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Processo nº 135/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do 'Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo', de 15 de Janeiro de 1997, foi decidido 'negar provimento ao recurso', isto é, ao recurso jurisdicional interposto pela recorrente 'Rádiodifusão Portuguesa, E.P.' de acórdão da citada Secção, e, na parte que aqui interessa, foi a recorrente condenada como 'litigante de má-fé', na base da seguinte consideração:
'Ao afrontar o decidido com força de caso julgado, arguindo de novo o vício de violação de lei por ofensa do nº 2 do artigo 18º da LOSTA, a recorrente deduz pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar e por isso litiga de má fé, de harmonia com o estatuído no nº 2 do artigo 456 do Código de Processo Civil'
2. Dessa parte do acórdão foi interposto recurso pela recorrente para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do art. 70º/1/b) e 2 da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com fundamento na inconstitucionalidade do art. 456º do CPC, na interpretação e aplicação que lhe foi dada pelo douto aresto recorrido, por violação dos princípios constitucionais do contraditório, da proibição da indefesa, do acesso aos tribunais e do duplo grau de jurisdição, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático, e consagrados nos arts. 2º, 3º/2, 9º/2//b), 18º, 20º/1 e 32º/1, 5 e 7 da CRP' ('A norma do art.
456º do CPC foi aplicada ex novo e de forma inesperada na douta decisão recorrida, não tendo sido concedida oportunidade à ora recorrente de suscitar previamente a respectiva inconstitucionalidade (v. art. 75º-A/2 da Lei 28/82, de
15 de Novembro), sendo manifesta a admissibilidade do presente recurso, ex vi dos arts. 207º e 280º/1/b) da CRP e do art. 4º/3 do ETAF' - acrescenta ainda a recorrente).
3. Nas suas alegações adiantou a recorrente as seguintes conclusões:
'1º- O Tribunal a quo interpretou a norma do art. 456º do CPC no sentido da sua aplicabilidade ex officio, sem audição prévia das partes e sem exercício do contraditório, pois a recorrente nunca foi notificada para se pronunciar sobre a possibilidade de uma decisão nesse sentido - v. texto nºs 1 e 2;
2º-O direito de acesso ao direito e aos tribunais, integrante do princípio do Estado de Direito Democrático e consagrado no art. 20º/1 da CRP, proíbe a privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, impondo a plena observância do contraditório e do direito de defesa - v. texto, nºs. 4 a 6;
3º. A norma do art. 456º do CPC, interpretada no sentido de que a condenação por litigância de má fé e a multa aí previstas podem ser impostas à parte, sem que previamente lhe seja concedida a oportunidade de se pronunciar sobre tal sanção, viola claramente os princípios constitucionais do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa consagrados no art. 2Oº da CRP. - v. texto, nºs. 5 a 7;
4º. O direito de acesso aos tribunais consagrado no art. 2Oº da CRP abrange necessariamente o direito de recurso para um tribunal superior das decisões jurisdicionais - princípio do 'duplo grau de jurisdição' -, inerente ao princípio da tutela judicial efectiva (arts. 2º, 20º e 32º da CRP) - v. texto, nºs. 9 e 10;
5º. O art. 456º do CPC, interpretado no sentido da sua aplicabilidade por tribunais de cujas decisões não cabe recurso, é inconstitucional por violação do princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva e dos arts. 2º, 2Oº e 32º da CRP - v. texto, nºs. 9 e 10;
6º. A procedência do presente recurso é assim inquestionável, pois o art. 456º do CPC, na interpretação que lhe foi dada pelo douto aresto recorrido, viola frontalmente os princípios constitucionais do duplo grau de jurisdição consagrados nos arts. 2º, 3º/2, 9º/2/b), 18º, 20º/1 e 32º/1, 5 e 7 da CRP'
4. Também apresentou alegações o recorrido Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, concluindo como se segue:
'a) Ao caso dos autos, é aplicável o CPC em vigor à data do início do processo:; b) O seu artº 456º não previa nenhum, 'mecanismo processual autónomo' que tivesse de ser cumprido pelo juiz, impeditivo de, oficiosamente e sem audição prévia da parte litigante de má fé, a condenar com esse fundamento; c) O direito de prévia audição das partes, ao longo de todo o processo civil, apenas foi imposto pelo Decreto-Lei 180/96, de 25/9, que reviu o CPC; d) O Tribunal a quo aplicou e bem, oficiosamente, o artº 456º do CPC; e) De facto, a Recorrente pretendeu discutir, no recurso jurisdicional, questão que já estava resolvida pela Secção do Contencioso do STA, com força de caso julgado; f) A condenação, por litigância de má fé, não assume natureza penal, mas, antes, de responsabilidade civil; g) O presente recurso de constitucionalidade é prova evidente do direito de acesso da Recorrente aos tribunais; h) Não tem consagração constitucional, em matéria de recursos, o princípio da dupla jurisdição; i) Não se mostram violados os artºs 2º, 3º/2, 9º/2/b, 18º, 20º/1 e 32º/1, 5 e 7 da CRP'
5. Vistos os autos, incluindo o visto do Ministério Público, cumpre decidir.
A única norma questionada no presente recurso é a do artigo 456º, nº
2, do Código de Processo Civil (e anteriormente às alterações introduzidas no Código em 1995 e 1996), com relação à litigância de má fé e à responsabilidade das partes nessa litigância. Norma de que se serviu o acórdão recorrido - citando-a expressamente - para a aplicar oficiosamente à situação da recorrente, condenando esta como litigante de má fé 'no pagamento de quinze unidades de conta'. E, talqualmente se expressa a mesma recorrente, 'sem audição prévia das partes e sem exercício do contraditório, pois a recorrente nunca foi notificada para se pronunciar sobre a possibilidade de uma decisão nesse sentido' (e daí a sua afirmação no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade de que tal norma 'foi aplicada ex novo e de forma inesperada na douta decisão recorrida, não tendo sido concedida oportunidade à ora recorrente de suscitar previamente a respectiva inconstitucionalidade (v. art. 75º-A/2 da Lei 28/82, de
15 de Novembro), sendo manifesta a admissibilidade do presente recurso, ex vi dos arts. 207º e 280º/1/b) da CRP e do art. 4º/3 do ETAF').
Sobre as normas do nº 1 e 2 daquele artigo 456º pronunciou-se já o Tribunal Constitucional no acórdão nº 440/ /94, publicado no Diário da República, II Série, nº 202, de 1 de Setembro de 1994, não as julgando inconstitucionais, 'na parte relativa à condenação em multa por litigância de má fé, desde que interpretadas no sentido de tal condenação estar condicionada pela prévia audição dos interessados sobre tal matéria' (alínea b) da decisão), com a seguinte e essencial fundamentação e respondendo à pergunta: 'Mas será que a não audição do interessado e a consequente eliminação do seu direito de defesa são geradoras de lesão constitucional?':
'Definido, assim, o conteúdo genérico do direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição da indefesa, tem-se por seguro que o regime instituído nas normas do artigo 456º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa por litigância de má fé não pressupor a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação, padecerá de inconstitucionalidade, por ofensa daquele princípio constitucional. Com efeito, semelhante interpretação priva por completo o interessado de poder apresentar perante o tribunal qualquer tipo de defesa, acabando por ser confrontado com uma decisão condenatória cujos fundamentos de facto e de direito não teve oportunidade de contraditar. Mas não resulta imperativo que tais preceitos hajam necessariamente de ser julgados inconstitucionais, já que, mostrando-se embora incompatível com a Lei Fundamental a interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida, outra existe que os torna constitucionalmente comportáveis. Com efeito, mostra-se possível e adequada uma interpretação de conformidade constitucional daquelas normas, em termos de condicionar o juízo de condenação ali previsto à prévia notificação do litigante suspeitado de má fé processual, concedendo-lhe um prazo para nos autos responder o que tiver por conveniente. Com este sentido e alcance, não subsiste naquelas normas qualquer vício constitucional'.
O mesmo discurso argumentativo foi retomado no acórdão nº 103/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 138, de 17 de Junho de 1995, ainda que a propósito de outra norma - a do artigo 458º do mesmo Código - e nestes termos:
'A condenação por litigância de má fé só deve, obviamente, ter lugar, dando-se à parte (ou, sendo o caso, ao seu representante), antes de assim ser condenada, a oportunidade de se defender, para o que tem que ser, previamente, ouvida. Ou seja: uma tal condenação exige que se observe, no processo, o princípio do contraditório, que - no dizer de MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil cit., páginas 364 e 365) - está ao serviço do princípio da igualdade das partes e consiste em que 'cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras'. O princípio do contraditório, embora não formulado na Constituição expressamente para o processo civil, não pode, na verdade, deixar de valer também neste domínio. Ele traduz, com efeito, uma exigência própria da ideia de Estado de Direito [cf., neste sentido, acórdãos nºs 397/89, 62/91 e 284/91 (publicados no Diário da República, II série, de 14 de Novembro de 1989 e de 24 de Outubro de
1991, o primeiro e o último, e I série-A, de 19 de Abril de 1991, o segundo)]'
Este respeito do princípio do contraditório, que está ao serviço do princípio da igualdade das partes, e se conjuga com a ideia de proibição da indefesa, estava e está reflectido no artigo 84º, nºs 5 e 6, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, relativamente a este Tribunal Constitucional, e está presente e bem explicitado no artigo 3º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, com as alterações introduzidas em 1995 e 1996.
Aderindo, por consequência, aos fundamentos dos citados acórdãos, tem de concluir-se que, embora se emita um juizo de não inconstitucionalidade das normas do artigo 456º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, o recurso haverá de proceder, para serem elas interpretadas e aplicadas no sentido de estar condicionada pela prévia audição dos interessado a condenação por litigância de má fé.
6. Termos em que, DECIDINDO:
a) Interpretar o artigo 456º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil em termos de que a recorrente só pode ser condenada como litigante de má fé, depois de, previamente ser ouvida, a fim de se poder defender da acusação de má fé;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, a fim de o mesmo ser reformado por forma a que aquele artigo
456º, nºs 1 e 2 seja interpretado - e aplicado - nos autos no sentido que se deixa indicado.
Lisboa, 12 de Maio de 1998 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida