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Proc. nº 68/98
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes EXPOSIÇÃO DO RELATOR (ART. 78º-A, Nº 1, DA LEI DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)
1. V..., J..., VV... e VB...,com os sinais dos autos, propuseram em 21 de Março de 1996, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção com processo ordinário contra o ESTADO PORTUGUÊS e C..., EP, em liquidação, pedindo a condenação solidária dos demandados a pagar a cada um dos autores diferentes quantias a título de indemnização por despedimento sem justa causa, no total de
25.702.682$00, invocando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da alínea c) do nº 1 do art. 4º do Decreto-Lei nº 138/85, de
3 de Maio, constante do acórdão nº 162/95 do Tribunal Constitucional (publicado in Diário da República, I Série-A, nº 106, de 8 de Maio de 1995). Segundo os autores, por força desta declaração de inconstitucionalidade, seria inequívoco o direito dos ex-trabalhadores da CTM a receberem uma indemnização pela cessação dos seus contratos de trabalho, estando aqueles em tempo para proporem a acção, por não poderem ser prejudicados pela edição de normas declaradas inconstitucionais, nulas ab initio, sob pena de se estar a dar 'com uma mão o que ilícita e ilegalmente se retirava com a outra' (a fls. 8).
A acção foi contestada pela C... e pelo Ministério Público, em representação do Estado. A primeira deduziu as excepções de ineptidão de petição inicial, de prescrição e de caducidade dos contratos de trabalho, e defendeu-se por impugnação. O Estado deduziu defesa por excepção, invocando a sua ilegitimidade, a prescrição dos créditos invocados e as excepções peremptórias de pagamento e compensação, e defesa por impugnação.
Através de saneador-sentença proferido em 4 de Dezembro de 1996, foram os réus absolvidos do pedido, considerando-se extintos por prescrição os créditos invocados, atento o disposto no art. 38º da Lei do Contrato de Trabalho.
Inconformados, interpuseram os autores recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando que a sentença recorrida se havia limitado a
'simular' a aplicação da declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade, violando, de facto e de forma flagrante, o referido acórdão e a mesma declaração, na medida em que tal decisão pressupunha necessariamente que os contratos de trabalho com os autores haviam cessado efectivamente e em consequência da extinção da CTM e esta situação não tinha paralelo com uma situação de despedimento irregular de um trabalhador. Concluíram que, se assim se não entendesse, o Tribunal estaria a violar a declaração com força obrigatória geral, o art. 282º, nºs. 1 e 3, da Constituição, e o acórdão nº 528/96.
O Tribunal da Relação de Lisboa, através de acórdão proferido em 26 de Novembro de 1997, julgou a apelação improcedente nos seguintes termos:
' Entendemos que não [procede a tese dos recorrentes], e isto porque: A decisão recorrida fundamentou-se, como não podia deixar de ser, em que, sendo os créditos resultantes do contrato de trabalho e dado o disposto no art. 38º nº
1 do D.L. nº 49408 de 24-11-69 e tendo o contrato de trabalho cassado em 7-5-85, como os próprios AA. referem, há longo tempo havia decorrido o prazo prescricional, quando a acção foi proposta em 21-3-96 [...].'
E, depois de sustentar que os contratos de trabalho ou haviam cessado na data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 138/85 ou na data
(coincidente) da comunicação da C... aos seus trabalhadores em que se afirmava que os trabalhadores se deviam considerar desobrigados do dever de comparência, afirmou-se no mesmo acórdão:
'Em qualquer das hipóteses, houve sempre uma cessação de factos da relação laboral cuja existência e verificação se comprova pelo recebimento das verbas que os AA dizem ter recebido da Comissão Liquidatária, a título de minimizar os custos sociais decorrentes da extinção daquela empresa [...]. Assim bem decidiu o juiz «a quo» ao considerar como prescritos os créditos peticionados pelos AA. E nada impedia os AA. de ter proposto mais cedo a presente acção e dentro do prazo de um ano após a cessação 'de facto' da relação laboral [...]. Tal rompimento ocorreu em 1985 - cerca de dez anos antes da proposta da acção e em nada ficou afectada com a referida declaração de inconstitucionalidade. Por tal razão, a decisão impugnada em nada violou os arts. 38º da L.C.T. nem o art. 282º nº 1 da C.R.P.' (a fls. 233-234)
Face a este acórdão vieram os autores interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando que o acórdão recorrido tinha feito aplicação implícita da alínea c) do nº 1 do art. 4º do Decreto-Lei nº 138/85, de
3 de Maio, não obstante essa norma ter sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão nº 162/95.
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 241.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Entende o relator que se verifica o pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional e que a questão de constitucionalidade a resolver é simples.
De facto, através do acórdão nº 162/95 (publicado no Diário da República, I Série-A, nº 106, de 8 de Maio de 1995), o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da alínea c) do nº 1 do art. 4º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, com o seguinte teor:
' Art. 4º - 1 - A extinção da C... implica: a)... b)... c) A extinção por caducidade de todos os contratos de trabalho em que seja parte a C..., com excepção dos outorgados com pessoal de mar embarcado, os quais se extinguirão imediatamente após o respectivo desembarque no porto nacional de destino, sem prejuízo do direito aos salários e outras remunerações em dívida à data da extinção do contrato de que se trate.
2 - ...
3 - ...
4 - ...'
Na fundamentação desse acórdão considerou-se que se continuava a entender que a norma em causa e a do art. 4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº
137/85 (do mesmo teor), 'consignando uma nova causa de extinção do contrato individual de trabalho e, do mesmo passo, ao não preverem o «direito dos trabalhadores das CT... e C... que perderam o seu posto de trabalho, em consequência da extinção daquelas empresas, a perceberem qualquer indemnização, violaram o direito à segurança no emprego estabelecido no artigo 53º da Constituição, além de, dispondo elas unicamente para aqueles trabalhadores e estatuindo sobre matéria de «direitos, liberdades e garantias» sem que o Governo dispusesse de autorização legislativa, igualmente violarem os artigos 18º, nº 3,
168º, nº 1, alínea b), do mesmo diploma fundamental'.
O Tribunal Constitucional, por outro lado, optou por não limitar os efeitos da inconstitucionalidade, considerando que caberia aos tribunais judiciais determinar se se mantinha ou não a vigência dos contratos de trabalho, resultando, porém, claro do texto do voto do relator que sempre haveria de decorrer 'da declaração de inconstitucionalidade [...] a obrigação de aos trabalhadores das extintas empresas públicas CT... e C... (que, em virtude de tal extinção viram cessados os contratos de trabalho que a eles os vinculavam) ser pago um quantitativo indemnizatório de montante idêntico àquele que perceberiam caso tivesse sido adoptado o procedimento de despedimento colectivo'.
Ora, parece evidente que a decisão do Tribunal Constitucional garantiu como mínimo justo uma indemnização sucedânea da que seria paga se a empresa pública em questão ou o Estado tivesse recorrido ao instrumento jurídico do despedimento colectivo.
O Tribunal Constitucional, ao não optar por fazer tal limitação, decidiu que a extinção dos contratos de trabalho por caducidade, uma vez invalidada, havia de dar sempre direito a uma indemnização pelo despedimento, exigível nos termos das disposições legais em vigor ao tempo da edição dos Decretos-Leis nºs. 137/85 e 138/85.
3. Nos autos em que foi proferido o acórdão nº 528/96 deste Tribunal - aresto que é invocado pelos ora recorrentes - o Supremo Tribunal de Justiça havia negado provimento a um recurso de revista, através do qual o recorrente pretendera ver reconhecido o direito a certas diferenças retributivas devidas pela CTM. Nessa ocasião, o Supremo Tribunal de Justiça tinha considerado que, 'tendo o autor aceite a quantia que lhe [fora] proposta e que [recebera], paga pela ré com dinheiro do Estado, se [consumara] o contrato de remissão, uma das causas de extinção de obrigações para além do cumprimento'. Nessa medida, o relator rejeitara o recurso de constitucionalidade interposto desse acórdão, por entender que este não aplicara uma norma já declarada inconstitucional, tudo se tendo passado no plano do direito infraconstitucional. Mas na reclamação contra esse despacho de rejeição, o Representante do Ministério Público veio sustentar que a decisão sobre o recurso de revista, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, havia procedido a uma aplicação implícita da norma constante do artigo
4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei, uma vez que o negócio jurídico designado como 'remissão abdicativa' pressupunha necessariamente, de um ponto de vista lógico-jurídico, a cessação dos contratos de trabalho no momento e em consequência da extinção da CTM. E o Tribunal Constitucional perfilhou então igual ponto de vista, concedendo provimento à reclamação, bem como a outras idênticas. Na sequência desses acórdão sobre as reclamações, nos recursos depois admitidos, foram proferidos acórdãos que revogaram as decisões recorridas sobre a validade das remissões abdicativas, por se ter entendido que estas últimas tinham fundado tal juízo de validade na aplicação implícita das normas declaradas inconstitucionais (acórdãos nºs. 1121/96, 168/97 e 192/97).
4. Esta argumentação é perfeitamente transponível para o presente recurso, como tem sido reconhecido pelo Tribunal Constitucional, através das suas duas secções, a partir do acórdão nº 513/97, ainda inédito.
O Tribunal da Relação desconsiderou, de forma implícita, a declaração de inconstitucionalidade de norma da alínea c) do nº 1 do art. 4º do Decreto-Lei nº 138/85, ao admitir que o prazo de prescrição se iniciara com a entrada em vigor deste diploma legal. Tal como no caso da remissão abdicativa - em que o Supremo Tribunal de Justiça se contentara com a aparência de extinção dos contratos de trabalho, independentemente do vício de inconstitucionalidade que podia afectar essa norma - também no caso presente aquele tribunal de segunda instância entendeu que a aparência de extinção dos contratos de trabalho bastava para que fosse aplicável o art. 38º da Lei do Regime do Contrato Individual de Trabalho, aludindo a uma analogia com a situação de aparência factual de extinção em caso de procedimento disciplinar irregular e referindo um
ónus de suscitação da questão de constitucionalidade pelos trabalhadores afectados.
Mas é evidente que - estando o vício na norma legal que operava a extinção dos contratos de trabalho dos recorrentes - só aplicando de forma implícita a norma declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, é possivel sustentar, de um ponto de vista lógico-jurídico, que o prazo prescricional previsto naquele artigo 38º se iniciara e completara cerca de dez anos antes da publicação do acórdão nº 162/95.
Por outro lado, não se vê como da eficácia declarativa da decisão sobre a inconstitucionalidade da norma e da possibilidade de se suscitar antes de 1995 essa questão de constitucionalidade se poderá chegar à tese da extinção por prescrição dos créditos indemnizatórios, quando o Tribunal Constitucional se absteve de limitar os efeitos da inconstitucionalidade.
5. Como atrás se referiu, entende o relator que estão reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.
E, quanto ao fundo, entende que deve ser concedido provimento ao recurso, na linha da jurisprudência reiterada atrás citada.
6. Notifique-se esta exposição aos recorrentes e recorridos para se pronunciarem, querendo, sobre o seu teor, no prazo de cinco dias, contados de forma seguida.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 1998
O relator, Ribeiro Mendes ACÓRDÃO Nº 296/98 Proc. nº 68/98
1ª Secção Cons. Rel.: Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes V..., J..., VV... e VB... e recorridos o Estado Português e a C... EP, em liquidação, concordando-se no essencial com a exposição lavrada pelo então relator de fls. 243 e segs. que aqui se dá por inteiramente reproduzida e que a resposta da recorrida - sustentando não se verificarem in casu os pressupostos do recurso - não abala, tendo em conta a jurisprudência formada por este Tribunal, designadamente a que se extrai do seu Acórdão nº 528/96 (in DR, II Série, de 18/7/96), decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinar que a decisão impugnada seja reformada, a fim de se ter em conta o conteúdo e alcance da declaração de inconstitucionalidade do artº 4º nº 1 al. c) do DL nº 138/85, de 3 de Maio com força obrigatória geral proferida pelo Acórdão nº 162/95, publicado na Iª Série A do DR de 5/5/95.
Lisboa, 28 de Abril de 1998 Artur Mauricio Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa