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Processo n.º 70/2012
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
(Conselheiro José Cunha Barbosa)
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei de Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional do acórdão daquele Tribunal, proferido em 20.12.2011, por nele ter sido recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, a norma do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009).
2. Os presentes autos foram instaurados como processo de contraordenação, nos quais veio a ser proferida, pela Autoridade para as Condições de Trabalho, decisão que condenou “A., Lda.” a pagar a coima de € 9 800,00, e, bem assim, determinou B. como responsável solidário com aquela pelo pagamento da coima aplicada.
Notificados da referida decisão e, bem assim, para proceder ao pagamento do montante da coima aplicada, ambos vieram impugná-la, dela interpondo recurso para o competente Juízo de Trabalho da Comarca do Baixo Vouga (Aveiro-1.ª Secção).
Por decisão datada de 04.07.2011, foram tais recursos julgados improcedentes e, em consequência, mantida a decisão de condenação, ainda que, por reformulação do cúmulo jurídico, se tenha reduzido a coima única para a quantia de € 5 000, 00.
De novo inconformados com tal decisão, os aí recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo apresentado as respetivas alegações em que pediram a alteração do decidido.
O Ministério Público, junto do Juízo de Trabalho de Aveiro, apresentou a sua resposta a tais alegações na qual concluiu, em essência e síntese, pela improcedência de tais recursos.
Por acórdão proferido em 20.12.2011, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu absolver o gerente B. como responsável solidário pelo pagamento da coima, em tudo o mais confirmando a sentença impugnada.
Ao fazê-lo, recusou a aplicação ao caso da norma do n.º 3 do artigo 551.º do Código de Trabalho (2009), com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 3 da CRP.
Na sua fundamentação, glosando a pertinente jurisprudência do Tribunal Constitucional, o acórdão considerou que a norma em questão consagra a possibilidade da transmissão da responsabilidade contraordenacional, que seria equiparável à responsabilidade penal, o que não seria permitido pela Constituição, equivalendo à punição dos administradores, gerentes ou diretores em termos de responsabilidade objetiva, ou seja, sem necessidade da verificação da imputação subjetiva a título de culpa.
É desse acórdão que se mostra interposto o presente recurso de constitucionalidade.
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações em que conclui da seguinte forma:
«…
1. Diferentemente do que ocorre com o artigo 7.º-A do RGIFNA e artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, não se vislumbra no n.º 3 do artigo 551º do Código do Trabalho de 2009, que a responsabilidade solidária pelo pagamento da coimas, decorra de uma qualquer conduta própria e autónoma relativamente àquela que levou à aplicação da sanção à pessoa coletiva.
2. Na graduação da coima aplicada à pessoa coletiva, foram tidos em atenção, exclusivamente, os critérios que a ela diziam respeito e nenhuma circunstância que dissesse respeito ao administrador.
3. Assim, a norma do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho de 2009, que estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores, é inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
4. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso
…».
4. Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Ao Tribunal Constitucional é solicitada a apreciação da conformidade constitucional da norma contida no n.º 3 do artigo 551.º do Código de Trabalho (2009), na medida em que aí se estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.
Ora, a questão da responsabilidade dos representantes legais de um ente coletivo (gerentes, diretores, administradores) pelo pagamento de coima quando o sujeito responsável pela contraordenação é a própria pessoa coletiva não é nova na jurisprudência constitucional. De facto, em vários arestos, teve o Tribunal Constitucional ensejo de se debruçar sobre a validade constitucional do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras (RJIFNA), e do artigo 8.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), que lhe sucedeu.
Atento o facto de a questão de constitucionalidade agora em apreciação, ainda que tendo por objeto o artigo 551.º, n.º 3, do Código de Trabalho (2009), apresentar afinidades com aquela que esteve subjacente àqueles preceitos (nesse sentido, v. João Soares Ribeiro, “Contraordenações laborais/2009”, Código do Trabalho – a Revisão de 2009, coord. Paulo Morgado de Carvalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 508-509), é proveitoso reconstruir o trilho da jurisprudência constitucional nesta matéria, relevando os problemas e as orientações vertidas nos principais arestos.
Assim, no Acórdão n.º 561/11 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional o artigo 7.º-A do RJIFNA, “na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação fiscal.” Dele resultam três conclusões relevantes.
Em primeiro lugar, considerou o Tribunal que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas multas ou coimas a que hajam sido condenadas as pessoas coletivas, cujo não pagamento lhes seja imputável ou resulte de insuficiência do património da devedora que lhes seja atribuída a título de culpa, é responsabilidade civil – qualificação já antes veiculada no Acórdão n.º 129/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Tal responsabilidade assenta, assim, “não no próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal. É esse facto, de caráter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil”.
Não se tratando a responsabilidade consagrada naquele preceito de responsabilidade contraordenacional, o Tribunal concluiria, em consonância, que a situação em análise não levantava qualquer problema no que concerne a intransmissibilidade da responsabilidade penal, inscrita no artigo 30.º, n.º 3, da CRP e motivada pelo princípio da pessoalidade das penas.
No entanto, mesmo para quem qualifique a responsabilidade in casu como responsabilidade contraordenacional, certo é que duas circunstâncias sempre obstariam, no entender do aresto agora apreciado, à inconstitucionalidade do artigo 7.º-A do RJIFNA. A primeira decorre do facto de não se verificar qualquer fenómeno de transmissão de responsabilidade, visto que para que a responsabilidade subsidiária possa ser imputada aos gerentes e administradores são adicionalmente necessários requisitos onde releva (sempre) a conduta daqueles, “designadamente quanto à decisão de não satisfazer o encargo resultante da aplicação da coima, e quanto à culpa na verificação da insuficiência patrimonial da pessoa coletiva”. A segunda assenta na pressuposição, já antes veiculada nos Acórdãos n.os 50/03, 160/04 e 129/09 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), de que “a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa”.
Este foi, em síntese, o juízo expendido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 561/2011, confirmando, desse jeito, aquilo que já se retirava do Acórdão n.º 437/11 (disponível em www.tribunalconstitucional), que não julgou inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1 do RGIT.
Já num outro aresto – o Acórdão n.º 481/2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – decidiu o Tribunal, em termos inteiramente transponíveis para o artigo 8.º, n.º 1 do RGIT (v. o Acórdão n.º 26/11, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 7.º-A, do RJIFNA, na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação fiscal”. Para fundamentar um juízo de sentido inverso ao que havia sido expendido no Acórdão n.º 129/09, o Tribunal Constitucional extraiu três conclusões da maior relevância.
Desde logo, qualificou a responsabilidade subsidiária inscrita no preceito em causa como responsabilidade contraordenacional, e não como responsabilidade civil, considerando que tal responsabilidade deveria entender-se como “um instrumento auxiliar de consecução dos objetivos repressivos e preventivos associados às multas e às coimas”.
Ainda assim, entendeu o Tribunal que o problema da intransmissibilidade das penas e da consequente violação do princípio da pessoalidade não se colocava, atenta a ausência de uma situação de transmissão de responsabilidade. Concluiu, com efeito, que “não basta a insuficiência patrimonial do devedor originário para que o devedor subsidiário seja chamado à responsabilidade, como é timbre num regime de subsidiariedade autêntica: a isso tem que acrescer, como pressuposto necessário, um facto da autoria do devedor subsidiário e a ele imputável: a causação culposa da situação obstativa da satisfação do crédito emergente da multa”.
O artigo 7.º-A do RJIFNA não escaparia, porém, ao juízo de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, dado que, “na concretização da medida da coima, é completamente ignorado aquele fator atinente à pessoa do responsável, sendo-lhe aplicado o montante sancionatório que resultara da valoração da conduta de um outro sujeito, devedor originário”.
6. A resposta à questão de saber se a responsabilidade estabelecida no artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho (2009) assume ou não natureza contraordenacional não é simples.
Aquele preceito teve como antecessores o artigo 4.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações Laborais (Lei n.º 116/99, de 4 de agosto) e o artigo 617.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003, nos quais se podia ler o seguinte:
«...
Artigo 4.º
Sujeitos responsáveis pela infração
1 — São responsáveis pelas contraordenações laborais e pelo pagamento das coimas:
a) A entidade patronal, quer seja pessoa singular ou coletiva, associação sem personalidade jurídica ou comissão especial;
b) A empresa de trabalho temporário e o utilizador, nos casos de trabalho temporário, e as empresas cedente e cessionária nos casos de cedência ocasional de trabalhadores;
c) O agente da entidade patronal, conjuntamente com esta, nos casos em que a lei especialmente o determine;
d) O dono da obra, nos casos em que a lei especialmente o determine.
2 — Se um subcontratante, ao executar toda ou parte da empreitada nas instalações do empreiteiro ou em local onde a mesma se realize, violar disposições relativas à segurança, higiene e saúde no trabalho ou à idade mínima de admissão, o empreiteiro é responsável solidariamente pelo pagamento da correspondente coima, se se demonstrar que agiu sem a diligência devida.
3 — O disposto no número anterior é igualmente aplicável a outros contratos de prestação de serviço em que o serviço contratado seja executado, no todo ou em parte, por um subcontratante.
4 — Se o infrator ou o prestador de serviço referido nos números anteriores for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com esta, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.
...»
«...
Artigo 617.º
Sujeitos
1 — Quando um tipo contraordenacional tiver por agente o empregador abrange também a pessoa coletiva, a associação sem personalidade jurídica, bem como a comissão especial.
2 — Se um subcontratante, ao executar toda ou parte do contrato nas instalações do contratante ou sob a sua responsabilidade, violar disposições a que corresponda uma infração muito grave, o contratante é responsável solidariamente pelo pagamento da correspondente coima, salvo demonstrando que agiu com a diligência devida.
3 — Se o infrator referido no número anterior for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.
...»
Embora alguma doutrina visse nessas normas um desiderato de “mera garantia de satisfação da sanção pecuniária”, considerando que a mesma consagrava uma responsabilidade solidária, não quanto à infração, mas antes quanto ao pagamento da coima em que a pessoa coletiva fora condenada, pois tanto bastaria para que aquela garantia de satisfação fosse alcançada (João Soares Ribeiro, “Análise do Novo Regime Geral das Contraordenações”, Questões Laborais, 2000, p. 20), uma outra posição doutrinária considera fictícia a separação entre a responsabilidade pelo cometimento da contraordenação, a recair sobre a pessoa coletiva, e a responsabilidade pelo pagamento da coima, a recair sobre a pessoa coletiva e respetivos administradores ou gerentes (v. Nuno Brandão, “O regime sancionatório das pessoas coletivas na revisão do Código Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – textos doutrinários, Coimbra Editora, 2009, p. 469). Isto porque a coima constitui uma “sanção de caráter repressivo”, entendida enquanto “advertência social ao agente”, pelo facto de este não ter respeitado a ordem vigente, e cuja finalidade é essencialmente a de “reafirmação dessa mesma ordem vigente” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 165-166; e João Matos Viana, “A (in)constitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas coimas aplicadas à sociedade”, Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, n.º 2, 2009, p. 203).
Como é bom de ver, o artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho (2009) permite que um terceiro, que não o agente do facto, seja coresponsabilizado pelo pagamento da coima, “independentemente da sua participação na comissão da infração” (Nuno Brandão, ob. cit., p. 470), e independentemente de lhe ser autonomamente imputável a causação culposa de uma qualquer situação obstativa de satisfação do crédito junto do infrator, corresponsabilização essa que é, aliás, acentuada através da consagração de um regime de responsabilidade solidária (ao invés de subsidiária).
Em sentido contrário, argumentar-se-á que o terceiro fica apenas responsável pelo pagamento da coima, não lhe sendo transmitida a autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada. À objeção de que seria fictícia a separação entre a responsabilidade pelo cometimento da contraordenação, a recair sobre a pessoa coletiva, e a responsabilidade pelo pagamento da coima, a recair sobre a pessoa coletiva e respetivos administradores ou gerentes, contrapor-se-á que a relevância jurídica da separação assenta no facto de, dependendo da infração que estiver em causa, poder admitir-se, em abstrato, que, juntamente com o pagamento de uma coima, a pessoa coletiva responsável pela contraordenação ter sido também condenada em sanções assessórias de natureza não-pecuniária (cf. artigo 562.º do mesmo Código), pelo cumprimento das quais aqueles sujeitos não ficam responsáveis. Por que assim é, é, pelo menos, duvidoso que se possa, com rigor, falar sequer em transmissão da responsabilidade – qualquer que seja a sua natureza – ou mesmo qualificar a responsabilidade como contraordenacional, estabelecendo antes a norma sub judicio um instrumento de natureza civil que atribui ao credor – a autoridade administrativa competente pelo processo contraordenacional – o poder de exigir a um terceiro o cumprimento, através do pagamento da coima, da obrigação que tem como sujeito passivo a pessoa coletiva.
Seja qual for o entendimento que se adote sobre a natureza da responsabilidade estabelecida na norma do artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho (2009) – matéria que, aliás, pertence ao domínio do direito infraconstitucional –, tal norma não viola a Constituição.
7. Ainda que se desse por assente que a responsabilidade contida no artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho (2009) é de natureza contraordenacional, jamais essa qualificação, efetuada no plano do direito infraconstitucional, se revelaria só por si determinante para efeitos do juízo sobre a sua conformidade constitucional.
De acordo com uma certa leitura da jurisprudência do Tribunal Constitucional que analisámos (v. supra, ponto 5), a natureza da responsabilidade do agente teria sido decisiva para o juízo sobre a conformidade constitucional das normas em apreciação. Com efeito, teria sido pela circunstância de aí se ter afastado a natureza contraordenacional do título por que é responsabilizado o agente (tendo-se considerado aí prever-se antes uma forma de responsabilidade civil subsidiária), que o Tribunal, nos acórdãos n.os 129/2009 e 437/2011, se não teria determinado pela inconstitucionalidade das normas então em apreciação.
Simplesmente, não é essa a correta leitura da referida jurisprudência do Tribunal Constitucional. Desde logo, nos acórdãos n.os 129/2009 e 437/2011, ao afastar que as normas aí em apreciação se reconduzissem ao domínio contraordenacional, o Tribunal, logicamente, não tomou qualquer posição – não tinha de o fazer – sobre a questão da extensão da proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal à responsabilidade contraordenacional. Aliás, no acórdão n.º 129/2009, na senda do que já antes se escrevera no acórdão n.º 160/2004, o Tribunal Constitucional, ao afirmar que “[a norma do artigo 30.º, n.º 3 da Constituição] não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contraordenacional”, deixou propositadamente a questão em aberto. Tal significa que a qualificação da responsabilidade – matéria que, de resto, respeita ao plano infraconstitucional – se não afigurou, de todo em todo, determinante para o sentido dessas decisões.
A isso acresce que, no acórdão n.º 481/2010, o fundamento do juízo de inconstitucionalidade não radica na natureza contraordenacional da responsabilidade em si mesmo considerada – que, nos termos desse aresto, ainda seria conforme à Constituição – mas noutros aspetos de regime.
Por último, a circunstância de se não afigurar determinante a qualificação como contraordenacional da responsabilidade é expressamente sublinhada no acórdão n.º 561/2011, pois, embora aí se tenha afastado estar-se perante uma situação de responsabilidade contraordenacional, acrescentou-se que, mesmo que se houvesse de entender o contrário, isto é, que a responsabilidade in casu assumia natureza contraordenacional, daí não decorreria que os princípios constitucionais fossem violados. Não o seria, porque, como aí se escreveu “[...] no domínio contraordenacional, não são automaticamente aplicáveis os princípios que regem a legislação penal, designadamente no que toca às exigências da autoria do ato-tipo para efeito de incriminação”.
Em suma, não decorre de todo em todo da jurisprudência constitucional o entendimento segundo o qual aí onde houver responsabilidade contraordenacional haverá violação da Constituição, designadamente no que se refere ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade penal (artigo 30.º, n.º 3).
8. Não existe na jurisprudência do Tribunal Constitucional uma reflexão sobre os termos em que as normas que contêm princípios constitucionais com relevo em matéria penal valem no domínio contraordenacional.
A inexistência dessa reflexão explica-se, em parte, por razões que se relacionam com as características do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, designadamente o facto de a extensão da apreciação que é feita pelo Tribunal estar processualmente limitada pela utilidade que a mesma produza sobre o caso concreto, o que condiciona a realização de uma interpretação integrada da Constituição como sistema normativo.
Tal não significa, note-se, que o Tribunal Constitucional não tenha tomado já posição sobre questões de recorte mais fino, tais como a extensão ao domínio contraordenacional de determinados princípios constitucionais com relevo em matéria penal, designadamente aquele ou aqueles princípios (princípio da legalidade ou da tipicidade; princípio de non bis in idem; princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável, princípio da proibição dos efeitos automáticos das penas; princípio da culpa; princípio do contraditório, princípio nemo tenetur; etc.) que se tivessem por pertinentes para a apreciação da conformidade constitucional da “norma do caso” (v., infra, ponto 9). Simplesmente, no que respeita à questão, de âmbito mais amplo, sobre os termos em que as normas e os princípios constitucionais com relevo em matéria penal valem no domínio contraordenacional, debalde se procurará uma reflexão sobre a mesma na jurisprudência deste Tribunal.
À razão de ordem processual que já vimos explicar a inexistência de uma reflexão sobre a matéria, podemos adicionar uma razão de ordem metodológica relacionada com a própria estrutura das normas constitucionais que contêm princípios. É que tais normas são insuscetíveis de comportar uma aplicação segundo uma lógica de tudo-ou-nada, através de uma operação que nelas procure subsumir parcelas da realidade que caibam na sua previsão normativa. À questão de saber se as normas constitucionais que contêm princípios com relevo em matéria penal ordenam o domínio contraordenacional é impossível responder através de um método que se limite a identificar a situação de facto abstratamente prevista para assim verificar se a parcela da realidade se subsume à previsão normativa ou dela está excluída. A estrutura normativa do princípio requer, pois, uma hermenêutica própria.
Diversamente do que se verifica relativamente às normas constitucionais que contêm regras, que se cumprem através da obediência, os princípios cumprem-se através da adesão (v., nesse sentido, Gustavo Zagrebelsky, Il diritto mite, 2.ª ed., Einaudi, Torino, 1992, nota 96, p. 149), isto é através de processos gradativos de otimização, e não através de processos disjuntivos de sim-ou-não.
Porque assim é, a ponderação efetuada, atendendo às circunstâncias de cada caso concreto, entre determinado princípio constitucional com relevo em matéria penal e outros direitos, interesses ou valores, necessariamente conduz a juízos valorativos sobre o peso relativo a atribuir a cada elemento que, por definição, não permitem uma tomada de posição categórica sobre a valência dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal no domínio contraordenacional.
Esses dois fatores – de ordem processual, o primeiro; de ordem metodológica, o outro – explicam por que razão a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria da extensão ao domínio contraordenacional dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal se revela necessariamente fragmentária.
E não é óbvio que uma resposta unitária a essa questão seja virtuosa ou sequer viável.
Assim, importa tomar como ponto de partida justamente aquilo que é a jurisprudência fragmentária do Tribunal Constitucional, pelo que, de seguida, se procede a uma análise, ainda que sucinta, das principais decisões em que se pôs o problema da valência de determinados princípios constitucionais com relevo em matéria penal no domínio contraordenacional.
Princípios da legalidade e da tipicidade
9.1. É rica a jurisprudência deste Tribunal sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional.
No acórdão n.º 574/95 (disponível em www.tribunalconstitucional), escreveu-se que “[…] o princípio da legalidade das sanções, o princípio da culpa e, bem assim, o princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida valem, na sua ideia essencial, para todo o direito público sancionatório, maxime, para o domínio do direito de mera ordenação social. (Quanto à extensão aos demais domínios sancionatórios de alguns princípios que a Constituição apenas consagra para as leis penais, cf., entre outros, o acórdão nº 227/92, já citado, e a Doutrina aí indicada)”.
Mais recentemente, no acórdão n.º 466/12 (disponível em www.tribunalconstitucional), disse-se que “[n]ão se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10)”.
Esse aresto inspirou-se, por sua vez, no acórdão n.º 41/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional), o qual, no que se refere à exigência de determinação relativamente ao conteúdo do ilícito típico nas contraordenações, havia sustentado que “[…]a Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes”, embora também houvesse considerado que “[e]stá, porém, consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 158/92, de 23 de abril, 263/94, de 23 de março, publicados no D.R., II Série, de 2 de setembro de 1992 e de 19 de julho de 1994, e nº 269/2003, de 27 de maio, inédito). E se tal não resulta diretamente dos preceitos da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição”.
Desenvolvendo essa ideia, o Tribunal, no já referido acórdão n.º 466/12, afirmou que “[a] determinabilidade do conteúdo de proibições cujo desrespeito é sancionado com uma coima é um pressuposto da existência de uma relação equilibrada entre Estado e cidadão. Na verdade, essa exigência é um fator de garantia da proteção da confiança e da segurança jurídica, uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente as suas condutas se souber qual a margem de ação que lhe é permitida e quais as reações do Estado aos seus comportamentos. E se a menor danosidade da sanção das contraordenações (as coimas), que nunca afetam o direito à liberdade, conjuntamente com a necessidade de prosseguir finalidades próprias da ordenação da vida social e económica, as quais são menos estáveis e dependem, muitas vezes, de políticas sectoriais concretas, permitem uma aplicação mais aberta e maleável do princípio da tipicidade, comparativamente ao universo penal, o caráter sancionatório e a especial natureza do ilícito contraordenacional não deixam de exigir um mínimo de determinabilidade do conteúdo dos seus ilícitos. Uma vez que nas contraordenações a proibição legal assume especial importância na valoração como ilícitas de condutas de ténue relevância axiológica, a sua formulação tem que necessariamente constituir uma comunicação segura ex-ante do conteúdo da proibição aos seus destinatários”.
Importa, por último referir, como exemplo daquilo que é a concretização prática dessa construção jurisprudencial, o acórdão n.º 85/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que o Tribunal fez depender a conformidade da norma aí em apreciação com as “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” de “[ser] possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas, como ainda antecipar, com segurança, a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito”, tendo ainda precisado ser “[…] nisto que consiste a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais. Importa relembrar, com efeito, que da jurisprudência do Tribunal resulta que o estabelecimento de limites alargados das sanções, no domínio contraordenacional, não consubstancia em si uma violação de princípios constitucionais, devendo avaliar-se se a lei estabelece outros mecanismos que concorrem para a segurança jurídica”.
Em síntese, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional que (i) embora tais princípios não valham “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, eles valem “na sua ideia essencial”; (ii) aquilo em que consiste a sua ideia essencial outra coisa não é do que a garantia de proteção da confiança e da segurança jurídica que se extrai, desde logo, do princípio do Estado de direito; (iii) assim, a Constituição impõe “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” que só se cumprem se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.
Princípio da culpa
9.2. O Tribunal Constitucional também já teve oportunidade de se pronunciar sobre a valência do princípio da culpa no domínio contraordenacional.
Sem menosprezar as considerações feitas nos acórdãos n.os 441/93, 74/95, 574/95, 547/2001 e 117/2007 (qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional), merece destaque o acórdão n.º 344/2007 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que se escreveu que “[…] não pondo em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da igualdade e mesmo o princípio da culpa também vinculem o legislador na configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contraordenação) e respetivas sanções (cfr. acórdão n.º 547/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de julho) é diferente o limite que deles decorre para a discricionariedade legislativa na definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção. Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais em que se funda a afirmação de violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamentação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º1) porque a multa contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na 'Constituição criminal'. Como diz FIGUEIREDO DIAS, O Movimento da Discriminalização…, pág. 29, a propósito da culpa na imputação das contraordenações, também perante uma categoria de infrações, punidas “independentemente de toda a intenção maléfica”, não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal baseada numa censura ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstrata intenção, mas apenas de uma imputação do ato à responsabilidade social do seu autor. Assim entendido, o princípio da culpa pode ser pressuposto da imposição da sanção (fundamento), mas não é um fator constitucionalmente necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, violação dos artigos 1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição”.
Valioso é ainda o que o Tribunal disse no acórdão n.º 336/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional):
“A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contraordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infrações (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit., pág. 150).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
E por isso, se o direito das contraordenações não deixa de ser um direito sancionatório de caráter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica “se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contraordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização.” (FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
Daí que, em sede de direito de mera ordenação social, nunca há sanções privativas da liberdade. E mesmo o efeito da falta de pagamento da coima só pode ser a execução da soma devida, nos termos do artigo 89.º, do Decreto-lei n.º 433/82, e nunca a da sua conversão em prisão subsidiária, como normalmente sucede com a pena criminal de multa.
Por outro lado, para garantir a eficácia preventiva das coimas e a ordenação da vida económica em setores em que as vantagens económicas proporcionadas aos agentes são elevadíssimas, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 433/82 (na redação dada pelo Decreto-lei n.º 244/95), permite que o limite máximo da coima seja elevado até ao montante do benefício económico retirado da infração pelo agente, ainda que essa elevação não possa exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido, erigindo, assim, a compensação do benefício económico como fim específico das coimas.
Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social”.
[…]
Independentemente de qual seja a melhor opção legislativa para a punição do concurso de contraordenações, é seguro que as razões que justificam a solução do cúmulo jurídico em Direito Penal não são transponíveis qua tale para o direito de mera ordenação social.
A necessidade de conter o limite das penas de prisão dentro de parâmetros de possibilidade de execução física das mesmas, de humanidade, de respeito pelas próprias opções do legislador quanto às penas máximas e à ideia de ressocialização justificam o cúmulo jurídico no sistema penal mas já não fazem qualquer sentido em caso de concurso de contraordenações sancionadas apenas com montantes pecuniários.
Por outro lado, o referente da culpa jurídico-penal que permite agregar os vários factos cometidos entre si para efeito de cúmulo jurídico não surge com a mesma importância estrutural no ilícito de mera ordenação social”.
Essa mesma orientação jurisprudencial foi recentemente confirmada no acórdão n.º 110/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que se escreveu que “[…] as diferenças existentes entre a ilicitude de natureza criminal e o ilícito de mera ordenação social obstam a que se proceda a uma simples transposição, sem mais, dos princípios constitucionais aplicáveis em matéria de definição de penas criminais para o espaço sancionatório do ilícito de mera ordenação social.
Como se sublinha no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 336/2008, citando FIGUEIREDO DIAS, existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção, sendo que a diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade”.
E por isso, se o direito das contraordenações não deixa de ser um direito sancionatório de caráter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica «se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contraordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização» (Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 144-152)”.
Já em momento anterior, no acórdão n.º 85/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional), com assertividade, o Tribunal afirmara que “[o] princípio da culpa postula, por um lado, a exigência de uma culpa concreta como pressuposto necessário de aplicação de qualquer pena, e, por outro, a proibição da aplicação de penas que excedam, no seu quantum, a medida da culpa. Mas é sabido que o princípio jurídico-constitucional da culpa (fundado na dignidade da pessoa humana) não vale, como parâmetro, no domínio das contraordenações”.
À exceção do aresto indicado em último lugar, que, de modo categórico, nega qualquer valência do princípio da culpa no domínio contraordenacional, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o princípio da culpa se impõe também como limite à liberdade de conformação do legislador do ilícito contraordenacional, ainda que a margem dessa liberdade seja maior relativamente àquela de que este dispõe na configuração do ilícito penal, designadamente no que se refere à definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção.
Princípio de non bis in idem
9.3. No que se refere ao princípio de non bis in idem, o Tribunal, no acórdão n.º 263/94 (disponível em www.tribunalconstitucional), considerou “[ser] evidente que a problemática do princípio de non bis in idem se põe relativamente a cada direito sancionatório, sendo certo que só no plano do direito criminal o princípio tem expressa consagração constitucional. Poder-se-á sustentar, é claro, que o princípio é aplicável também por analogia nos outros direitos sancionatórios públicos, no âmbito interno respetivo”.
De acordo com esse dictum, em virtude da referida evidência, haveria uma lacuna no texto da Constituição cuja integração se operaria por recurso à analogia.
Princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável
9.4. Sobre a extensão ao domínio contraordenacional do princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável, escreveu-se, no acórdão n.º 227/92 (disponível em www.tribunalconstitucional), que “[t]al princípio […], na sua ideia essencial, há de […] valer também no domínio do ilícito de mera ordenacional social”.
Tal significa que, à imagem do que vimos suceder relativamente aos princípios da legalidade e da tipicidade (v., supra, ponto 9.1.), embora o princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável não valha “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, ele vale “na sua ideia essencial”, ainda que se não tenha ainda desenvolvido um critério que permita densificar o conteúdo do conceito de “ideia essencial” desse princípio.
Princípio da proibição dos efeitos automáticos das penas (artigo 30.º, n.º 4)
9.5. O Tribunal Constitucional teve igualmente oportunidade de se pronunciar sobre a extensão a outros domínios do direito sancionatório público do princípio da proibição dos efeitos automáticos das penas, expressamente consagrado para o direito penal no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição.
No acórdão n.º 282/86 (disponível em www.tribunalconstitucional), entendeu-se que “[o] facto de se não tratar aqui do terreno criminal não impede a aplicação do princípio constitucional do artigo 30º, nº 4. Se às penas criminais não pode acrescentar-se, a título de efeito de pena, a perda de direitos profissionais, por maioria de razão isso está vedado quando se trate de penas sem caráter criminal”.
Essa mesma posição foi, posteriormente, confirmada no acórdão n.º 19/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que se afirmou que “[t]endo em conta que o feito em apreciação se reporta a uma sanção que decorre automaticamente da imposição da pena de multa pelo cometimento de infrações previstas em matéria (hoje) contraordenacional, deverá ser sublinhado que este órgão de administração de justiça tem adotado uma postura de acordo com a qual a injunção contida no nº 4 do artigo 30º do Diploma Básico é também aplicável no domínio do ilícito administrativo (cfr. Acórdãos 282/96, citados Acórdãos, 8º volume, 207 e seguintes, e 522/95, idem, 32º volume, 345 e seguintes).
O argumento é, portanto, o de que se nem mesmo a violação de bens jurídicos dignos de tutela penal consente que à sanção penal possam ser associados efeitos automáticos que se traduzam na perda de direitos, então, por maioria de razão, tal proibição há de valer relativamente à violação de bens jurídicos menos relevantes.
Princípio da proibição de transmissão da responsabilidade penal
9.6. No que se refere ao princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, como já se disse (v. supra, ponto 7), o Tribunal Constitucional não tomou ainda uma posição definitiva sobre a sua valência no domínio contraordenacional.
Não o fez no acórdão n.º 160/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que, depois de se afirmar que “[a] evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a insusceptibilidade de transmissão de “penas” – não se ficou, porém, a dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás, resulta claramente também da nova redação), mas sim evitar que o princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena. Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido da aplicação, no domínio contraordenacional, do essencial dos princípios e normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se escreveu no citado Acórdão n.º 50/03, a “diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contraordenações”. Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contraordenacionais (como se decidiu no Acórdão n.º 158/92, publicado no DR, II Série, de 2 de setembro de 1992) e na diferente natureza e regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. Acórdãos n.ºs 245/00 e 547/01, publicados, respetivamente, no DR, II Série, de 3 de novembro de 2000 e de 9 de novembro de 2001)”, se deixou a questão em aberto, entendendo-se que “[…]a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa”.
O mesmo se diga do acórdão n.º 161/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que, depois de se considerar que “[a] intransmissibilidade da responsabilidade penal, ligada aos princípios da pessoalidade e da culpa, implica a extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente, a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas, mas já não obsta à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, nos termos da lei civil (neste sentido, cf. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, págs. 197-198). Por seu turno, a alteração de redação introduzida na revisão constitucional de 1997 fundou-se na constatação de que a responsabilidade penal se não esgota nas penas já aplicadas, não sendo vislumbrável nessa alteração qualquer propósito de transcender o domínio penal”, se entendeu que “[p]ara a decisão do caso ora em apreço, não carece o Tribunal Constitucional de se comprometer na questão de saber se a regra do artigo 30.º, n.º 3, da CRP é extensível quer à responsabilidade criminal das pessoas coletivas, quer à responsabilidade contra-ordenacional em geral. Quanto a este último aspeto, sempre se dirá, no entanto, que o n.º 10 do artigo 32.º da CRP, incidindo sobre o direito adjetivo, se limita a assegurar no processo contra-ordenacional os direitos de audiência e defesa, e que a eventual extensão ao regime das contra-ordenações de aspetos substantivos do regime dos crimes não pode esquecer a diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem esses dois géneros de ilícito, pelo que a intransmissibilidade de um juízo (definitivo ou hipotético) de censura ética, consubstanciado numa condenação (ou acusação) penal não surge, à partida, como implicando imperativamente similar intransmissibilidade de acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa”.
A propósito do que já havia dito no Acórdão n.º 160/2004, escreveu-se, no Acórdão n.º 129/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional), o seguinte: “[o] referido aresto [o acórdão n.º 160/2004], embora centrado ainda na sobredita questão da transmissão de responsabilidade por incorporação ou fusão de sociedades, não deixa de fornecer elementos decisivos para a interpretação da norma do artigo 30º, n.º 3, da Constituição, salientando que ela não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contraordenacional”.
Tal significa que, até à data presente, o Tribunal Constitucional deixou propositadamente em aberto a questão da valência do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrado no artigo 30.º, n.º 3 da Constituição, no domínio contraordenacional.
Garantias de defesa do arguido
9.7. A projeção na ordem contraordenacional dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal tem sido também discutida na jurisprudência constitucional que versa as garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao recurso.
9.7.1. No acórdão n.º 469/97 (disponível em www.tribunalconstitucional), escreveu-se que “[o] Tribunal Constitucional tem-se pronunciado sobre a natureza do ilícito contraordenacional no sentido de que não deve acolher-se uma estrita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. Acórdão nº 158/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol, pag. 713 e segs), mas sem deixar de sublinhar a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal. Porventura um desses princípios, comuns a todos os processos sancionatórios, que mais constrições impõe ao legislador será, desde logo por direta imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa do arguido, inseridos em um desenvolvimento processual em que o princípio do contraditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura acusatória, que não dispositiva, da atuação dos poderes públicos. Imediatamente aplicáveis são esses princípios logo na fase administrativa do processo contraordenacional, por exigência do nº 8 do artigo 32º da Constituição. Mas não fará sentido aceitar que os mesmos não tenham projeção na fase recursória posterior, que corresponde à jurisdicionalização daquele processo. Na verdade, esta segunda fase significa um reforço das garantias do particular (cfr. o Acórdão citado) a quem é imputada determinada infração e seria incongruente introduzir nela alguma modulação que não fosse no sentido do acréscimo daquelas mesmas particulares garantias que a Constituição expressamente consagrou neste domínio”.
Seguindo essa orientação jurisprudencial, no acórdão n.º 278/99 (disponível em www.tribunalconstitucional), afirmou-se que “[n]o domínio do processo contraordenacional, este Tribunal tem-se pronunciado no sentido de uma não estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. acórdão nº 158/92, citado), sem deixar, no entanto, de sublinhar 'a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal', como se escreveu no acórdão nº 469/97, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 16 de outubro de 1997. Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contraordenacional subtrai-o às mais 'rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal' (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, 'Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social'in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564), o que não deixará de se refletir no âmbito do contraditório”. O Tribunal Constitucional admitiu ainda a valência do princípio do contraditório no acórdão n.º 537/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional).
Coerentemente com a sua jurisprudência, e por entender que “[…] no processo contraordenacional valem também as garantias de defesa constitucionais quanto aos direitos de audiência e defesa”, o Tribunal decidiu, no acórdão n.º 265/2001 (disponível em www.tribunalconstitucional), que a norma segundo a qual a falta de formulação de conclusões na motivação de recurso, por via do qual se intenta impugnar a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, implica a rejeição do recurso, sem que o recorrente seja previamente convidado a efetuar tal formulação “[…] representa uma afetação desproporcionada do direito de defesa do impugnante/arguido, na sua dimensão de direito ao recurso, garantido pelo nº 10 do artigo 32º da Lei Fundamental”.
Não obstante o reconhecimento da valência das garantias de defesa também no domínio contraordenacional, o Tribunal Constitucional tem, no entanto, recusado o entendimento de que o legislador ordinário estaria constitucionalmente vinculado a estabelecer no processo contraordenacional exatamente as mesmas garantias de defesa legislativamente estabelecidas no campo processual-penal.
Elucidativo a esse respeito é o que se afirmou no acórdão n.º 395/2002 (disponível em www.tribunalconstitucional): “[t]ão-pouco se pode considerar violado o nº 1 do artigo 32º da Constituição, que consagra todas as garantias de defesa, incluindo o recurso no âmbito do processo criminal, em conjugação com o nº 10 do mesmo artigo que assegura ao arguido os direitos de audiência e defesa nos processos de contraordenação. Efetivamente, o direito de defesa do arguido está garantido nos termos da interpretação normativa posta em causa pela recorrente e inclui, inquestionavelmente, o direito de recurso perante os tribunais. Pretender inferir das normas constitucionais citadas uma determinada forma de contar o prazo para a interposição do recurso ou uma exigência de paridade entre prazos de recurso de decisão de autoridades administrativas (em matéria de contraordenações) e tribunais (em matéria penal) é excessivo”.
Exemplar é ainda o acórdão n.º 313/2007 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que se disse que “[o] direito a uma segunda apreciação jurisdicional apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não sendo esta exigência extensível aos demais processos sancionatórios, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador a estatuição das situações em que se justifique a possibilidade duma dupla apreciação da impugnação judicial, desde que efetuada de forma não arbitrária e proporcional”.
Por último, merece ainda ser referido o acórdão n.º 487/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que, depois de se afirmar que “[a] variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contraordenações, repercute-se a nível adjetivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contraordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal” se concluiu que “[o parâmetro do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição], conforme tem sido entendido pela jurisprudência constitucional, respeita ao processo criminal e não pode ser diretamente aplicado aos processos contraordenacionais, não havendo, assim, uma imposição constitucional ao legislador ordinário de equiparação de garantias no âmbito do processo criminal e do contraordenacional”.
Os três exemplos acabados de referir concretizam o reconhecimento por parte da justiça constitucional de um maior poder de conformação do legislador na ordenação do processo contraordenacional.
9.7.2. Ainda no vasto campo da jurisprudência constitucional em matéria de direitos de defesa do arguido, também no que se refere aos direitos ao silêncio e à não autoincriminação, que, segundo o acórdão n.º 340/2013 (disponível em www.tribunalconstitucional), “devem considerar-se incluídos nas garantias de defesa que o processo penal deve assegurar (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição)”, o Tribunal, no acórdão n.º 461/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional), considerou que “[o] direito à não autoincriminação, nomeadamente na vertente de direito ao silêncio, tendo o seu campo de eleição no âmbito do direito criminal, estende-se a qualquer processo sancionatório de direito público. Porém, o seu conteúdo é diferenciado, consoante o domínio do direito punitivo em que se situe a sua aplicação”.
10. A Constituição, ao determinar, no n.º 3 do artigo 30.º, que «[a] responsabilidade penal é insuscetível de transmissão», vem estabelecer um princípio que define a ordem constitucional da República e que, justamente por se tratar de um princípio, ainda que diretamente incidente no domínio do direito penal, a ele se não encontra confinado.
A caracterização da norma em questão como princípio é determinante para a correta resolução da questão de constitucionalidade.
Com efeito, se se partisse antes do entendimento segundo o qual o preceito constitucional contém uma regra, a resposta à questão de saber se a sua previsão normativa abrange ainda o domínio contraordenacional ou este dela está excluído seria decididamente neste último sentido. Desde logo, nos termos do texto do preceito constitucional apenas é expressamente proibida a transmissão da «responsabilidade penal». A isso acresce que nenhum cânone interpretativo permite que se chegue a um resultado interpretativo que estenda a proibição nela contida a uma responsabilidade de outra natureza (no que respeita à evolução do texto constitucional, v. as considerações feitas no já referido acórdão n.º 160/2004), sendo de difícil superação o argumento segundo o qual, se a Constituição quisesse estabelecer uma proibição de transmissão da sanção além do domínio penal, então não teria confinado a proibição à responsabilidade penal.
Simplesmente, o artigo 30.º, n.º 3 da Constituição não contém uma regra, mas antes um princípio.
Qualquer outro entendimento – que, partindo da sua qualificação como regra, se determinasse pela exclusão do domínio contraordenacional do seu âmbito de aplicação – estaria em contradição com o sistema normativo da Constituição no que se refere à extensão ao domínio contraordenacional dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal, tal como desenvolvida, ainda que de forma fragmentária, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (v., supra, ponto 9).
Do princípio da unidade da Constituição decorre que a resolução da questão de constitucionalidade com a qual o Tribunal Constitucional é confrontado não fique dependente de uma leitura isolada de um determinado preceito constitucional – in casu, o artigo 30.º, n.º 3 –, antes se impondo uma interpretação integrada da Constituição enquanto sistema normativo unitário.
Aliás, foi precisamente esse método de interpretação (o que tem em conta o tópico da unidade da Constituição) que o próprio Tribunal sempre usou, relativamente à determinação do sentido das normas constitucionais com relevo penal. Assim, por exemplo, naquele conjunto de decisões em que foi afirmando que a política criminal de um Estado de direito não poderia deixar de ser uma política assente nos princípios da culpa, da necessidade das penas e das medidas de segurança, da subsidiariedade das penas e da humanidade (vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 83/95 e 548/2001), o Tribunal partiu, para fundamentar toda a sua construção, das ideias da dignidade da pessoa e de Estado de direito em sentido material, decorrentes dos artigos 1.º e 2.º da CRP. Ao fazê-lo, teve evidentemente em linha de conta a unidade do sistema normativo da Constituição. Como teve em linha de conta que as normas desse sistema que expressamente se referem ao domínio das penas e do processo judicial que as aplica têm a estrutura de princípios e não de regras. Tal decorre, não apenas da designação que sempre atribuiu aos “comandos” contidos nessas normas ou delas decorrentes (princípio da culpa, princípio da necessidade da pena, princípio da subsidiariedade), mas ainda do facto de se não ter eximido de proceder a balanceamentos e ponderações entre os valores jurídicos por esses princípios tutelados e outros valores, também com assento constitucional (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos nºs 288/98 e 617/2006).
Assim, se não restam dúvidas que as normas constitucionais com relevo penal têm a natureza e estrutura de princípios, também não restam dúvidas de que tais princípios valerão para o domínio contra-ordenacional, não “com o mesmo rigor” ou com o mesmo grau de exigência” com que valem para o domínio criminal, mas apenas na sua “ideia essencial”. Esta é pois a conclusão firme que se pode retirar da rica jurisprudência constitucional sobre o tema (v. supra, ponto 9).
11. Uma das características dos princípios é a sua capacidade de acomodação ou de adaptação face a outros que com eles conflituam.
No domínio do direito penal, a acomodação dos princípios constitucionais a outros valores que com eles conflituam deve fazer-se (desde logo, por via legislativa), tendo em conta o particular peso dos bens jurídicos individuais que as normas que consagram os primeiros tutelam. Por isso mesmo, tem-se entendido que o dever, que impende sobre o Estado, de emitir normas de protecção de bens jusfundamentais não pode sacrificar os princípios da culpa ou da necessidade e subsidiariedade das penas, atento o peso próprio que estes últimos encontram num sistema constitucional fundado na dignidade da pessoa (por exemplo, os já citados Acórdãos nºs 288/98 e 617/2006).
Diversamente se passarão as coisas no domínio contra-ordenacional, precisamente por aí velarem com “menos rigor” ou com “menos intensidade” os princípios que integram as normas da Constituição com relevo penal.
12. Tal significa que, prima facie, também no domínio contraordenacional valerá o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, devendo tal princípio ser tido em conta na ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na configuração do ilícito contraordenacional.
Por sua vez, deve o Tribunal Constitucional, ao apreciar a conformidade constitucional de uma norma em matéria contraordenacional, verificar se, na ponderação efetuada em sede legislativa, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade foi devidamente integrado.
No que respeita ao critério de densidade de controlo, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional já referida, que, no domínio contraordenacional, é de reconhecer um maior poder de conformação do legislador, o que vale por dizer que deve o Tribunal limitar-se a um controlo de evidência.
Ora, a norma sub judicio, ao comprimir, é certo, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, fá-lo em observância de deveres estaduais de proteção ou de prestação de normas, impendentes sobre o legislador ordinário, destinados a proteger bens jusfundamentais face a potenciais agressões provindas de terceiros, que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c) da Constituição.
Com efeito, através da responsabilização dos respetivos administradores, dirigentes ou diretores pelo pagamento de coima aplicada à pessoa coletiva responsável pela contraordenação laboral, o legislador terá pretendido tornar mais eficaz a efetivação do sistema sancionatório num domínio em que a Constituição lhe comete expressamente deveres de proteção, ainda que sacrificando o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade.
Qualquer juízo sobre a razoabilidade da ponderação, efetuada pelo legislador ordinário, passa por pesar a intensidade do sacrifício imposto pela norma sub judicio ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade e a vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c).
No que respeita ao primeiro aspeto, verifica-se que a norma sub judicio não sacrifica totalmente o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade. Com efeito, os sujeitos ficam apenas responsáveis pelo pagamento da coima, não lhes sendo transmitida a autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada (v. supra, ponto 6).
A isso acresce que a transmissão da responsabilidade não opera entre indivíduos mas sim entre uma pessoa coletiva, entidade responsável pela contraordenação laboral, e titulares de órgãos executivos dessa mesma pessoa coletiva. Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu núcleo.
Por sua vez, no que se refere à vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), é admissível o entendimento segundo o qual o envolvimento, através da assunção coerciva da responsabilidade pelo pagamento da coima, dos administradores, gerentes ou diretores da pessoa coletiva responsável pela contraordenação-laboral, garante, diretamente, uma maior eficácia na cobrança efetiva da coima, e, através disso, indiretamente, uma mais elevada probabilidade de que a infração não chegará sequer a ser cometida, assim se protegendo melhor bens jusfundamentais.
Assim, porque não é possível, segundo um critério de evidência, asseverar que é desnecessário para efeitos de cumprimento dos referidos deveres de proteção o mecanismo de corresponsabilização pelo pagamento estabelecido no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009), o Tribunal Constitucional não pode senão deferir perante o juízo formulado pelo legislador sobre a adequação e necessidade do regime legal.
13. O que acaba de ser dito relativamente ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade vale, por maioria de razão e face ao que atrás ficou dito (supra pontos 10 e 11) no que respeita ao princípio da culpa.
É certo que, nos termos da norma sub judicio, o terceiro fica solidariamente responsável pelo pagamento de uma coima, para a determinação da qual, seja a nível de moldura abstrata seja a nível de medida concreta (designadamente atendendo a fatores tais como a situação económica do agente ou o benefício económico que este retirou da prática da contraordenação), não foi ponderado qualquer elemento atinente à sua pessoa, assumindo o mesmo a totalidade do montante sancionatório que resultara da valoração da conduta de um outro sujeito, devedor originário.
Simplesmente, a assunção coerciva, porque fundada na lei, da responsabilidade pelo pagamento de uma sanção estritamente pecuniária, a que se não encontra associado qualquer efeito jurídico estigmatizante, não comprime o princípio da culpa em termos constitucionalmente desconformes, sobretudo atendendo às razões legislativas que servem de justificação para essa compressão, assentes em deveres estaduais de proteção de bens jusfundamentais.
Assim, face às obrigações impendentes sobre o legislador de observância dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal também no domínio das contraordenações, por um lado, e aquelas que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), por outro, a norma sub judicio realiza um equilíbrio constitucionalmente admissível.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009), quando aí se estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores;
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 3 de março 2014. – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração quanto à fundamentação) – José da Cunha Barbosa (vencido nos termos da declaração de voto junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, mas não acompanho a sua fundamentação.
Concordando com o juízo de não inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 551.º do Código de Trabalho (2009), no ponto em que determina a responsabilidade solidária dos administradores, gerentes ou diretores pelo pagamento da coima aplicada a pessoa coletiva ou equiparada por contraordenação laboral, afasto-me, todavia, da fundamentação expendida no acórdão em sua sustentação.
Em meu entender, a comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento da coima estabelecida na norma em apreciação não tem natureza sancionatória, o que basta para afastar a convocação do parâmetro constitucional contido no artigo 30.º, n.º 3 da Constituição, segundo o qual a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão. Mantenho, pois, a posição que deixei assinalada no voto de vencida que formulei no Acórdão n.º 297/2013 e reiterei no recente Acórdão do Plenário n.º 171/2014 (então, respeitante a uma norma que estabelece idêntica responsabilidade solidária relativamente ao pagamento da quantia fixada na multa aplicada pela infração penal).
Com efeito, na norma sindicada a solidariedade da responsabilidade dirige-se, tão-só, ao pagamento da quantia monetária em concreto (e de natureza fungível) em que se traduz o montante da coima aplicada ao agente da contraordenação laboral, não implicando qualquer outra consequência, designadamente de natureza sancionatória, para o obrigado solidário, decorrente da condenação do infrator (a pessoa coletiva ou equiparada). Trata-se, assim, de uma solidariedade patrimonial, restringida ao pagamento da quantia monetária fixada na coima, e não de uma comunicabilidade da responsabilidade contraordenacional pela prática da infração.
Demonstrada a inadequação do parâmetro contido no artigo 30.º, n.º 3 da Constituição, ou de qualquer outro contido na “Constituição Penal”, restaria testar a conformidade da norma sob apreciação com outros princípios constitucionais aplicáveis, designadamente o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
Ora, a responsabilidade solidária estabelecida no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho encontra justificação nos deveres jurídicos de garante do gerente (administrador ou diretor), bem como na presunção de benefício emergente das infrações cometidas, surgindo como um instrumento adequado aos fins a que se destina: garantir o pagamento da quantia monetária em que a pessoa coletiva foi condenada.
Considerando que a norma ora em apreciação se dirige apenas aos administradores, diretores ou gerentes da pessoa coletiva (ou equiparada), na medida em que aqueles se identificam com a pessoa coletiva que representam, é de concluir ainda que a solidariedade no pagamento da coima surge como necessária para promover a autorresponsabilidade das entidades coletivas.
Finalmente, a regra das obrigações solidárias segundo a qual o obrigado solvente mantém direito de regresso contra o obrigado principal afasta o risco de desproporcionalidade na comunicabilidade desta obrigação.
Maria de Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
O objeto do presente recurso de constitucionalidade, como resulta do exposto supra, consiste em averiguar da conformidade constitucional da norma contida no n.º 3, do artigo 551.º, do Código de Trabalho (2009), na medida em que aí se estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.
Discordamos da tese que mereceu acolhimento maioritário, no acórdão supra, por duas ordens de razões.
Vejamos.
Em primeiro lugar, por se entender que a responsabilidade contida no artigo 551.º, n.º 3, do Código de Trabalho (2009) é de tipo contraordenacional.
Tal preceito teve como antecessores o artigo 4.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações Laborais (Lei n.º 116/99, de 4 de agosto) e o artigo 617.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003. Alguma doutrina via nestas normas um desiderato de “mera garantia de satisfação da sanção pecuniária”, considerando que a mesma consagrava uma responsabilidade solidária, não quanto à infração, mas antes quanto ao pagamento da coima em que a pessoa coletiva fora condenada, pois tanto bastaria para que aquela garantia de satisfação fosse alcançada (João Soares Ribeiro, “Análise do Novo Regime Geral das Contraordenações”, Questões Laborais, 2000, p. 20).
Não há que ensaiar, porém, qualquer separação fictícia entre a responsabilidade pelo cometimento da contraordenação, a recair sobre a pessoa coletiva, e a responsabilidade pelo pagamento da coima, a recair sobre a pessoa coletiva e respetivos administradores ou gerentes (v. Nuno Brandão, “O regime sancionatório das pessoas coletivas na revisão do Código Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – textos doutrinários, Coimbra Editora, 2009, p. 469). Isto porque a coima constitui uma “sanção de caráter repressivo”, entendida enquanto “advertência social ao agente”, pelo facto de este não ter respeitado a ordem vigente, e cuja finalidade é essencialmente a de “reafirmação dessa mesma ordem vigente” (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 165-166; e João Matos Viana, “A (in)constitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas coimas aplicadas à sociedade”, Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, n.º 2, 2009, p. 203).
Como é bom de ver, o artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho (2009) permite que um terceiro, que não o agente do facto, seja corresponsabilizado pelo pagamento da coima, “independentemente da sua participação na comissão da infração” (Nuno Brandão, op. cit., p. 470), corresponsabilização essa que o legislador não tenta, desta feita, escamotear sobre o “manto diáfano” da responsabilidade civil, antes acentua através da consagração de um regime de responsabilidade solidária ao invés de subsidiária.
Em segundo lugar, estando em causa apurar de uma eventual violação do princípio da pessoalidade das penas, dedutível a partir do n.º 3 do artigo 30.º, da CRP, na medida em que aí se verte que “a responsabilidade penal é insuscetível de transmissão”, sendo certo que doutrina e jurisprudência avançam que tal preceito obsta a que “a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento” (cfr. o Acórdão n.º 337/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt e Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra, 2007, p. 504), há que indagar se essa proibição se deve estender também à responsabilidade contraordenacional (cfr. o Acórdão n.º 160/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Não se ousa aqui questionar as diferenças que medeiam entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social. Essas diferenças resultam, desde logo, da génese do direito contraordenacional: com efeito, as contraordenações, sucessoras das contravenções, são expressão do movimento de descriminalização, que ambiciona reservar para o direito penal, enquanto ultima ratio da política social, as condutas que violem bens jurídicos claramente individualizáveis, pondo em causa as condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento da personalidade de cada homem (Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, Direito Penal Económico e Europeu – textos doutrinários, vol. I, Coimbra Editora, 2009, p. 21). Já o ilícito de mera ordenação social caracteriza-se pela neutralidade ético-jurídica da conduta que lhe está subjacente, ou seja, pelo facto de o desvalor da conduta sancionada não ser algo de ontológico, derivando exclusivamente da proibição legal que a determina.
Daqui decorre que a culpa contraordenacional não exprime já um juízo ético de censura sobre a atitude interna manifestada pelo agente perante os valores do Direito, traduzindo-se antes numa advertência social sem qualquer conotação ou estigma ético-social (Augusto Silva Dias, “Crimes e Contraordenações”, Direito Penal Económico e Europeu – textos doutrinários, vol. II, Coimbra Editora, 2009, p. 441). Destarte, “tendo em conta o que acima se referiu, seja na caracterização diferencial entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional, seja no que tange à dissemelhança dos elementos subjetivos de um e de outro dos ilícitos, ser-se-á levado a concluir que se trata de realidades muito diversas” (v. o Acórdão n.º 245/00, bem como os Acórdãos n.ºs 158/92, 344/93, 50/99, 473/01, 395/02, 50/03, 62/03, 249/03, 469/03, 492/03, 77/05, 325/05, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), diversidade essa que, em última instância, se concretiza na libertação da legislação contraordenacional relativamente àquelas que são as categorias e os corolários formais do direito criminal (Eduardo Correia, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX, p. 268).
Sucede que, sem prejuízo da autonomia dogmática e sistemática que vem sendo reconhecida ao direito de mera ordenação social, subsistem princípios comuns aos vários “direitos sancionatórios”. A esse reconhecimento não é imune a jurisprudência constitucional que, no Acórdão n.º 574/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), esclareceu – a este propósito – que o “o princípio da legalidade das sanções, o princípio da culpa, e bem assim, o princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida valem, na sua ideia essencial, para todo o direito sancionatório público, maxime, para o domínio do direito de mera ordenação social”.
Ora, visto que o princípio da pessoalidade das penas radica em boa medida no facto de qualquer sanção punitiva implicar um juízo de censura (social ou ético-jurídica), pressupondo a imputação subjetiva de uma conduta ao agente a título de culpa, há que retirar que a exigência de pessoalidade deve estender-se a todos os domínios sancionatórios, inclusivamente, portanto, à responsabilidade contraordenacional. Ocorre, porém, que a responsabilidade (solidária) gizada no n.º 3 do artigo 551.º, do Código do Trabalho (2009) não cumpre este imperativo de pessoalidade, pois permite, admitindo o que foi dito supra, que a coima recaia sobre pessoa diferente daquela a que é assacado o cometimento da infração.
Daí que se conclua pela inconstitucionalidade do preceito vertente, por violação do princípio da pessoalidade das penas (e das demais sanções de matriz punitiva), extraído do artigo 30.º, n.º 3, da CRP.
J. Cunha Barbosa
DECLARAÇÃO
Acompanho a decisão e, no geral, a fundamentação, mas desta me afasto, em aspectos pontuais relevantes, em particular em relação a certas posições assumidas no âmbito do ponto 10.
Começo por ter as maiores dúvidas que a norma do artigo 30.º, n.º 3, da CRP, possa ser qualificada, em rigor, como um princípio, não obstante ser esta a designação que comumente lhe é dada. Se olharmos para o enunciado (“a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”), a sua estrutura corresponde antes, limpidamente, à de uma regra: tanto a previsão como a estatuição são bem precisas e determinadas e o seu conteúdo não aponta um direcção valorativa, a concretizar, no caso concreto, mediante a mediação constitutiva do legislador ou do intérprete, antes nos transmite, de forma imediata e acabada, uma prescrição proibitiva.
De todo o modo, a qualificação, contrariamente ao que é dito, não “é determinante para a correta resolução da questão de constitucionalidade”
Isto porque, desde logo, a qualificação como regra não resolveria “decididamente” a questão de saber se a sua previsão abrange ainda o domínio contraordenacional ou este dela está excluído. Também as regras, inclusive as constitucionais (ainda que, porventura, em menor grau), podem ser objeto de extensão aplicativa, por via interpretativa.
O Acórdão hipervaloriza, a meu ver, o alcance da distinção entre regras e princípios, no âmbito do sistema dos direitos fundamentais. A fixação do âmbito de proteção, em concreto, de qualquer norma de reconhecimento de um direito fundamental exige sempre uma metódica de ponderação, que leve em conta a tutela conflituante concedida a outros bens igualmente objeto de proteção constitucional. Tal não depende da natureza da norma de reconhecimento, mas da necessária articulação dos recíprocos efeitos restritivos, em concreto, de direitos conflituantes entre si. Não será, pois, a qualificação como regra que impedirá “uma interpretação integrada d a Constituição enquanto sistema normativo unitário”.
O que é decisivo – e essa operação leva-a a cabo o Acórdão – é saber se, do ponto de vista material-valorativo, as exigências decorrentes do princípio da pessoalidade que, no âmbito penal, conduzem à regra estrita do n.º 3 do artigo 30.º, valem, no domínio contraordenacional, com uma intensidade tal que se oponham a que elas cedam na medida necessária para dar efetividade adequada ao direito dos trabalhadores reconhecido no artigo 59.º, n.º 1, alínea c).
A resposta negativa, que também subscrevo, leva à conclusão que o regime impugnado “realiza um equilíbrio constitucionalmente admissível”.
Joaquim de Sousa Ribeiro