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Processo n.º 811/01 Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional: I. Relatório
1.M..., por si e como mandatária da CDU-Coligação Democrática Unitária PCP-PEV apresentou, em 21 de Dezembro de 2001, recurso contencioso para este Tribunal
“do não atendimento de protestos contra irregularidades e ilegalidades no acto de votação para a eleição da Câmara e Assembleia Municipais de Mértola e assembleias de freguesia do mesmo concelho”, porquanto a disposição das câmaras de voto foi determinada por um fax do Secretariado Técnico dos Assuntos Para o Processo Eleitoral para a mandatária de uma das forças políticas concorrentes às eleições autárquicas desse município – o que, no recurso, se considera “uma intromissão abusiva no funcionamento das mesas de voto” – e tal disposição das câmaras de voto “é uma das soluções que menos assegura os direitos fundamentais de liberdade e sigilo de voto”. Invoca, assim, violação dos artigos 102º, 121º, n.º3, 122º e 139º, n.º2, al. d) da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica n.º1/2001, de 14 de Agosto, e conclui desta forma:
«1ª Cabe exclusivamente ao presidente e aos membros da mesa das secções de voto assegurar o segredo e a liberdade de voto de cada eleitor e, designadamente, e para esse fim, definir a posição da câmara de voto.
2ª Constitui irregularidade e ilegalidade susceptível de influir na liberdade e segredo do voto, e com influência no resultado final da votação, o facto de a câmara de voto ser posicionada, como no caso presente, por modo a que possa ser visto ou deduzido se o eleitor escreve ou não no boletim de voto, se escreve mais do que a normal posição da cruz e se, até, permite perceber em que altura ou região do boletim é aposta a cruz
3ª São falsas as actas em que, como no caso dos autos, se não contém a reclamação de mandatário e/ou representantes de uma lista concorrente no sentido de ser mudada a posição, antes decidida pela mesa, da câmara de voto; em que se não contêm a deliberação tomada pela mesa e a sua execução e nem os protestos a tal respeito formulados por eleitores.
4ª Constitui artifício fraudulento e acarreta vício na formação da vontade a exibição, por representante, delegado ou mandatário de concorrente à eleição perante os membros de uma mesa, de “parecer” do STAPE acerca da posição da câmara de voto por modo a obter, destes, a alteração da posição em que a mesma antes ocupava por decisão da mesa, com a parte fechada e opaca voltada para o sítio da mesa e das demais pessoas presentes no lugar da assembleia de voto e que, na nova posição, permite ver ou deixa presumir o comportamento e a escolha do eleitor aquando da votação.» Foi solicitada a requisição das actas de todas as mesas/secções de voto e do apuramento geral e oficiado o STAPE para juntar cópia certificada da comunicação por telecópia e respectivo relatório de transmissão, como requerido pela recorrente. Notificados os mandatários das restantes forças políticas concorrentes às eleições autárquicas no mesmo município, só foi apresentada resposta por parte da mandatária do Partido Socialista, entrada neste Tribunal a
26 de Dezembro. No dia 28 de Dezembro deram entrada os elementos solicitados ao Governador Civil de Beja (20 actas de operações eleitorais e actos de apuramento da eleição e da proclamação dos candidatos eleitos aos órgãos das autarquias locais do concelho de Mértola) e ao STAPE. Na resposta da mandatária do Partido Socialista (PS) – instruída com cópias das necessárias procurações, a troca de missivas com o STAPE e uma das suas páginas na Internet, cópia do acórdão n.º 740/97 do Tribunal Constitucional, cópia autêntica da acta de apuramento da eleição e da proclamação dos candidatos eleitos aos órgãos das autarquias locais do concelho de Mértola e ainda com um original da acta das operações eleitorais da secção de voto n.º 4 da freguesia de Mértola e cópias autenticadas das actas das operações eleitorais da secção de voto n.º4 da freguesia de Mértola e cópias autenticadas das actas das operações eleitorais da secção de voto n.º 2 da freguesia de S. João das Caldeiras, da secção de voto n.º 1 de Alcaria Ruiva e da secção de voto n.º 5 da freguesia de Mértola – pugna-se pela confirmação da regularidade do processo de votação, não se verificando qualquer ilegalidade, e dizendo-se, quanto à disposição das câmaras de voto que aquele que “prevaleceu na maioria das assembleias é a que melhor preserva com rigor o segredo de voto, ficando as câmaras colocadas de modo a que, quer os membros da mesa, quer os delegados, não possam descortinar o sentido dos eleitores e a figura do eleitor possa ser observada na íntegra (de costas) por todos os membros da mesa e delegados, como sugeriu o STAPE”, evitando, “além do mais, as suspeitas verificadas em actos eleitorais anteriores, nomeadamente no de 1997, sobre a substituição dos boletins de voto fornecidos pela mesa por outros trazidos do exterior da assembleia, verdadeiros ou não (...)”. II. Fundamentos
2. Como se depreende da transcrição das conclusões do recurso, são três as questões que se pretende trazer à apreciação deste Tribunal: a) a da interferência do STAPE, por interposto “representante, delegado ou mandatário de concorrente à eleição”, na liberdade dos membros das secções de voto para definirem a posição da câmara de voto no sentido de assegurarem o segredo e a liberdade do voto de cada eleitor; b) a da falsidade das actas em que se não contenha reclamação de mandatários ou representantes de uma lista concorrente no sentido de ser mudada a disposição da câmara de voto, ou que omita a deliberação tomada pela mesa sobre tal disposição, ou os protestos formulados por eleitores; c) a da possível interferência com a liberdade e o segredo de voto da disposição adoptada para as câmaras de voto em resultado do referido em a).
3. Nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 223º da Constituição, cabe ao Tribunal Constitucional “julgar em última instância a regularidade e a validade dos actos do processo eleitoral, nos termos da lei”, “remetendo-se a fixação da respectiva disciplina jurídica para a lei ordinária, é a Lei n.º 28/82 , de 15 de Novembro, que a vem estabelecer (...)” (como se escreveu no acórdão n.º
269/98, publicado no Diário da República [DR], II série, de 31 de Março de 1998)
– e esta lei determina que o Tribunal tem competência para julgar os recursos contenciosos interpostos de actos administrativos definitivos e executórios praticados pela Comissão Nacional de Eleições ou por outros órgãos da administração eleitoral (alínea f) do artigo 8º). Por seu lado, o n.º 7 do artigo 102º-B da mesma lei, artigo aditado pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, estabelece que o recurso interposto de decisões de outros órgãos da administração eleitoral segue as regras do recurso contencioso das deliberações da Comissão Nacional de Eleições. Ora, mesmo que pudesse considerar-se o fax enviado à mandatária do Partido Socialista, assinado por alguém em nome da Directora-Geral do STAPE, como uma decisão (o que poderia tentar inferir-se da alteração da redacção em relação a um anterior e-mail ao que parece enviado à mesma destinatária em nome daquela Directora-Geral – cfr. fls. 49 dos autos), sempre estariam por preencher os requisitos procedimentais previstos no referido artigo para que o Tribunal Constitucional dela pudesse conhecer. O que é dizer que se poderá – preenchidos que estejam os devidos requisitos – avaliar o resultado da intervenção do STAPE no processo de votação (é o que se enunciou como questão c), supra), mas não o próprio acto do STAPE, traduzido em estabelecer e comunicar regras sobre a disposição das câmaras de voto, em correspondência dirigida a uma das forças políticas candidatas às eleições (o que se deixou enunciado como questão a), supra).
4. Das actas das operações eleitorais disponibilizadas ao Tribunal, só três fazem referência à deliberação tomada sobre a disposição das mesas de voto e aos protestos que tal disposição gerou. Entende a signatária do recurso, porém, que tal implica falsidade das restantes actas. A forma prevista pela lei (artigo 121º, n.º 1, da LEOAL) para a apresentação dos protestos contra irregularidades verificadas no decurso da votação é, porém, a forma escrita. E, caso tenha sido apresentado algum protesto sob essa forma, ele deverá encontrar-se em apenso à dita acta, nos termos do n.º
2 do mesmo artigo, segundo o qual a mesa não pode negar-se a receber as reclamações, os protestos e os contraprotestos, devendo rubricá-los e apensá-los
às actas A mais de os protestos referidos não estarem apensos, não é isso sequer invocado, elencando-se antes nomes de eleitores que terão protestado, sim, mas apenas oralmente. Ora, sem protesto escrito não tem que haver deliberação sobre ele, e sem deliberação sobre um protesto não há que registar em acta, designadamente, a deliberação tomada sobre a disposição das câmaras de voto.
É certo que em três assembleias de voto, mesmo sem protesto escrito (apenso à acta) houve deliberação registada na acta. Na verdade, à excepção das da 1ª secção de voto de Alcaria Ruiva e da 5ª secção de voto de Mértola, as actas das operações eleitorais são omissas quanto à deliberação sobre protestos apresentados pelos eleitores sobre a disposição das câmaras de voto, e, salvo na da 2ª secção de voto de Alcaria Ruiva, não ficou nelas registada a deliberação sobre a disposição dessa câmara de voto. Ora, tendo em conta que não há, nem pode haver, outra prova sobre a existência de tais protestos, e, decisivamente, porque os próprios delegados da lista que agora recorre, através da sua mandatária, da falsidade das actas, assinaram as referidas actas, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso nesta parte. E fica, portanto, prejudicado o conhecimento das questões de falsidade elencadas em b), supra. Como estabelece o n.º1 do artigo 156º da LEOAL, as irregularidades ocorridas no decurso da votação podem ser apreciadas em recurso contencioso,
“desde que hajam sido objecto de reclamação ou protesto apresentado no acto em que se verificaram” e (tendo em conta que o protesto tem de ser escrito) no caso não se pode concluir que o tenham sido.
5. Quanto à terceira e última questão – que é, recorde-se, a da interferência com a liberdade e o segredo de voto da disposição adoptada para as câmaras de voto –, há que a circunscrever às duas secções de voto em que houve registo em acta de protestos apresentados quanto à disposição das câmaras de voto, justamente porque só em relação a elas se verifica esse pressuposto de recurso: a secção de voto n.º5, da assembleia de voto da freguesia de Mértola – em que a disposição contestada foi alterada, mas apenas depois de terem votado os primeiros dez eleitores (além dos membros da mesa) – e a secção de voto n.º 1 da assembleia de voto de Alcaria Ruiva. Na outra secção onde a disposição da câmara de voto foi objecto de deliberação registada em acta – a secção de voto n.º 2 da freguesia de Alcaria Ruiva – foi decidido, por maioria absoluta, que “a câmara de voto se localiza exactamente no mesmo local dos anteriores actos eleitorais”, pelo que, para o que ora releva, a ela se não tem de atender.
6. Na secção de voto n.º 1 da assembleia de voto de Alcaria Ruiva votaram 328 eleitores. Ora, é certo que, a admitir-se que uma disposição das câmaras de voto como a contestada “originou um constrangimento sobre os eleitores que se viram privados da liberdade e do segredo no acto de votar”, como alegado pela recorrente, tal poderia ter tido influência nos resultados das eleições – e quer para a assembleia de freguesia da mesa em causa (pois ainda que o tivesse tido em outras meses, a falta de um protesto escrito e de deliberação desfavorável registada em acta impediria a sua consideração neste momento), quer, eventualmente, para a Assembleia Municipal, quer para a Câmara Municipal, desde logo, por ser impossível determinar o número de votos condicionados e os resultados finais serem influenciados nessa mesa. O que não parece ser de admitir é, porém, que a disposição contestada das mesas de voto possa ter o efeito alegado sobre a liberdade e a confidencialidade do voto, pelo menos, tendo tal disposição sido efectuada nos termos recomendados pelo órgão de administração eleitoral em questão (como a própria recorrente admite) – ou seja, sujeita ao condicionalismo explicitado na primeira parte da respectiva missiva. Recomendava-se nesta que:
“Os membros das mesas eleitorais devem localmente assegurar a correcta disposição, na sala, da mesa de trabalho e da câmara de voto por forma a que, por um lado seja rigorosamente preservado o segredo de voto – ficando as câmaras de voto colocadas de modo a que quer os membros da mesa quer os delegados não possam descortinar o sentido de voto dos eleitores – e, por outro, que a figura do eleitor possa ser observada no íntegra (de costas) por todos os membros da mesa e delegados.” (itálicos aditados) Por outro lado, pode ler-se na própria acta da secção de voto n.º 1 da freguesia de Alcaria Ruiva:
“Antes da abertura da secção de voto, a mesa, por maioria dos seus membros, deliberou colocar a câmara de voto, por forma a que a figura dos eleitores, ao votar, pudesse ser observada na íntegra, de costas, por todos os membros da mesa e delegados. A deliberação foi contestada pelo Sr. Delegado efectivo da lista da CDU – Coligação Democrática Unitária, por considerar que tal posicionamento da câmara de voto não salvaguardaria inteiramente o segredo de voto. Tal contestação foi feita através de um protesto oral. A mesa manteve a decisão inicialmente tomada, face ao protesto apresentado, fundamentando-se no facto de considerar que o posicionamento da câmara de voto, como decidido, salvaguardaria inteiramente a confidencialidade do voto dos eleitores.” (itálico aditado) E também na acta da assembleia de apuramento geral se encontra, a propósito desta secção de voto, a apreciação da questão de “saber se se pode considerar mantido o direito à confidencialidade do voto, nos casos em que a Câmara de Voto está colocada por forma a que as costas do eleitor fiquem de fronte para a Mesa”, tendo-se deliberação por unanimidade “no sentido de não ser posta em causa a confidencialidade do voto.” Não pode, na verdade, considerar-se que o posicionamento em causa da câmara de voto, correspondendo à informação do STAPE tenha vulnerado, só por si, a liberdade e a confidencialidade do voto dos eleitores, como decorre, não só no próprio teor da informação do STAPE, mas também da falta de protestos noutras secções de voto (salvo as já referidas) e da idêntica apreciação uniforme da mesa de voto e da assembleia de apuramento geral, em termos que não se afiguram susceptíveis de ser postos em causa apenas com base numa eventual prova testemunhal de sentido diverso, cuja falibilidade é bem conhecida (e isto, mesmo independentemente da questão de saber se é em geral admissível tal tipo de prova em processos eleitorais deste tipo). Pelo que não se encontram motivos para conceder provimento ao recurso, no que diz respeito à questão referida sob a alínea c), quanto a esta secção de voto.
7. Resta a secção de voto n.º 5 da Assembleia de Freguesia de Mértola. Nesta, porém, a disposição das câmaras de voto contestada pela recorrente só vigorou para os dez primeiros eleitores, tendo a partir daí a mesa deliberado manter o posicionamento tradicionalmente dado às câmaras de voto (e isto, mesmo deixando em aberto apurar se o protesto nesta secção se referiu ao exercício do direito de voto pelos dez primeiros eleitores ou tão-só à colocação da câmara de voto, como, distinguindo entre as duas questões, se decidiu na assembleia de apuramento geral, por isso não se apreciando o protesto na parte relativa
àqueles dez primeiros eleitores). Depois de se ter concluído que há que negar provimento ao recurso quanto à secção de voto tratada no número anterior (a secção de voto n.º 1 da assembleia de voto de Alcaria Ruiva), e mesmo sem se poder distinguir, de entre o conjunto dos votos nessa secção, quais são os dez votos que eventualmente poderiam ser influenciados pela disposição das câmaras de voto contestada, já se pode, porém, concluir que uma alteração do sentido de tais dez votos seria insuficiente para alterar em qualquer sentido a distribuição de mandatos, ou seja, o “resultado global da eleição”, quer para a Assembleia Municipal, quer para a Câmara Municipal, quer para a Assembleia de Freguesia em questão (para a primeira, em qualquer caso o PS manteria 8 mandatos e a CDU 7; para a segunda, sempre o PS manteria 3 mandatos e a CDU 2; e, para a terceira, , sempre o PS manteria 5 mandatos e a CDU 4). Como se escreveu no acórdão n.º 860/93 (DR, II série, de 10 de Maio de 1994, a propósito da norma do artigo 105º do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro, paralela à que actualmente consta do artigo 160º da LEOAL), “o artigo
105º é claro quanto às condições em que o recurso para o Tribunal Constitucional comporta a consequência nele prevista: as ilegalidades em causa só relevarão para efeitos de julgar a eleição nula, conforme pretende o recorrente, quando possam influir no resultado global da eleição do órgão autárquico.” Ora, como também se disse nesse aresto, “é esta específica projecção no resultado eleitoral que não se encontra provada no processo (...)”, desde logo, por os votos dos primeiros dez eleitores da secção de voto n.º 5 da Assembleia de Freguesia de Mértola não serem susceptíveis de ter tal influência. Também nesta parte não há, pois, que conceder provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Lisboa, 4 de Janeiro de 2002 Paulo Mota Pinto José de Sousa e Brito Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa