Imprimir acórdão
Procº nº 102/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Não tendo P..., pago a coima de Esc. 6.000$00 que lhe foi aplicada pelo Inspector Regional do Trabalho em 15 de Abril de 1998 por indiciada violação do disposto nos artigos 44º e 46º do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro, foi instaurado no Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada processo de execução, tendo aquela acoimada vindo a proceder ao pagamento voluntário da quantia em dívida.
Por despacho de 27 de Janeiro de 1999, o Juiz daquele Tribunal determinou que ao produto da coima se aplicasse o disposto no artº 4º do Decreto Legislativo Regional nº 17/86-A, de 16 de Agosto, na redacção do Decreto Legislativo Regional nº 14/90-A, de 7 de Agosto, por isso que considerou inconstitucional e ilegal o prescrito na alínea a) do nº 1 do artº 131º do Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, 'na medida em que retira à região, a favor do Estado, uma receita que lhe estava legalmente atribuída', já que, na sua óptica, isso violava os artigos
164º, alínea b), e 229º, nº 1, alínea i), ambos da Lei Fundamental, e 'porque a legislação nacional não pode, quando aplicada numa Região Autónoma, contrariar o que dispõe o respectivo Estatuto'.
2. Do assim decidido recorreu, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Procurador-Adjunto junto do aludido Tribunal.
Determinada a feitura de alegações, concluiu o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa a que produziu do seguinte modo:-
'1º- A norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, ao estabelecer que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas de qualquer natureza cobradas em juízo, ainda que constituam receitas das Regiões Autónomas, por força do preceituado em norma constante do respectivo Estatuto Político-Administrativo, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 164º, alínea b) e 228º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na redacção então em vigor.
2º - Tal norma padecerá ainda de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, vício este que é do conhecimento deste Tribunal, nos termos do artigo
70º, nº 1, alínea e) da Lei nº 28/82.
3º - Termos em que deverá confirmar-se a recusa de aplicação da norma que constitui objecto do presente recurso'.
Cumpre decidir.
II
1. Preliminarmente, sublinhe-se que, no vertente recurso, só será analisado o descortinado juízo de inconstitucionalidade incidente sobre a norma
ínsita na alínea a) do nº 1 do artº 131º do Código das Custas Judiciais, na medida em manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem ressalvar as que o forem nas Regiões Autónomas.
E unicamente se o fará pela circunstância de a presente impugnação ter sido alicerçada, e só, na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, e não já na alínea e) dos mesmos número e artigo.
Isto posto, passemos ao conhecimento do objecto do recurso, já que a ele nada obsta.
2. A norma em crise, ou seja a norma constante da alínea a) do nº 1 do artº 131º do Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei nº
224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril, dispõe que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, salvo se constituírem receitas do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante (cfr., sobre a intenção do legislador de 1997 ao alterar a redacção daquele preceito, o que se contém no exórdio do falado Decreto-Lei nº 91/97).
De harmonia com o despacho impugnado, tal norma, na medida em que retirou à Região Autónoma dos Açores uma receita que lhe estava legalmente atribuída, assim contrariando o que se dispõe no respectivo Estatuto Político-Administrativo, enfermava de inconstitucionalidade.
Será assim?
É o que se irá ver.
2. Tendo em conta o modo como actualmente se encontra redigida a alínea a) do nº 1 do artº 131º do Código das Custas Judiciais, facilmente se verifica que o produto das coimas cobradas em juízo e cuja aplicação resultou de prática de acções ou da ocorrência de omissões localizadas nas Regiões Autónomas, não entra nas excepções nelas prescritas, motivo pelo qual aquele produto constituirá receita do Cofre Geral dos Tribunais.
Ora, para se decidir se a norma sub specie enferma do vício descortinado na decisão recorrida, mister é, por um lado, saber se a matéria concernente à arrecadação, pelas Regiões, das receitas originadas por coimas nelas cobradas, consta do respectivo Estatuto Político-Administrativo e, por outro, se a constar, essa mesma matéria é algo que deva ser considerado materialmente estatutário.
Adianta-se, desde já, que, in casu, deve ser dada resposta positiva a ambas as questões.
2.1. De acordo com o que se estatuía na Lei Fundamental, na versão vigente à data da emissão da norma em apreço (a versão decorrente da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho), cometia à Assembleia da República aprovar os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas [cfr. artigo
164º, alínea b)], competência que não podia ser delegada no Governo [cfr., também, os artigos 229º, nº 1, alínea e), e 228º, designadamente o seu nº 4, aplicável à alteração de tais Estatutos e, hoje, os artigos 161º, alínea b),
227º, nº 1, alínea e), e 226º].
Assim sendo, a regulação das matérias que devam constar daqueles Estatutos estão sujeitas à denominada «reserva de lei estatutária» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 847), pelo que não podem sofrer tratamento legislativo que não por intermédio de lei parlamentar e obedecer ao procedimento previsto na Constituição, onde avulta a iniciativa por banda das Assembleias Legislativas Regionais.
Na Lei Fundamental (indicada versão), dispunha-se que eram poderes das Regiões Autónomas, a definir nos respectivos Estatutos Político--Administrativos, para além do poder legislativo que lhes é conferido, o poder tributário próprio, nos termos da lei, e disporem das receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhes fossem atribuídas e afectá-las às suas despesas [cfr. alínea i) do nº 1 do artigo 229º e, hoje, alíneas i) e j) do nº 1 do artigo 227º; cfr., ainda, o artº 19º da Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro - Lei das Finanças Regionais] e definir actos ilícitos de mera ordenação social e respectivas sanções, sem prejuízo do respeito pela observância do regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo - matéria esta da reserva relativa de competência da Assembleia da República - [cfr. citado artigo 229º, nº 1, alínea p), e, hoje, o também mencionado artigo 227º, nº 1, alínea q)].
Aquando da vigência do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores decorrente da revisão operada pela Lei nº 9/87, de 26 de Março, eram, entre outros, considerados como constituindo receitas dessa Região
[t]odos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no seu território, incluindo o imposto do selo, os direitos aduaneiros e demais imposições cobradas pela alfândega, nomeadamente impostos e diferenciais de preços sobre a gasolina e outros derivados do petróleo - artº 95º, alínea b)
[idêntica norma consta da versão agora em vigor do aludido Estatuto Político-Administrativo e que resultou da Lei nº 61/98, de 27 de Agosto - cfr. artº 102º, alínea b)].
3. Do que vem de se dizer resulta, pois, que a matéria tocante ao produto das sanções pecuniárias resultantes dos ilícitos de mera ordenação social cometidos no território da Região Autónoma dos Açores, para além de constar do respectivo Estatuto Político-Administrativo, tem, inequivocamente, de considerar-se como algo de materialmente estatutário, desta sorte a respectiva normativização só podendo ser levada a efeito por lei indelegável da Assembleia da República e mediante o procedimento constitucionalmente consagrado.
Ora, tendo a norma em causa procedido a uma alteração do regime concernente a essa matéria, e sendo ela originada por um diploma emitido pelo Governo, então há que concluir que a mesma enferma do vício de inconstitucionalidade orgânica.
III
Em face do exposto, o Tribunal decide:-
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 164º, alínea b), em conjugação com o artigo 228º, números 1 e 4, ambos da versão da Constituição resultante da Revisão Constitucional levada a efeito pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, a norma constante da alínea a) do nº
1 do Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril, na parte em que prescreve que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, e cuja aplicação resultou de prática de acções ou da ocorrência de omissões localizadas nas Região Autónoma dos Açores;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso. Lisboa, 12 de Maio de 1999 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa