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Procº nº 25/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. C..., Ld,ª, deduziu oposição à execução que lhe era movida e que corria seus termos pela Repartição de Finanças de Mafra, execução essa por intermédio da qual se pretendia a cobrança coerciva da quantia de Esc.
17.034.331$00 em dívida pela oponente e resultante de taxas por ela não liquidadas ao abrigo dos Decretos-Leis números 354/78, de 23 de Novembro, e
343/86, de 9 de Outubro.
Por sentença de 16 de Fevereiro de 1994, proferida pela Juiz do 1º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, foi a oposição julgada improcedente, o que motivou que a C... levasse recurso do assim decidido para o Supremo Tribunal Administrativo (Secção do Contencioso Tributário).
Na alegação que produziu, concluiu a recorrente:-
'1- O artº 72º da Lei nº 9/86 de 30 de Março, permitia ao Governo rever ou criar receitas a favor do organismos de coordenação económica ou dos que resultassem da sua reestruturação.
2- Em conformidade, em 1986, pelo DL nº 343/86, foram actualizados os valores das taxas da JNPP.
3- O IROMA foi criado pelo DL nº 15/87 de 9 de Janeiro, que também extinguiu a JNPP.
4- O IROMA não resulta da reestruturação da JNPP, nem faria sentido que assim fosse, pois que o primeiro é um organismo de intervenção de inspiração comunitária e o segundo um organismo de coordenação económica de inspiração corporativa.
5- O artº 72º da Lei nº 9/86 não permite a transferência de receitas da JNPP para o IROMA, operada pelo artº 13º do DL nº 15/87
6- As taxas de comercialização do IROMA, oriundas da JNPP, são verdadeiros impostos, cuja criação e aplicação estão sujeitos aos ditames do artº 106º e
168º da CRP
7- As taxas de comercialização do IROMA foram-lhe atribuídas por lei ordinária, sem prévia autorização legislativa da AR, necessária por se tratar de competência reservada deste órgão de soberania.
8- Mesmo que assim não seja, o DL nº 15/87 foi publicado fora da vigência da Lei nº 9/86 (Orçamento), violando o princípio da anualidade do mesmo.
9- O artº 13º do DL nº 15/87 viola as já invocadas disposições da CRP, e ainda o artº 2º da Lei 40/83 de 13 de Dezembro'.
2. Por acórdão 23 de Outubro de 1996, negou o Supremo Tribunal Administrativo provimento ao recurso, pelo que a C..., inconformada com o decidido, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo que este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa apreciasse 'a constitucionalidade e ilegalidade' das normas dos 'Artigos 11º e
13º do D.L. nº 15/87, de 9 de Janeiro' e do 'Artigo 1º do D.L. nº 235/88 de 5 de Julho'.
Determinada a feitura de alegações, rematou a recorrente a que produziu, na qual sustenta dever ser revogado o aresto impugnado, com as seguintes conclusões:-
'1 - O artigo 72º da Lei nº 9/86, de 30 de Março, permitia ao Governo rever ou criar receitas a favor dos organismos de coordenação económica ou dos que resultarem da sua reestruturação.
2 - Em conformidade, em 1986, pelo D.L. nº 343/86, foram actualizados os valores das taxas da JNPP.
3 - O IROMA foi criado pelo D.L. nº 15/87, de 09 de Janeiro, que também extinguiu a JNPP.
4 - O IROMA não resulta da reestruturação da JNPP, nem faria sentido que assim fosse, pois que o primeiro é um organismo de intervenção, de inspiração comunitária e o segundo um organismo de coordenação económica, de inspiração corporativa.
5 - O artigo 72º da Lei nº 9/86 não permite a transferência de receitas da JNPP para o IROMA, operada pelo artigo 13º do aludido D.L. nº 15/87.
6 - As taxas de comercialização do IROMA, oriundas da JNPP, são verdadeiros impostos, cuja criação e aplicação estão sujeitas aos ditames do artigo 106º e
168 da Constituição da República Portuguesa.
7 - As taxas de comercialização do IROMA foram-lhe atribuídas por Lei ordinária, sem prévia autorização legislativa da Assembleia da República, necessária por se tratar de competência reservada deste órgão de soberania.
8 - Mesmo que assim não seja, o D.L. nº 15/87 foi publicado fora da vigência da Lei nº 9/86 (Orçamento de Estado), violando o príncipio da anualidade do mesmo.
9 - O artigo 13º do D.L. nº 15/87 viola as já invocadas disposições da CRP, e ainda o artigo 2º da Lei nº 40/83, de 13 de Dezembro.
10 - O artigo 33º da Sexta Directiva do Conselho das Comunidades Europeias, de
17 de Maio de 1977, (Direcitva nº 17/378/CEE) proíbe aos Estados Membros manter impostos, direitos ou taxas que tenham a natureza de impostos sobre o volume de vendas - além do IVA, tendo entrado em vigor na ordem jurídica portuguesa em 1 de Janeiro de 1986.
11 - O artigo 378º da Acto Anexo ao Tratado de Adesão de Portugal à CEE, não faz qualquer ressalva à aplicação do referido preceito.
12 - Deste modo, a persistência das taxas de comercialização, para além deste período, viola o artigo 8º da CRP'.
De seu lado, a Fazenda Pública rematou a sua alegação, na qual propugna por se dever manter o acórdão recorrido, concluindo:-
'a) O artigo 72º da lei n.º 9/86, de 30 de Março veio autorizar o Governo a criar ou rever receitas a favor dos organismos de coordenação económica ou dos que resultarem da sua restruturação, em ordem a cumprir os ditames do contrato de adesão a CEE.
b) Não houve solução de continuidade entre a extinção e a criação de diferentes organismos, mas sim uma relação jurídica de sucesssão.
c) Em razão da sucessão entre o organismo extinto e o IROMA o Decreto-Lei n.º 15/87 não criou ou modificou qualquer imposto. d) As taxas em causa têm a natureza de impostos específicos por incidirem sobre matéria física. e) As taxas em causa não têm a natureza de impostos sobre o volume de negócios.'
Cumpre decidir.
II
1. Como se alcança do relato acima efectuado, a ora recorrente, ao impugnar perante o Supremo Tribunal Administrativo a sentença proferida no 1º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, unicamente questionou a norma constante do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87 no ponto em que, na sua perspectiva, de um lado, a regra aí consignada - e segundo a qual '[a]s taxas de comercialização e outras imposições parafiscais a favor dos organismos extintos e que não contrariem o disposto no Acto de Adesão de Portugal à CEE passarão a ser cobradas e a constituir receita do IROMA' - não se encontrava coberta pela autorização legislativa constante do artº 72º da Lei nº
9/86, razão pela qual, no seu entender, respeitando a matéria a 'verdadeiros impostos', não podia o Governo, desacompanhado de credencial parlamentar, editar normação sobre ela; um tal questionar, consubstanciaria, pois, a suscitação, concernentemente à dita norma, de um vício de inconstitucionalidade de natureza orgânica.
Por outro lado, a recorrente, e identicamente com referência à mesma norma, defendeu, aquando do recurso para o S.T.A., que ela se inseria num diploma que, porque publicado fora da vigência da Lei nº 9/86 (lei aprovadora do Orçamento de Estado para 1986), violaria o princípio da anualidade orçamental. Esta postura da recorrente poderá, quanto a este particular, ser visualisada de um ponto de vista de arguição de ilegalidade da norma em crise face à Lei de Enquadramento do Orçamento de Estado (Lei nº 40/83, de 13 de Dezembro) - sendo de notar que esta lei era tida, no domínio da versão da Constituição decorrente da Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/92, de 25 de Novembro (que era a vigente à data da prolação da decisão impugnada), por alguns autores, como uma lei de valor reforçado (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª edição, 472) -, e também de um ponto de vista de directa arguição de inconstitucionalidade perante o entendimento daqueles que defendem que, embora a Lei Fundamental o não diga expressamente, aí se consagra o princípio da anualidade orçamental (cfr. autores e obra citados, 466).
Aponte-se, no entanto, que, agora, após a Revisão Constitucional efectuada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setmbro, a Lei de Enquadramento do Orçamento de Estado poderá, mais seguramente, ser categorizada como uma lei de valor reforçado (cfr. artigos 112º, nº 3, e 106º, nº 1 da Lei Fundamental e Carlos Blanco de Morais, As Leis Reforçadas, 1998, 807 e segs).
2. É certo que, no petitório da oposição à execução, a recorrente, para além do referido artº 13º, também arguiu de inconstitucional, orgânica e formalmente, o artº 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho
(diploma que disciplina a cobrança de dívidas ao IROMA). Simplesmente, e como se viu, na impugnação que levou a efeito perante o S.T.A. da sentença lavrada no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, deixou ela «cair» este último normativo, focando toda a sua argumentação única e exclusivamente sobre aquele artº 13º.
Ora, como tem sido jurisprudência desta Secção, não satisfazem o requisito ínsito na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/92, de 15 de Novembro, requisito esse consistente na suscitação da questão de inconstitucionalidade «durante o processo», os casos em que o recorrente, tendo inicialmente suscitado tal questão perante um tribunal inferior, acabou por abandoná-la aquando do recurso ao tribunal superior, e por tal forma que este não foi chamado a apreciar e decidir essa questão (cfr., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos números 36//91, 468/91, 469/91 e 510/93, publicados na 2ª Série do Diário da República de 22 de Outubro de 1991, 24 de Abril de 1992 e 19 de Janeiro de 1994).
Por último, e quanto ao artº 11º do D.L. nº 15/87, seguramente que a recorrente lhe não assacou, na apreciação que quis que fosse levada a cabo pelo S.T.A. da sentença de 16 de Fevereiro de 1994, qualquer vício de inconstitucionalidade, antes, na alegação produzida naquele Alto Tribunal, tendo dito que '[b]usílis de toda a questão' era 'então o artº 13º do diploma que cria o IROMA'.
3. Da transcrição supra-efectuada extrai-se que o desiderato da recorrente, ao intentar colocar sob censura deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa o aresto prolatado no S.T.A., foi o de que fossem objecto de apreciação as normas dos artigos 11º e
13º d D.L. nº 15/87 e do artº 1º do D.L. nº 235/88.
Todavia, atento os motivos acima expostos, este Tribunal só conhecerá da questão relativa ao artº 13º, pelo que é desta sorte que fica limitado o objecto do vertente recurso, sendo certo que, para além das razões já carreadas, em boa verdade, na alegação aqui produzida, a recorrente, ademais da defesa da violação, por banda do D.L. nº 15/87, do princípio da anualidade do orçamento, só impugna a citado artº 13º.
III
1. Concernentemente a tal normativo, teve já o Tribunal Constitucional ocasião de, em diversos arestos, tratar da matéria, sempre, sem discrepância, se tendo pronunciado no sentido de ele não ofender o Diploma Básico.
Fê-lo, em primeira ocasião, por intermédio do seu Acórdão nº 419/96 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 17 de Julho de 1996), cuja fundamentação aqui se acolhe na íntegra, tornando-se, por conseguinte, dispiciendo estar a repeti--la (no mesmo sentido daquele Acórdão os Acórdãos 633/96, 695/96, 775/96, 776/96, 777/96 e 1079/96, ainda inéditos, e
800/96 e 801/ /96, estes publicados nos mesmos jornal oficial e série, de 31 de Março de 1998).
Naquele Acórdão nº 419/96 concluiu-se:-
'..................................................
................................................... o mencionado artigo 13º não criou qualquer tributo, não lhe determinou a incidência, nem a taxa, nem dispôs inovatoriamente sobre o destino do produto de nenhuma daquelas taxas. Do que tão-só se tratou foi de cometer a um organismo da Administração (no caso, ao IROMA) o encargo de cobrar receitas que antes eram cobradas por outro organismo, entretanto extinto (no caso, a Junta Nacional de Produtos Pecuários). E isto, porque o IROMA sucedeu à dita Junta, para ela se transferindo 'todas as competências legais ou administrativamente atribuídas' à mesma (cf artigo 3º, nº 3, do Decreto-Lei nº 15/87) e, bem assim, 'as obrigações e os direitos adquiridos emergentes de contrato, de acto jurídico ou de lei, constituídos na [respectiva] esfera jurídica' [cf. artigo 12º, nº 1, alínea a), e nº 2, do mesmo Decreto-Lei nº 15/ /87]. Tratou-se, pois, tão-somente de um rearrumar de competências no interior da Administração, que se mostrou necessário por ter ocorrido a extinção de certas estruturas administrativas: no caso, atribuiram-se ao IROMA competências da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, que foi extinta.
Seja, pois, qual for a natureza da taxa da peste suína e a da taxa de comercialização (imposto ou taxa) - questão que aqui não interessa decidir - a norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, não viola o artigo
168º, nº 1, alínea i), da Constituição, que prescreve que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a 'criação de impostos e sistema fiscal'.
De facto, o Governo apenas carecia de autorização parlamentar para a definição e articulação do sistema fiscal em geral e, bem assim, para a criação de cada um dos impostos, incluindo o seu regime no que concerne à incidência, à taxa, aos benefícios fiscais e às garantias dos contribuintes.
O artigo 13º mencionado não versa, porém, sobre nenhuma destas matérias.
...................................................
..................................................'
No presente acórdão, e tendo por referência o bloco normativo constitucional formado pelos artigos 106º e 168º, nº 1 , alínea i), conclui-se de modo idêntico àquele que resulta da transcrição acima deixada efectuar, pelo que, neste particular, se reafirma não enfermar o artº 13º do D.L. nº 15/87 de vício de natureza orgânica relativamente à Lei Fundamental.
2. Por outro lado, haverá que sublinhar que, postando-
-nos perante um recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 se não irá ajuizar da norma em crise em confronto directo com o artº 33º da 6ª Directiva do Conselho das Comunidades Europeias (Directiva nº 17/378/CEE), com o fito de se saber se ela é, ou não, com esta incompatível.
Contudo, a recorrente alicerça-se nessa eventual incompatibilidade para daí concluir que, por tal via, é directamente ofendido o artigo 8º da Constituição (recte, o nº 3 deste artigo).
Ora, quanto a este ponto, não se deve deixar de sublinhar que as questões de constitucionalidade que, ex vi do artº 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, incumbe a este Tribunal conhecer, são justamente aquelas em que determinada norma, cuja inconstitucionalidade foi questionada, viola, directamente ou, se se quiser, imediatamente, norma ou princípio constante da Lei Fundamental, não abrangendo, por isso, as situações em que tal violação decorre de modo indirecto, o que o mesmo é dizer, as situações em que a violação se coloca por via de uma prévia violação de um preceito constante de lei infraconstitucional (cfr., neste sentido, o Acórdão nº 405/93, in Diário da República, 2ª Série, de 19 de Janeiro de 1994).
Daí que, quanto a esta eventual violação sustentada pela ora recorrente (ou deste fundamento de inconstitucionalidade por ela também sustentado), e porque, uma vez mais se enfatiza, nos situamos perante um recurso da alínea b) do nº 1 do aludido artº 70º, não possa o Tribunal conhecer (a este mesmo resultado, por outra via, chega também Cardoso da Costa, in O Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Separata de AB UNO AD OMNES, 75 anos da Coimbra Editora)
3. Resta curar da alegada violação do princípio da anualidade orçamental, não como decorrência da contrariedade com a designada Lei de Enquadramento do Orçamento de Estado, figurável como lei reforçada (cfr. supra, II, 1.), mas sim como decorrência da consagração constitucional de tal princípio, que se extrairia dos artigos 92º e 108º, nº 2, do Diploma Básico.
Torna-se claro que a violação que, neste ponto é, pela recorrente, assacada ao diploma onde se contém a norma em crise não pode, à partida, deixar de estar conexionada com uma consideração de harmonia com a qual o falado diploma haveria de ser perspectivado como devendo ser inserido no denominado «bloco orçamental» ou, se se quiser, nos diplomas da «órbita orçamental», nestes se incluindo aqueles editados ao abrigo de autorizações legislativas ínsitas nas leis aprovadoras do Orçamento de Estado (cfr., sobre o assunto, Cardoso da Costa, in Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro,
1981, págs. 18 a 22).
Todavia, viu-se já que pelo Decreto-Lei nº 15/87 não foi levada a efeito a criação de qualquer tributo (e sem que releve agora estar a caracterizar-se com a possível exactidão a natureza da «taxa» que deu origem ao processo de execução fiscal sub specie), nem tão pouco foi determinada a respectiva incidência ou efctuada qualquer alteração da sua taxa, bem como não tratou ele de benefícios fiscais ou de garantias dos contribuintes, pois que, como já acima se assinalou ao transcrever parte do Acórdão nº 419//96, do que tratou foi 'tão-somente de um rearrumar de competências no interior da Administração, que se mostrou necessário por ter ocorrido a extinção de certas estruturas administrativas: no caso, atribuiram-se ao IROMA competências da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, que foi extinta'.
IV
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Maio de 1998 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida