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Processo n.º 1232/2013 (OPHVE)
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e B., sujeito a obrigação de permanência em habitação com vigilância eletrónica, e recorridos o Ministério Público e C., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (de ora em diante, LTC), relativamente ao acórdão proferido pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 08 de janeiro de 2013 (fls. 2771 a 2808), posteriormente confirmado, ainda que sujeito a aclaração e retificação, por acórdão proferido, pelo mesmo Tribunal e Secção, em 12 de março de 2013 (fls. 2906 a 2909), foram interpostos os seguintes recursos:
i) Por A., em 26 de janeiro de 2013 (fls. 2819 a 2833), depois reiterado em 03 de abril de 2013 (fls. 2948), para que sejam «julgadas inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos» (fls. 2832 e 2833); para além disso, mais se afirmou que «foi violado o direito de recurso do Recorrente, sobre a decisão da matéria de facto tomada em primeira instância e consagrado no artº 32º nº [1] da CRP, tendo sido ainda consequentemente, violado o disposto nos artigos 412º nº 3, 4 e 6 e 428º, ambos do CPP, na medida em que foram interpretados no sentido de não haver lugar à reapreciação da matéria de facto impugnada pelo Recorrente, quando tal interpretação se afigura inconstitucional, por contender com o princípio acima referido e consagrado no artº 32º nº 1 da CRP» (fls. 2832 e 2948);
ii) Por B., em 01 de abril de 2013 (fls. 2937 a 2937), para que seja «apreciada a inconstitucionalidade das normas do[s] artigos 409.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P., com a interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida, segundo a qual, perante recurso apenas do arguido, concedendo provimento parcial ao recurso, porque foi desqualificado o crime do art. 144.º do Código Penal quanto à alínea b), mas sem alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância, não se encontra dependente da proibição de “reformatio in pejus”, pois não foi feita qualquer correção à pena parcial ou única» (fls. 2937);
2. Por sua vez, após reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de decisão sumária, proferida em 26 de abril de 2013 (fls. 2971 a 2973), que não admitiu recurso por si interposto para o Supremo Tribunal de Justiça – reclamação essa que viria a ser indeferida – D. interpôs recurso, em 03 de maio 2013 (fls. 2984), ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, relativamente à referida decisão sumária, para que seja apreciada a seguinte questão:
«(…) indicando como fundamento para este recurso a al. f) do n.º 1 do art. 70.º da lei do TC [al. f) porque a questão da interpretação dessas normas mencionadas – art.ºs 411 e 414 na redação da nova Lei que alterou o CPPP – só nesta fase se colocou, tendo em conta a interpretação apresentada na decisão sumária], pretendendo a apreciação da legalidade da norma constante dos art.sº 411 e 414 do CPP na redação da Lei 20/13 de 21 de fevereiro, com a interpretação que lhe foi conferida pelo tribunal “a quo” na decisão sumária» (fls. 2984).
3. Devidamente notificados para proferirem alegações, ainda que com a advertência de que os recursos poderiam vir a não ser conhecidos por as interpretações normativas que elegeram como seu objeto não terem sido efetivamente aplicadas pelo Tribunal recorrido e quanto ao recorrente D. por o meio processual constante da al. f) do artigo 70º/1 da LTC não constituir meio adequado (cfr. o despacho da Relatora, a fls. 2996 e 2996-verso), os recorrentes A. e D. deixaram esgotar o prazo legal, sem que tenham vindo aos autos apresentar quaisquer alegações escritas.
4. Por sua vez, o recorrente B. produziu alegações, cujas conclusões foram as seguintes:
«1. O Tribunal recorrido aplicou, ou deixou de aplicar, a norma ínsita no art. 409.º do CPP, na interpretação de que perante uma alteração favorável da qualificação jurídica - por absolvição de uma das duas agravantes.
2. Primeiramente no acórdão que conheceu do recurso, e depois, quando conheceu do pedido de aclaração e de correção que obteve provimento parcial.
3. Pelo que o objeto deste recurso deve ser conhecido.
4. O tribunal recorrido operou uma alteração da qualificação jurídica favorável ao recorrente, a seu pedido, determinando-se a sua absolvição quanto a umas das duas agravantes de um dos crimes em que foi condenado.
5. Contudo, as penas parcelar e única foram manipuladas no sentido de serem mantidas, não obstante a reformatio in melius.
6. Fez assim o tribunal de recurso um juízo de censura mais severo que a 1ª instância.
7. A destruição da lógica de a uma incriminação menos grave corresponder, em princípio, uma pena também menos grave (não mais grave) - lógica que determinará o arguido à impugnação do julgado quanto à qualificação feita no tribunal recorrido - cria um constrangimento ao arguido que situaria próximo da temeridade a interposição de recurso, comprometendo não só os direitos de defesa como a própria realização da justiça.
8. Ficam assim limitados de uma forma desproporcional e intolerável os direitos de defesa do arguido, violando-se as normas constantes nos artigos 32º, nºs 1 e 5 da C.R.P» (fls. 3036 e 3037)
5. Delas legalmente notificado, o Ministério Público veio apresentar as seguintes contra-alegações:
«V - Conclusões
29. Pretende o recorrente B., nos presentes autos, “ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do artigo 409º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P., com a interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida, segundo a qual, perante recurso apenas do arguido, concedendo provimento parcial ao recurso, porque foi desqualificado o crime do art. 144º do Código penal quanto à alínea b), mas sem alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância, não se encontra dependente da proibição de reformatio in pejus, pois não foi feita qualquer correção à pena parcial ou única”.
30. Fundamenta o recorrente o seu pedido de declaração da inconstitucionalidade das normas identificadas na violação do disposto no artigo 32, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
31. Contudo, apesar da abrangência normativa do objeto do recurso desenhado, pelo arguido, no seu requerimento de interposição de recurso, os fundamentos e conclusões da alegação limitam aquele objeto às normas jurídicas consubstanciadas no n.º 1, do artigo 409.º do Código de Processo Penal.
32. Analisado o teor do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, resulta não ter este aplicado, em qualquer momento decisório, o disposto no n.º1, do artigo 409.º, do Código de Processo Penal.
33. Mais resulta, que a norma – ou normas – constante daquele normativo – o n.º1, do artigo 409.º, do Código de Processo Penal - não é, sequer, convocável enquanto fundamento jurídico da deliberação proferida, na medida em que é estranha ao processo intelectivo que conduziu à decisão.
34. Ou seja, a norma legal cuja constitucionalidade se questiona não constituiu ratio decidendi da decisão impugnada.
35. Acresce que se verifica, no caso vertente, que o impugnante não contesta a conformidade da norma do n.º1, do artigo 409.º, do Código de Processo Penal, com a constituição mas apenas dissente do conteúdo da decisão judicial que, no seu entender, e incongruentemente, não aplicou devidamente aquela norma do Código de Processo Penal.
36. Em conclusão, entende o Ministério Público, ora recorrido, que não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do presente recurso.»
6. Face à invocação de fundamentos de não conhecimento do objeto do recurso (já aludidos no despacho de notificação para alegações escritas), a Relatora proferiu novo despacho (vide fls. 3038), para que o recorrente viesse aos autos, querendo, no prazo reduzido de 5 (cinco) dias pronunciar-se sobre essa questão, nos termos dos artigos 654º, n.º 2, e 655º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC.
Apesar de convidado para o efeito, o recorrente B. deixou esgotar o prazo, sem que tenha vindo aos autos pronunciar-se sobre aquela questão.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Quanto aos recursos interpostos por A. e D., impõe-se apenas verificar que, apesar de devidamente notificados para o efeito, nenhum deles apresentou alegações escritas perante este Tribunal, pelo que, de acordo com o artigo 78º-B, n.º 1, da LTC, devem ser julgados desertos.
8. Quanto ao recurso interposto por B., verifica-se que a interpretação normativa que este elegeu como objeto do recurso – extraída do artigo 409º, n.ºs 1 e 2 do CPP – não corresponde, de modo fidedigno, à que foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida. Em suma, o recorrente questiona a constitucionalidade de uma interpretação normativa daquele preceito legal que, face à desqualificação de crime previsto no artigo 144º, alínea b), do Código Penal, por via da procedência parcial de recurso, não conduza à diminuição da medida concreta da pena aplicável. Isto porque, de outra forma, tal traduzir-se-ia num subterfúgio à proibição de “reformatio in pejus”, pois, no fundo, apesar da diminuição da intensidade do ilícito dos vários crimes em concurso, manter-se-ia sanção idêntica. Sucede, porém, que a decisão recorrida não se limitou a desconsiderar os efeitos da alteração da qualificação jurídica dos factos cometidos sobre a medida concreta da pena, antes tendo considerado que essa desqualificação de um dos crimes não envolvia, num cômputo global, a diminuição do grau de ilicitude dos factos concretamente cometidos. Veja-se, então:
«Ao contrário do alegado pelo recorrente, o tribunal ponderou os reflexos da alteração da qualificação jurídica na medida da pena, consignando a fls. 69 do acórdão: “… O facto de não reconhecermos como preenchida a al. b) do art. 144º, em relação a um dos crimes não significa que se deva ter a ilicitude como de intensidade inferior à ponderada pelo tribunal recorrido, pois não se determinou qualquer alteração aos factos assentes pela 1ª instância, revelando os mesmos um elevado grau de ilicitude pela forma como foi atingida a integridade física do ofendido e pelo sofrimento causado”. Decorrendo o elevado grau de ilicitude dos factos e não da sua qualificação jurídica, entendeu o tribunal que a alteração desta, no caso concreto, não implicava o reconhecimento de diminuição da ilicitude, motivo por que não teve reflexo na medida concreta da pena (a elevada ilicitude e culpa decorrem dos vários disparos dirigidos ao corpo da vítima, como se refere a fls. 69/70 do acórdão, a alteração da qualificação jurídica não apaga as consequências descritas nos factos provados).» (fls. 2908)
E, mais do que isso, o acórdão, proferido em 08 de janeiro de 2013, que deu causa à decisão ora recorrida, frisa bem que o recorrente foi condenado pelo tipo de ilícito agravado constante do artigo 145º, n.º 1, alínea b), por referência ao artigo 132º, n.º 2, alíneas c) e h), não só por força do preenchido da alínea b) do artigo 144º, mas igualmente por força da alínea c) do mesmo preceito legal, quanto aos danos provocados à vítima C.. Ou seja, foi condenado em concurso efetivo por dois crimes de ofensa à integridade física grave, agravados pelo resultado morte, um deles por se ter verificado o preenchimento de ambas aquelas alíneas [b) e c) do artigo 144º] – no caso, da vítima C. – e, outro deles, apenas pela referida alínea c). Assim se conclui, sem qualquer dúvida, do seguinte trecho da decisão recorrida:
«Assim praticou o recorrente B. os dois crimes de ofensas à integridade física graves e qualificadas, por que foi condenado, embora no caso do ofendido C. agravado, apenas, pela alínea c), do art. 144 e não também pela al. b) desse preceito.» (fls. 2803-verso)
Em suma, nenhum dos crimes foi alvo de desqualificação, sucedendo apenas que um deles apenas foi qualificado por uma das possíveis fontes de agravação do mesmo.
Daqui decorre que, em última análise, o que o recorrente questiona é a operação de aplicação da medida concreta da pena, ou seja, a decisão jurisdicional propriamente dita. Ora, o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar a inconstitucionalidade de decisões jurisdicionais (artigo 280.º da CRP).
Independentemente disso, este Tribunal não deve decidir sobre o mérito da questão colocada pelo recorrente – ou seja, a de saber se a não diminuição da medida concreta da pena, em caso de desqualificação de determinado facto que preencha um tipo de ilícito penal, viola a proibição de “reformatio in pejus” e, portanto, o princípio da proporcionalidade e as garantias de defesa –, mas apenas verificar que a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida é bem diferente da que o recorrente elegeu como objeto do presente recurso. Ora, por força do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional só pode conhecer de questões de inconstitucionalidade que resultem de interpretações normativas efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, sob pena de subverter o conteúdo decisório dos seus próprios julgamentos, razão pela qual se decide não conhecer do objeto do presente recurso.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se:
a) Julgar desertos os recursos interpostos pelos recorrentes A. e D.;
b) Não conhecer do objeto do recurso interposto pelo recorrente B..
Custas devidas pelo recorrente, B., fixando-se a taxa de justiça em 12 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 26 de março de 2014.- Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.