclamação por não admissão de recurso, pelo ora reclamante, não contrariam esta conclusão.
Na primeira parte da sua reclamação, o reclamante aprecia a questão da intervenção do Tribunal Arbitral na rejeição do seu recurso de constitucionalidade, considerando que «a decisão de rejeição do recurso não foi tomada, no entanto, por qualquer tribunal arbitral, mas por autodeterminado juiz árbitro de um tribunal já dissolvido» (cfr. fls. 145, 163 dos autos).
Conclui, por isso, que, «extinto por força da prolação da decisão recorrida ou da própria lei o tribunal recorrido, deve obviamente o recurso ser apresentado directamente junto do Tribunal constitucional, sem necessidade de qualquer declaração de ilegalidade da norma ao abrigo da qual seria extinto o tribunal que proferiu a decisão recorrida» (cfr. fls. 146, 164 dos autos).
Tal posição, porém, já se encontra definida e ultrapassada por despacho da Ilustre Conselheira Relatora deste Tribunal Constitucional (cfr. supra nº 7 do presente Parecer)
(…)
13. Por outro lado (…) o Tribunal Constitucional não fica impedido de apreciar a constitucionalidade de questões decididas pelos tribunais arbitrais.
Um exemplo disso é, justamente, o caso dos presentes autos, que está a ser apreciado pelo Tribunal Constitucional.
Outro exemplo, de jurisprudência recente, é o Acórdão 42/14, de 9 de Janeiro (Conselheiro Fernando Ventura), que incide, também, sobre matéria apreciada por um tribunal arbitral.
(…)
15. (…) Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base (artigo 80.º, n.º 2, da LTC), exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. Mostra-se, então, necessário que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi da decisão recorrida, pois só assim um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar a reformulação dessa decisão.
16. Não é isso, porém, o que sucede nos presentes autos, em que o que o reclamante pretende pôr em causa é a interpretação que o tribunal arbitral fez de uma determinada norma infraconstitucional - «interpretação da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo e do art. 6º, nº 1, do C.I.M.I.» -, ou seja, o juízo de subsunção dos factos a essa norma, efectuado pelo Juiz Árbitro.
Todavia, um tal juízo de subsunção está excluído da apreciação do Tribunal Constitucional.
17. Resta, pois, concluir pela improcedência da presente reclamação por não admissão de recurso.»
Tendo sido os autos redistribuídos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
8. São duas as questões levantadas pelo reclamante. Por um lado, o tribunal perante o qual se deve interpor o recurso de constitucionalidade. Por outro, os fundamentos que pautaram a decisão do tribunal a quo de não admissão do recurso.
9. No que toca à primeira questão, invoca o reclamante que a decisão de rejeição do recurso não foi tomada por qualquer tribunal arbitral, já que o tribunal a quo fora entretanto extinto por força da prolação da decisão recorrida. Por outro lado, invoca que os tribunais arbitrais não são órgãos de jurisdição administrativa e fiscal. Assim, no seu entender, o recurso deve ser apresentado directamente junto do Tribunal Constitucional.
9.1. Ora, em primeiro lugar, há que referir que o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de referir, no Acórdão 42/14, de 9 de Janeiro, a função jurisdicional dos tribunais arbitrais e a possibilidade de recurso de fiscalização da constitucionalidade das decisões dos mesmos:
“Na verdade, sedimentado o entendimento de que os Tribunais Arbitrais exercem a função jurisdicional (cfr. Acórdãos n.ºs. 230/86, 52/92, 250/96, 506/96 e 181/2007, entre outros), há muito que jurisprudência e doutrina convergem na sujeição das suas decisões ao quadro de fiscalização concreta da constitucionalidade das decisões dos Tribunais, mormente nos termos impostos pelo artigo 280.º, n.º 1, al. b), da Constituição, ditame que encontra concretização na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Anotada, Tomo III, 2007, pp. 117 e 118; Miguel Galvão Teles, Recurso para o Tribunal Constitucional das Decisões dos Tribunais Arbitrais, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Sérvulo Correia, Vol. I, 2010, pp. 637-655; António Pedro Monteiro, Do recurso de Decisões Arbitrais para o Tribunal Constitucional, Rev. Themis, ano IX, n.º 16, 2009, pp. 185 a 223). Note-se que a recorrente mobilizou expressamente essa via de recurso no requerimento de interposição de recurso que apresentou, em paralelo com o disposto nos n.ºs 1 e 4, do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, diploma que disciplina a arbitragem tributária, e que não comporta norma de recorribilidade em matéria de constitucionalidade distinta daquela alojada na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.”
9.2. Em segundo lugar, a questão de saber qual o tribunal perante o qual se deve interpor o recurso de constitucionalidade já havia sido decidida no presente caso por despacho da Relatora neste Tribunal:
“Com efeito, o nº 4 do artigo 25º do RJAT determina que o recurso de decisões arbitrais, em matéria tributária, seja diretamente interposto perante o Tribunal Constitucional e não perante o tribunal arbitral que a proferiu, bastando a comunicação, a este último, da sua interposição.
Porém, tal preceito encontra-se em evidente contradição com o disposto nos artigos 75º, nº 1, 75º-A, nº 5 e 76º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), aprovada pela Lei nº 28/82, de 15 de novembro, e de acordo com a redacção última que lhe foi conferida pela Lei Orgânica nº 1/2011, de onde se conclui que o recurso para o Tribunal Constitucional deve ser interposto perante o tribunal que tiver proferido a decisão recorrida, cabendo a este apreciar a admissão do mesmo. Ora, a lei do Tribunal Constitucional reveste-se de uma natureza reforçada (cfr. artigo 212º, nº 3, da CRP), por se tratar de uma lei orgânica (cfr. artigos 164º, alínea c), e 166º, nº 2, da CRP). Assim sendo, a contradição entre a solução normativa fixada pelo nº 1 do artigo 25º do RJAT [Regime Jurídico da Arbitragem Tributária] e o artigo 76º, nº 1 da LTC, não pode senão resolver-se a favor deste último, em função da manifesta “ilegalidade «próprio sensu»” da primeira. Face a tal ilegalidade, impõe-se a desaplicação da norma extraída do nº 1 do artigo 25º do RJAT e a consequente aplicação do regime processual previsto na Lei do Tribunal Constitucional.
De qualquer modo, tendo em conta o princípio do aproveitamento processual dos atos, que decorre do «direito à tutela jurisdicional efectiva» (cfr. art. 20º, nº 1, da CRP), determino que os autos baixem ao tribunal recorrido para que o mesmo possa pronunciar-se sobre a admissão do recurso interposto em 11 de novembro de 2013 (fls. 3 a 6), conforme determina o nº 1 do artigo 76º da LTC.”
Tendo sido a questão decidida no presente caso com o despacho transcrito, e tendo-se dado cumprimento ao mesmo, considera-se que a questão se encontra nesta fase ultrapassada. Assim, incumbe apenas, nesta fase, apreciar da reclamação apresentada contra o despacho de não admissão de recurso.
10. O tribunal a quo não admitiu o presente recurso com fundamento, por um lado, no facto de a Recorrente não pretender a apreciação de constitucionalidade de uma determinada norma jurídica, e, por outro lado, sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não ter o tribunal arbitral recusado a aplicação de nenhuma norma nem considerado nenhuma norma inconstitucional.
10.1. Em primeiro lugar, incumbe referir que constitui um pressuposto geral de qualquer tipo de recurso de fiscalização da constitucionalidade a natureza normativa do objecto do mesmo. O controlo de constitucionalidade tem natureza estritamente normativa, tendo de incidir necessariamente sobre normas, não se configurando como um contencioso de «decisões».
Ora, no requerimento de interposição do recurso, a ora reclamante não logra delinear uma norma que possa constituir um objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade. Ela limita-se a discordar da forma como o Tribunal Arbitral interpretou o direito infraconstitucional («interpretação da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo e do art. 6º, nº 1, do C.I.M.I.»), questionando o conceito de prédio adoptado pelo tribunal a quo que, no seu entender, não é o que decorre da lei. Assim, sob o argumento da inconstitucionalidade por suposta violação do princípio da legalidade, o que a ora reclamante verdadeiramente pretende questionar é o conceito de «prédio» assumido pelo Tribunal arbitral, invocando que, no seu entender, o conceito plasmado na lei «não é jurídico-formal, mas um conceito material ou substancial».
Por aqui se vê que o que na verdade o reclamante questiona é o juízo interpretativo e subsuntivo concreto levado a cabo pelo tribunal a quo. Na reclamação ora apresentada, o reclamante confirma ser esse o seu intuito. De facto, limita-se a invocar, novamente, que a interpretação adoptada da verba 28 não possui «qualquer suporte legal» e, por isso, é violadora do princípio da legalidade tributária e que, por isso, «a decisão arbitral recorrida não teve pura e simplesmente em conta o elemento literal da lei». Também aí, pois, o reclamante limita-se a questionar a forma como o Tribunal arbitral interpretou o direito ordinário.
Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar os factos materiais da causa, definir a correta conformação da lide ou determinar a melhor interpretação do direito ordinário. Por imperativo do artigo 280.º da Constituição, o objeto do recurso (em sentido material) são exclusiva e necessariamente normas jurídicas, tomadas com o sentido que a decisão recorrida lhes tenha conferido, sem que caiba ao Tribunal Constitucional uma função revisora da atuação dos demais tribunais, fundada na direta imputação de violação da Constituição
Ora, o objecto do recurso, tal como foi formulado pelo ora reclamante, não corresponde àquilo que o Tribunal Constitucional considera como constituindo uma questão de constitucionalidade normativa. De acordo com a jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional, para efeitos de saber o que constitui uma questão de constitucionalidade normativa, deve identificar-se o “conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, de 13/05). Por outro lado, tem entendido que, para se poder considerar estar em causa uma questão constitucionalidade não é suficiente referir que a decisão a quo não interpretou um preceito legal no sentido propugnado pelo interessado ou que a decisão viola a Constituição. É necessário que seja discernível a autonomização da questão de constitucionalidade da norma relativamente ao tema da sua interpretação e aplicação aos factos da causa, o que claramente não se verifica neste caso.
Tanto bastaria para o recurso de constitucionalidade não poder ser aceite.
10.2. Mas para além da não verificação deste pressuposto geral de conhecimento dos recursos de constitucionalidade, cumpre ainda referir que o presente também não cumpre os pressupostos específicos exigidos pela alínea a) do n.º1 do artigo 70.º da LTC.
Nos termos dessa norma, cabe recurso para o TC das decisões dos tribunais que «recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade». Isso implica que o recurso aí interposto cumpra dois pressupostos: em primeiro lugar, que a decisão recorrida haja efectivamente recusado a aplicação de certa norma ou interpretação normativa relevante para a dirimição do caso, e que tal desaplicação normativa se funde num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido. Tem de existir, assim, uma correlação entre estes dois elementos: por um lado, a decisão ter efectivamente recusado a aplicação da norma, segundo, que essa recusa tenha sido devida a um juízo de inconstitucionalidade. No que toca ao primeiro aspecto, o Tribunal Constitucional já por diversas vezes tem referido que o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal a quo tem de revelar, de forma decisiva, ser o efectivo fundamento de direito ou “ratio decidendi” da decisão recorrida. Ora, neste ponto incumbe esclarecer que o conceito de recusa de aplicação de uma norma não se confunde com o de simples interpretação de norma em conformidade com a Constituição (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, p. 70). Ora, o que a decisão recorrida faz é tão-só interpretar a verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo, num sentido que não merece o acordo do ora reclamante. Em momento algum o tribunal recorrido recusa a aplicação dessa norma. Muito pelo contrário. Essa norma é o fundamento da decisão. Mas com a interpretação que lhe deu o tribunal a quo. O que foi afastado foi apenas o sentido interpretativo propugnado pelo reclamante. O que existe, pois, pura e simplesmente, é uma mera discordância com a interpretação de direito infra-constitucional alcançada pelo tribunal recorrido – o que, insiste-se, não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar.
Não tendo a decisão recorrida recusado a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade, também por este motivo presente recurso para o Tribunal Constitucional não é de admitir.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de março de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro –Maria Lúcia Amaral.