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Proc. nº 1019/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
T..., Lda., com sede em Leiria, inconformada com a decisão do Instituto do Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho, Delegação de Leiria, que lhe aplicou a coima de 120.000$00, por infracção ao artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 9/92, de 28 de Abril, deduziu impugnação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 59º, nºs. 1, 2 e 3, do Decreto-Lei nº 433/82, de
27 de Outubro, dirigida ao Juiz do Tribunal de Trabalho daquela cidade que, no entanto, por decisão de 17 de Fevereiro de 1998 (fls. 61 dos autos), julgou improcedente o recurso e manteve a coima aplicada.
Novamente inconformada, interpôs a interessada recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos das disposições combinadas dos artigos 399º, 401º, nº 1, alínea b), 406º, nº 1, 407º, nº 1, alínea a), e 411º, todos do Código de Processo Penal (CPP), bem como dos artigos 73º, nº 1, alínea a), e 74º, nºs. 3 e 4, daquele Decreto-Lei nº 433/82.
Na respectiva motivação alegou-se não terem sido respeitados os princípios do contraditório e da audição da arguida, consagrados nos artigos 32º, nºs. 1, 3 e 8 da Constituição da República (CR) e 50º do Decreto-Lei nº 433/82.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 17 de Setembro de 1998, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
É deste acórdão que T..., Lda., interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82, citado, 'pela forma como foi interpretada
[...] no que se refere à questão de ter ou não sido assegurado à recorrente, pela autoridade administrativa - o IDICT - os seus direitos de audiência e defesa'.
Admitido o recurso pelo Desembargador relator, já neste Tribunal houve-se por bem dar cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, em face do que a recorrente veio esclarecer que a interpretação feita à norma que pretende sindicar violou o disposto no artigo
32º, nºs. 1, 3 e 8 da CR e os princípios constitucionais consagrados nessa norma, o do contraditório e o da audiência da arguida (terá querido dizer nº 10 do artigo 32º e não nº 8, considerando o texto actual do preceito, vindo da IV Revisão Constitucional).
Prosseguindo os autos seus termos, alegaram oportunamente a recorrente e o Ministério Público, como recorrido.
A primeira concluíu do seguinte modo as suas alegações:
'1- Na aplicação à Recorrente, da coima de Esc. 120.000$00 e sanções acessórias, não foram respeitados os princípios do contraditório e do direito de audição e defesa, consagrados no artº 32º, nº. 1, 3 e 8 da Constituição da República.
2- A Recorrente foi notificada para prestar declarações em 30 de Dezembro de
1996, pelas 09:15, nos Serviços da IDICT, através de notificação de 24 de Fevereiro de 1997.
3- A Recorrente, confrontada com um processo de contra-ordenação, tem direito a optar entre a resposta, por escrito, no prazo que lhe for apontado, ou comparecer, para prestar declarações, no dia que lhe for designado.
4- Só à Recorrente cabe exercer o direito de opção legalmente consagrado no artº
50º do DL 433/82, de 27 de Outubro.
5- A notificação atrás referida, atenta a data em que foi efectuada, não tinha a virtualidade de dar cabal cumprimento ao citado comando legal.
6- É, assim, manifestamente inconstitucional a interpretação que, quer a autoridade administrativa que aplicou a coima, quer as instâncias, fizeram do referido artº 50º do DL 433/82.
7- Por violação dos princípios do contraditório e da audiência do arguido, consagrados no artº 32º da Constituição da República.
8- Deve, por isso, julgar-se procedente o recurso com as legais consequências.'
Por sua vez, na contra-alegação, concluíu o competente magistrado do Ministério Público:
'1º - Não constitui interpretação violadora do nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa a que se traduz em impor ao notificado, ao abrigo do preceituado no artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Setembro, o ónus de arguir a irregularidade da notificação pessoal que lhe foi feita, traduzida em, por lapso manifesto, ter sido indicada data para comparência nos serviços, para eventual apresentação oral da defesa, anterior à data em que tal notificação se efectivou.
2º - Na verdade, apesar do lapso manifesto cometido, tinha a arguida plena oportunidade de se defender no processo em causa, apresentando tal defesa por escrito ou - se a pretendesse deduzir oralmente - comparecendo noutra data na sede dos serviços ou, pelo menos, arguindo a irregularidade da notificação que lhe fora feita.' II
1. - Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade a norma do artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro que, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, instituíu o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo.
Nos termos desse preceito:
'Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre' (redacção actual).
Ora, no caso sub judice, à arguida deu-se oportunidade para exercer o seu direito de defesa, na medida em que, lavrado auto de notícia, se expediu por via postal e regularmente a respectiva notificação para o local do seu estabelecimento.
Devolvida a carta para notificação, com a indicação
'avisado não reclamado' (fls. 6), foi diligenciada a notificação pessoal por intermédio da autoridade policial, o que veio a ocorrer (fls. 9), sendo certo que, por evidente lapso, constava uma data na respectiva notificação – 30 de Dezembro de 1996 – para comparência nos Serviços, anterior à efectivação da notificação, ocorrida a 4 de Março do ano seguinte (fls. 9).
Perante este quadro fáctico, o acórdão recorrido, tendo por constitucionalmente inquestionável assistir ao arguido o direito de audiência e de defesa (nº 10 do artigo 32º da Lei Fundamental, após a IV Revisão Constitucional), constata, no entanto, perante a sequência processual ocorrida, a existência do mencionado lapso: basta ter presente, como se sublinha, que a notificação é expedida a 24 de Fevereiro de 1997 e a data aposta para a arguida apresentar a sua defesa ou comparecer para ser ouvida respeita a 30 de Dezembro de 1996.
Sendo assim - mais se ponderou - nada obstava à arguida, no entanto, que, no prazo de 15 dias a contar da sua notificação tivesse apresentado a defesa por escrito ou tivesse comparecido, no mesmo período, para ser ouvida, ou, ainda, arguida a irregularidade, requeresse outra data para comparência e exercício do seu direito de indicar prova.
A questão está pois em saber se o nº 10 do artigo 32º da CR foi violado na interpretação subjacente ao acórdão, a qual impõe ao notificado o ónus de suscitar a irregularidade ou a nulidade da notificação, caso entenda que o lapso material e manifesto cometido prejudicava efectivamente o exercício do direito de defesa pela forma por que concretamente o pretende exercitar.
Entende a recorrente que a desconexão de datas afastou irremediavelmente a hipótese de se apresentar ou de organizar a sua resposta por escrito. Já o magistrado recorrido considera ser 'manifestamente contrário aos princípios da boa fé processual, da lealdade e da cooperação [...] o arguido procurar prevalecer-se, com o seu silêncio continuado, de um lapso manifesto do conteúdo (parcial) de uma notificação pessoal que lhe foi feita, de modo a - sem exercitar o seu direito de defesa, perfeitamente operativo apesar do referido lapso, ou - pelo menos - sem arguir a irregularidade da notificação - se eximir
à sua responsabilidade e à aplicação da coima correspondente à infracção cometida'.
Decidindo.
2. - Discute-se se a interpretação dada à norma do artigo 50º
- que permite ao arguido, no domínio do Direito contra-ordenacional, ouvido, organizar a sua defesa - assegura a observância da contraditoriedade.
No processo civil e como observou Manuel de Andrade, o direito a ser ouvido exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de apresentarem as suas razões, ofereceram provas, controlarem as oferecidas pelas outras partes e pronunciarem-se sobre umas e outras (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1976, pág. 377).
É, no entanto, no processo criminal que o contraditório
(e independentemente de se fazer valer no direito processual em geral, ao fim e ao cabo como corolário do direito de acesso à Justiça e aos Tribunais) assume a dignidade constitucional que o nº 5 do artigo 32º da CR lhe atribui. A preservação das garantias de defesa do arguido passa, nos parâmetros do Estado de Direito democrático, além do mais, pela observância do contraditório, de modo a que sempre possa ser dado conhecimento ao arguido da acusação que lhe é feita e se lhe dê oportunidade para dela se defender. A intangibilidade deste núcleo essencial compadece-se, no entanto, com a liberdade de conformação do legislador ordinário que, designadamente na estruturação das fases processuais anteriores ao julgamento, detém margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório, sem prejuízo de a ele subordinar estritamente a audiência: aqui tem o princípio a sua máxima expressão (como decorre do nº 5 do artigo 32º citado), nessa fase podendo (e devendo) o arguido expor o seu ponto de vista quanto às imputações que lhe são feitas pela acusação, contraditar as provas contra si apresentadas, apresentar novas provas e pedir a realização de outras diligências e debater a questão de direito em causa (cfr. o acórdão deste Tribunal, nº 352/98 e, ainda, inter alia, os nºs. 133/92 e 172/92, publicados no Diário da República, II Série, de 14 de Julho de 1998, 24 de Julho e 18 de Setembro de 1992, respectivamente).
Ou seja, ressalvado esse núcleo intocável - que impede a prolação da decisão sem ter sido dada ao arguido a oportunidade de 'discutir, contestar e valorar' (parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 16ºvol., pág. 154) - não existe um espartilho constitucional formal que não tolere certa maleabilização do exercício do contraditório (como, de resto, e ao menos implicitamente, se retira de certos arestos do Tribunal como, v.g., os nºs. 1185/96 e 358/98, publicados no citado Diário, II Série, de 12 de Fevereiro de 1997 e 17 de Julho de 1998, respectivamente).
No domínio do processo contra-ordenacional, este Tribunal tem-se pronunciado no sentido de uma não estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. acórdão nº 158/92, citado), sem deixar, no entanto, de sublinhar 'a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal', como se escreveu no acórdão nº 469/97, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 16 de Outubro de 1997. Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais 'rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal' (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, 'Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social' in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564), o que não deixará de se reflectir no âmbito do contraditório.
De qualquer modo, desenvolvida a actividade sancionatória da Administração a montante do recurso para o tribunal comum e não impedida a recorrente de atempadamente, na própria fase procedimental onde ainda se não exercera o controlo jurisdicional, se fazer ouvir e se defender, a interpretação que o tribunal recorrido concedeu à norma do artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82 não se mostra colidente com o preceituado no nº 10 do artigo 32º da CR.
Com efeito, e como salienta o magistrado recorrido, não obstante a irregularidade advinda do lapso cometido - que, de resto, não foi arguida - a recorrente teve plena oportunidade de se defender, oralmente ou por escrito, o que, pura e simplesmente, não fez, quedando-se passivamente até ao julgamento (não obstante lhe ter sido nomeado patrono), só posteriormente tendo quebrado o seu silêncio.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
8 unidades de conta. Lisboa, 5 de Maio de 1999- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida