Imprimir acórdão
Processo n.º 143/14
1ª Secção
Relator: Conselheiro João Pedro Caupers
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O ora reclamante A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 24.º e seguintes da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (fls. 350-358), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 31 de julho de 2013 (fls. 210-221), que, «na qualidade de autoridade de execução do MDE anterior que legitimou a entrega às autoridades italianas em 25.1.2013 do cidadão italiano A.», prestou «o seu consentimento para que o referido cidadão possa em Itália cumprir as penas crime a que se referem os três MDE», referidos no acórdão, que foram recebidos nos autos «em data posterior àquela entrega (artº 3º/g e artº 4º/a), c) e d) da Lei n.º 65/2003 de 23.8)», concluindo o seguinte:
«1ª- O Acórdão recorrido viola/violou o princípio da especialidade que foi expressamente invocado pelo detido A. logo na audição de 24.01.2013;
2ª- O princípio da especialidade mostra-se transposto para o direito interno no artigo 7º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, único diploma legal que rege esta matéria, norma que foi erradamente interpretada -logo violada - pela decisão recorrida;
3ª- Não pode em circunstância alguma, mais a mais tratando-se de matéria de interpretação de lei criminal, lançar-se mão para efeitos hermenêuticos da extinta Decisão-Quadro porque é a Lei 65/2003 de 23 de Agosto que agora nos diz tudo e comanda o que diz respeito ao princípio da especialidade;
4ª- A decisão recorrida fez uma leitura literal da al. g) do nº 2 do art. 7º da referida Lei 65/2003 de 23.08 o que conduziu, erradamente, à conclusão absurda de que sendo o Estado Português o Estado de Execução, este poderia consentir que a pessoa entregue pudesse ser privada de liberdade por infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu;
5ª- A redação do nº 4 do art. 7º da Lei nº 65/2003 de 23.08 que remete para al g) do nº 2 do mesmo é reconhecido pelo MºPº nestes autos como parcialmente ininteligível acabando por repristinar o artigo 27 da Decisão-Quadro, repristinação esta que é ilegalmente corroborada pelo Acórdão recorrido;
6ª- As eventuais dificuldades de interpretação do citado normativo não podem ser resolvidas através da repristinação de normas revogadas pelo tratado de Lisboa e pela transposição feita pela Lei nº 65/2003 de 23.08, porque só os órgãos do poder legislativo têm competência para alterar esse ou qualquer outro normativo que esteja em vigor;
7ª- O douto Acórdão recorrido violou o art. 7º da Lei 65/2003 de 23.08 ao ter reconhecido que os três novos MDE cabiam nas exceções do nº 2 do mesmo, esvaziando assim o princípio da especialidade a que o ora recorrente não renunciou;
8ª- Princípio da especialidade invocado pelo ora recorrente determina forçosamente a recusa/negação da extensão do consentimento requerida pelas autoridades italianas para os três novos MDE;
9ª- Tal recusa/negação da extensão do consentimento para os três novos MDE não inviabiliza a possibilidade das autoridades italianas fazerem uso do procedimento extradicional normal em vez do procedimento simplificado do MDE.
10ª- O Acórdão recorrido, ao ter violado a Lei pela forma supra descrita, incluindo a própria Constituição, acabou por se quedar pelo simples controlo formal das decisões/sentenças apresentadas nos três novos MDE, quando se tivesse havido algum controlo substancial das mesmas ter-se-ia detetado que o segundo e o terceiro MDE respeitam à mesma sentença porque a última foi aplicada ex vi do CP italiano - não há duas penas distintas mas uma só de 1 ano, oito meses e 28 dias».
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de janeiro de 2014 (fls. 420-440) julgou improcedente o recurso interposto por A. e confirmou «a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que prestou consentimento para que o mesmo possa cumprir em Itália as penas de um ano e cinco meses de reclusão (…); um ano e seis meses de reclusão (…) e um ano e nove meses de reclusão (…) a que se referem os mandados de detenção europeu emitidos e que foram recebidos» nos autos «em momento posterior àquela entrega inicial (artigo 3.º g) e 4.º a9 c) e d) da Lei 65/2003».
2. Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi, então, interposto recurso de constitucionalidade (fls. 465-478), mediante requerimento no qual se conclui o seguinte:
«1ª O douto acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 2014, ao proceder à interpretação corretiva do nº 4 do art.º 7º da Lei 65/2003, violou as garantias do processo criminal consagradas no art.º 32º da CRP;
2ª A Lei 65/2003 de 23.08 transpôs para o direito interno a Decisão Quadro nº 2002/584//JAI do Conselho de 13 de Junho, fixando no seu art.º 34º o Código do Processo Penal como direito subsidiário e é ela que regula o caso dos autos;
3ª A interpretação corretiva utilizada no douto acórdão do STJ de 22.01.2014 para confirmar a decisão da Relação de Lisboa de 31 de Julho de 2013 não só viola o artigo 32º da CRP como também o art.º 161º al c) da mesma ao ter criado uma norma legal para aplicação direta nos autos, alterando a expressão Estado de Emissão por Estado de Execução;
4ª Tal recusa/negação da extensão do consentimento para os três novos MDE não inviabiliza a possibilidade das autoridades italianas fazerem uso do procedimento extradicional “normal” em vez do procedimento simplificado do MDE.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser declarada a inconstitucionalidade do douto acórdão recorrido por violação dos artigos 32º e 161º da CRP, ordenando-se em conformidade a aplicação da Lei 65/2003 de 23 de Agosto sem que se interprete correctivamente o seu art.º 7º nº 4, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»
Foi proferida decisão sumária - a Decisão Sumária n.º 177/2014 –, na qual se decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso (fls. 501-504), com base nos seguintes fundamentos:
«Um dos requisitos do recurso interposto é a suscitação prévia da questão de constitucionalidade cuja apreciação é requerida a este Tribunal (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC). Requisito que não se pode dar como verificado nos presentes autos, o que obsta a que se tome conhecimento do objeto do recurso interposto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
Com efeito, durante o processo, não foi questionada a conformidade constitucional de uma qualquer norma. Perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, o que o recorrente sustentou foi a violação do princípio da especialidade, consagrado no artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto. Isto é: o recorrente não questionou propriamente a conformidade constitucional de norma reportada a este preceito legal, entendendo antes que a violação daquele artigo importava também a violação da Constituição. Não convocou sequer qualquer norma ou princípio constitucional.»
3. Da decisão sumária o recorrente reclamou para a conferência (fls. 508-511) com os seguintes fundamentos:
«Salvo o devido respeito pela opinião contrária, que é muito, a decisão liminar de não tomar conhecimento do objeto do recurso deverá ser revista pelos Senhores Conselheiros sob pena de se tomar eficaz o Acórdão do STJ que, sem qualquer sombra de dúvida viola/violou os artigos 32º e 161º al c) da CRP, e só com a respetiva notificação é que o ora reclamante passou a estar em condições de invocar a violação daquelas normas constitucionais.
Na verdade, a questão sub júdice só ganhou forma com a prolação do citado aresto do STJ, na medida em que é na sua fundamentação que se encontra bem patente a tal interpretação corretiva e a consequente repristinação associada à mesma que acaba por implicar, grosso modo, a violação dos princípios subjacentes aos mencionados preceitos da CRP.
Senhores Juízes Conselheiros, como resulta das conclusões da interposição do recurso para o STJ, designadamente da 6ª e da 10ª, o ora reclamante invocou a inconstitucionalidade que se estava a verificar ou a ocorrer com a mencionada repristinação da norma da decisão quadro e com a interpretação mais do que corretiva criativa que o Tribunal da Relação de Lisboa havia feito no seu Acórdão de 31.07.2013.
De facto nessa oportunidade disse o ora reclamante, a concluir o seguinte:
[…]
Para uma melhor compreensão do que se pretende transmitir a V. Exas, sempre com a devida vénia, insiste-se seguidamente na transcrição de apenas das duas conclusões que de uma forma objetiva – mas embora não totalmente concisa quanto ao apontamento das normas violadas – suscitaram em devido tempo e no devido lugar a questão da inconstitucionalidade que acabou por ser apresentada nesse Venerando Tribunal Constitucional aquando da interposição do presente recurso:
6ª- As eventuais dificuldades de interpretação do citado normativo não podem ser resolvidas através da repristinação de normas revogadas pelo tratado de Lisboa e pela transposição feita pela Lei nº 65/2003 de 23.08, porque só os órgãos do poder legislativo têm competência para alterar esse ou qualquer outro normativo que esteja em vigor;
10ª- O Acórdão recorrido, ao ter violado a Lei pela forma supra descrita, incluindo a própria Constituição, acabou por se quedar pelo simples controlo formal das decisões/sentenças apresentadas nos três novos MDE, quando se tivesse havido algum controlo substancial das mesmas ter-se-ia detetado que o segundo e o terceiro MDE respeitam à mesma sentença porque a última foi aplicada ex vi do CP italiano - não há duas penas distintas mas uma só de 1 ano, oito meses e 28 dias.
Ora, quando o ora reclamante alegou que “só os órgãos do poder legislativo têm competência para alterar esse ou qualquer outro normativo que esteja em vigor” estava implícita e tacitamente a invocar o art. 161º da CRP, designadamente da sua al. c), o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
Ainda que isso pareça impossível de acontecer, a verdade é que tanto os Senhores Desembargadores da Relação de Lisboa como os Senhores Conselheiros do STJ legislaram numa matéria reservada pela CRP à Assembleia da República ou ao Governo com autorização prévia da primeira, transformando à revelia da CRP o poder judicial em poder legislativo para desse modo se forçar uma decisão que possa fazer sentido para efeitos da requerida extensão dos MDE: só que a circunstância da citada norma está mal redigida jamais pode/poderá ser corrigida por qualquer tribunal que na sua decisão se sirva de uma espécie de errata que diga “onde se lê a emissão leia-se execução”
Sucede também que a douta decisão da Exma. Sra. Conselheira Relatora foi tomada sem sequer ter sido o recorrente, ora reclamante, convidado a esclarecer através do aperfeiçoamento da sua motivação do recurso qual ou quais as normas da CRP em causa e/ou como é que considerava preenchido o requisito do art. 70º nº 1 al b) da LCT, o que seria certamente mais conforme à salvaguarda dos direitos constitucionais, que na modesta opinião daquele terão sido suspeitados.
O presente recurso constitui, por conseguinte, a última etapa da via jurisdicional deste caso e, precisamente por isso, só depois de conhecido o Acórdão do STJ é que o ora reclamante viu reunidas as circunstâncias e os requisitos para recorrer para o Venerando Tribunal Constitucional: não o podia fazer antes porque a Lei não consagra um recurso per saltum nestes casos, sendo necessário que o STJ dissesse efetivamente que reconhecia como válida e eficaz a tal interpretação corretiva que foi usada na douta decisão da Relação de Lisboa de 31.07.2013.»
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4. É pressuposto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) a suscitação, pelo recorrente, da questão de inconstitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
A Decisão Sumária deu este pressuposto por não verificado por não ter sido questionada, durante o processo, a conformidade constitucional de uma qualquer norma.
Na presente reclamação, o reclamante alega que, como resulta das conclusões das alegações do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, designadamente da 6.ª e da 10.ª, invocou a inconstitucionalidade que ocorria com a repristinação da norma da decisão quadro e com a interpretação corretiva que o Tribunal da Relação de Lisboa havia feito no seu acórdão de 31 de julho de 2013. Defende que, nas duas referidas conclusões, suscitou «em devido tempo e no devido lugar a questão de inconstitucionalidade» que apresentou a este Tribunal aquando da interposição do presente recurso.
Ora, como resulta manifesto da leitura das conclusões formuladas nas alegações do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, supra transcritas, o então recorrente não colocou à apreciação daquele tribunal uma questão de constitucionalidade normativa, a única passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade. Dito de outro modo: não suscitou a inconstitucionalidade de normas convocáveis para a decisão da causa, tendo-se limitado a imputar a inconstitucionalidade à decisão recorrida alegando que o acórdão ao interpretar erradamente o artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto e ao repristinar normas revogadas pelo Tratado de Lisboa e pela transposição feita pela Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, violou o princípio da especialidade e a lei, incluindo a Constituição.
Na presente reclamação, o reclamante alega, também, que foi só com a notificação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é que passou a estar em condições de invocar a violação do artigo 32.º e da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, pois a questão sub judice só ganhou forma com a prolação deste aresto, na medida em que é na sua fundamentação que se encontra bem patente a interpretação corretiva e a consequente repristinação associada à mesma que implica a violação dos princípios subjacentes aos mencionados preceitos da Constituição.
Ora, não só esta alegação é contraditória com a afirmação de que suscitou «em devido tempo e no devido lugar a questão de inconstitucionalidade» que apresentou a este Tribunal, como é, manifestamente, improcedente porquanto a decisão recorrida não adotou uma interpretação surpreendente, inesperada ou imprevisível que permitisse dispensar o recorrente do ónus de suscitação prévia. Como o próprio reclamante admite, quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade quer na presente reclamação, o acórdão recorrido não fez uma interpretação surpreendente antes confirmou, no essencial, o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa
III. Decisão
5. Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 28 de março de 2014. – João Caupers – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.