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Processo n.º 1336/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público e B., o primeiro veio «solicitar esclarecimento / correção» da decisão sumária n.º 58/2014, que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo recorrente.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 58/2014 é o seguinte:
« (…)
6. Face à formulação do objeto do recurso acima transcrita – no que toca a todas as questões de constitucionalidade -, é patente que o recorrente não coloca ao Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer.
6.1. Desde logo, nas três primeiras questões formuladas o recorrente reporta-se à inconstitucionalidade da interpretação de normas da própria Constituição. Um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade cujo objeto sejam normas – ou interpretações de normas – da própria Constituição é manifestamente inidóneo, pois que o Tribunal Constitucional controla e fiscaliza a atividade do legislador na criação de direito infraconstitucional, no respeito das normas constitucionais (cfr. artigos 223.º, n.º1 e 277.º da CRP). Não questionando a inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais, mas sim de normas da própria Constituição, é patente que o Tribunal Constitucional não pode dele conhecer.
6.2. A quarta questão de inconstitucionalidade constitui também ela um objeto inidóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade. E assim é porque essa questão não possui caráter normativo. A forma como o recorrente formulou o objeto do recurso é relevadora de que o que este verdadeiramente pretende questionar é a decisão concreta do tribunal a quo. De facto, o recorrente não logra definir a norma que reputa de inconstitucional, questionando apenas “o alcance da interpretação do artº 205º do Cód. Penal perfilhada pela Relação de Lisboa”. Demonstra, assim, que o que pretende sindicar é o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, i.e., a forma como este interpretou a referida norma do artigo 205.º do Código Penal. Ora, neste ponto há que sublinhar que não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, pois que esse juízo é puramente de índole infraconstitucional. Assim, o “alcance interpretativo” de normas de direito infraconstitucional é matéria deixada apenas à ordem dos tribunais comuns, não caindo no âmbito das competências específicas de fiscalização da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
6.3. O recorrente conclui, por fim, dizendo que deve “entender-se que o Acórdão recorrido, no seu todo, também deixa violado o artº 202º, nºs 1 e 2 da C.R.P. pois, as interpretações dos artigos de Lei referidos por constituírem violações de princípios gerais de Direito Penal e Processual Penal vêm inibir o preenchimento do dito artº 202º da C.R.P.”. Ora, também nesta pretensa síntese conclusiva, o recorrente imputa de inconstitucional não uma norma ou interpretação normativa, mas sim a bondade da própria decisão recorrida. É, no seu entender, e como claramente expõe, o próprio acórdão recorrido que viola a Constituição, pelo que não restam dúvidas de que não está em causa aqui em causa uma questão de constitucionalidade normativa.
Como tal, há que relembrar a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, diretamente imputadas pela recorrente às decisões judiciais proferidas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Não tendo o presente recurso por objeto uma norma, ele não possui um objeto idóneo. Tanto bastaria para que se não possa conhecer do objeto do presente recurso.
7. Mas ainda se dirá que o presente recurso não cumpre outro requisito, necessário para o Tribunal Constitucional conhecer do mesmo. O recurso interposto tem como pressuposto específico que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (art. 70.º, n.º 1, alínea b) e artigo 72.º, n.º2, da LTC). Para tanto, a questão tem de ser suscitada perante o tribunal da causa como respeitando às normas cuja apreciação se pretende deferir ao Tribunal Constitucional perante eventual “decisão negativa”. Isto é, o interessado tem o ónus de convocar esse tribunal, no âmbito da resolução de uma questão que lhe seja submetida, a recusar a aplicação a determinada norma no uso do poder ou dever funcional que lhe é conferido pelo artigo 204.º da Constituição. Por outras palavras, é necessário que o recorrente tenha suscitado perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, a exata questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, de modo a que esse tribunal dela pudesse tomar conhecimento.
Nos presentes autos, é manifesto que tal não aconteceu. De facto, em momento algum o recorrente logrou suscitar as concretas questões objeto do presente recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa. Nestes termos, também este específico pressuposto de conhecimento do recurso não foi cumprido. »
3. O requerimento apresentado pelo recorrente é do seguinte teor:
« I. Da Decisão Sumária:
1. O Tribunal Constitucional, por Decisão Sumária, não admite o recurso do recorrente, do que este percebeu, por três motivos:
a) Ao questionar a constitucionalidade dos próprios preceitos constitucionais (?) o Tribunal Constitucional estaria, “ab initio” impossibilitado dele conhecer pelo que o recurso nunca poderia ser admitido;
b) Inexistindo no sistema jurídico português o denominado recurso de amparo está vedado ao Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade que lhe seja posta à consideração no âmbito de uma decisão judicial proferida;
c) Por último, o recorrente não terá suscitado de modo processualmente adequado e perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (a Relação de Lisboa) a questão de constitucionalidade que pretende levar a este Tribunal Constitucional.
No entendimento do recorrente terá sido por estes motivos triplicos que o conhecimento do recurso foi negado.
II. Das dúvidas do recorrente:
2. De todo o alegado desde as Alegações que apresentou no Tribunal de Comarca para a Relação de Lisboa – e que é o que releva no âmbito do presente recurso como muito bem o Excelentíssimo Senhor Conselheiro Relator relatou nos pontos 1, 2 e 3 da Decisão Sumária – e salvo o devido respeito, é convicção do recorrente ter dado cumprimento de modo adequado aos requisitos e pressupostos elegíveis em sede de recurso para o Tribunal Constitucional.
3. Mas, ainda que não o tivesse feito de forma exaustiva sempre seria de admitir que o fez de forma suficiente.
4. Acresce que os atuais artºs 6º e 7º do Cód. Proc. Civil parecem impor ao Juiz, mais do que um poder diretivo do processo um DEVER de boa gestão processual.
5. Esse DEVER deve ser, além do mais e num primeiro momento, providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais com vista a obter uma justa composição do litígio (ex. vi do nº 2 do artº 6º do CPC).
6. Ora, e aqui surge a primeira ambiguidade da decisão, tendo o recurso para o Tribunal Constitucional do requerimento de 3/12/2013 exposto com pormenor quer o percurso processual passado quer o que se pretendia – e que é indiscutivelmente de matiz constitucional – a redução do pretendido em sede do ponto 4 da douta Decisão Sumária (e aqui referido na al. a) do ponto 1) não se consegue articular com a existência expressa do nº 6 do artº 75º-A da L.O.T.C., isto é:
7. Parece de mediana evidência que o recorrente questiona a constitucionalidade da atuação da Comarca – e também da Relação no Recurso para o STJ não admitido – em sede de direito probatório.
8. O que realmente se pretendia – e pretende é sindicar o que a Comarca fez (e também a Relação) dos princípios constitucionais que têm reflexo e controle no âmbito da “apreciação da prova”.
9. Ora, dizer que o recorrente questiona a constitucionalidade dos artigos da própria Constituição, depois de ler o que alegado foi é extrair consequências graves de um “lapsos linguae” que o recorrente pode admitir ter cometido e que é muito simplesmente o de não ter deixado claro que apontou a sua inconformidade à interpretação que o tribunal “a quo” fez dos artigos de processo que regem a “PROVA” – artº 124º a 127º do CPP – violando, pelo modo como o fez, os referidos artigos constitucionais das alíneas 1), 2) e 3) do ponto 4 da Decisão Sumária.
10. Mas, e isto é o escopo do esclarecimento nesta parte, sendo percetível o objetivo porque não remeteu o Tribunal Constitucional o recorrente para o nº 6 do artº 75º convidando-o a esclarecer quais as normas ou interpretações normativas que reportava inconstitucionais?
11. Com esse simples procedimento – legal e possível por via dos artºs 6º e 7º do CPC e do nº 6 do artº 75º-A da L.O.T.C. - seria naturalmente dada a oportunidade ao recorrente de completar (é disso que se trata) uma infeliz imprecisão da sua alegação/requerimento de interposição de recurso.
12. A questão é pertinente porque, apesar de se admitir a falha de precisão invocativa da norma cuja interpretação se reputa inconstitucional – os artºs 124º e 127º do CPP – da alegação e demais fundamentação resulta claro que é a eles que se assaca a inconstitucionalidade da interpretação que o Tribunal “a quo” fez por violar os princípios dos artigos da C.R.P. também referidos.
13. E esta consideração extrai-se do teor do texto da alegação logo para a Relação de Lisboa quando se cita uma passagem do Prof. Cavaleiro Ferreira que também aqui se reproduz:
“A Lei não está ausente da “livre convicção” do Juiz. O sistema processual moderno atribui ao julgador uma maior liberdade mas não o arbítrio a que o Lei seja indiferente. Se o julgador interpreta a liberdade de apreciação como um domínio arbitrário da sua vontade sobre a matéria de facto, e oferece às partes, como conteúdo de jurisdição, a suo fé ou convicção sem provas e sem base objetiva, ultrapassa os limites da liberdade de apreciação, que não pode confundir-se com a supressão da prova ou com a faculdade, por exemplo, de inverter por seu alvedrio o ónus da prova” (in Curso de Direito Penal II, pág. 300).
14. É assim, parece ao recorrente, percetível no teor do recurso, qual escopo da sua inconformidade que, não é a dos preceitos constitucionais que, ao contrário vem invocar no amplexo do que foi violado.
15. E que, o artº 75º-A, nº 6 teria perfeito enquadramento corretivo não se percebendo porque não foi usado “in casu”.
III. Da alínea 4 do nº 4 da decisão Sumária:
16. Sendo certo que não cabe ao Tribunal Constitucional orientar processualmente os cidadãos que a ele recorrem não se percebe no caso concreto da invocada inconstitucionalidade da interpretação do artº 18º, nº 2 da C.R.P. onde errou o recorrente;
17. É evidente que, em última instância, qualquer recurso visa questionar a Decisão Judicial que se impugna.
A diferença é de enquadramento: Num primeiro momento pode impugnar-se a subsunção dos factos à Lei ou a própria apreensão dos factos pelo Tribunal;
Num segundo momento já se questiona a interpretação que o Tribunal faz do preceito que aplicou no enquadramento mais jurídico e constitucional deste, isto é:
18. Tendo presente que:
“nesse recurso pode impugnar-se simplesmente uma certa interpretação de determinada norma (ou, o que vale o mesmo, esta última enquanto interpretada num certo sentido ou com uma certa dimensão), pois, então não se estará já a arguir (apenas) a inconstitucionalidade de uma decisão judicial, mas ainda, verdadeiramente, o seu suporte normativo, a norma que ela aplicou”
E por outro lado que:
19. Ora, segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tai que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê desso incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido (Ac. nº 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito terá de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição.”. (Proc. 505/11, 3ª secção).
20. O recorrente não entende a conclusão do ponto 6.2 da douta Decisão Sumária pois, nesse caso parece claro qual é a norma cuja interpretação se reputou inconstitucional e porquê.
IV. Do pressuposto da prévia suscitação:
21. Os Recursos que o recorrente apresentou – para a Relação de Lisboa e o não admitido para o STJ – tratam na sua quase totalidade, do que considerou ser um erro de julgamento em sede da apreciação da matéria fáctica.
22. Mas os ditos recursos – para além dessa parte – claramente traçavam a perspetiva do recorrente quanto ao enquadramento, projeção e interpretação das normas sobre a PROVA que o Tribunal “a quo” fazia.
23. E, também claramente, qualifica essa interpretação de inconstitucional por violarem os princípios constitucionais que balizam, limitam e enquadram os artºs 124º e 127º do CPP.
24. Remetendo para o que se escreveu no Ponto 19 deste requerimento, não se percebe a conclusão do Tribunal Constitucional quando escreve:
(...) em momento algum o recorrente logrou suscitar as concretas questões objeto do presente recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa.”
25. É que nas alegações para a Relação de Lisboa o recorrente enquadrou claramente a inconstitucionalidade que entendia verificar-se e;
26. Levou depois, às conclusões 56, 57 e 68 a final dessas alegações.
27. De qualquer forma, a haver essa deficiência conclusiva mais uma vez, não se percebe porque não convidar o recorrente, no âmbito do artº 75º-A, nº 6 da L.O.T.C. a esclarecer esse ponto.
Nos termos expostos e nos mais que os Meritíssimos Senhores Juízes Conselheiros venham a suprir deve o presente requerimento ser admitido em prol do que se pede e espera.»
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se nos seguintes termos:
«(…)
3.º Ora, vendo o conteúdo do requerimento, ali não vem identificada qualquer ambiguidade ou obscuridade de que a Decisão Sumária padeça.
4.º O recorrente “utiliza” o incidente pós-decisório da aclaração para manifestar a sua discordância com a decisão, quer quando nela se entendeu que não se verificavam os pressupostos de admissibilidade do recurso, quer porque não foi notificado nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6 da LTC.
5.º Ora, como é entendimento jurisprudencial reiterado, nada obsta e tudo aconselha, a que o Tribunal Constitucional - que não está vinculado aos rótulos jurídicos que as partes atribuem às peças por elas apresentadas - possa qualificar os incidentes pós-decisórios suscitados como reclamações para a conferência, “transformando” em tal meio impugnatório, requerimentos deduzidos perante o relator, particularmente quando os mesmos contêm inidóneos pedidos de aclaração de decisões perfeitamente claras e insuscetíveis de dúvida objetiva (vd. v.g. Acórdãos n.ºs 590/2007, 431/2008, 617/2008 e 222/2009).
6.º Parece-nos evidente que, como se demonstra na douta Decisão Sumária, o recorrente não suscitou “durante o processo” qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como não enunciou no requerimento de interposição do recurso qualquer questão com a mesma natureza.
7.º Quanto a não ter sido notificado nos termos do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, duas razões, desde logo, o justificam.
8.º Aquela notificação destina-se a dar a possibilidade aos recorrentes de suprirem deficiências formais dos requerimentos de interposição do recurso.
9.º Ora, diferentemente do que diz o recorrente, no requerimento identificam-se as questões cuja constitucionalidade deviam constituir o objeto do recurso e que num caso eram reportadas a normas da própria Constituição e no outro não tinham natureza normativa.
10.º Estava-se, assim, num e no outro caso, perante um objeto inidóneo do recurso de constitucionalidade.
11.º O convite ao suprimento só poderia ter lugar se o recorrente não identificasse – e no caso identificou – a “norma” cuja inconstitucionalidade pretendia que o Tribunal apreciasse (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC).
12.º Por outro lado, mesmo que tivesse ocorrido uma omissão nessa identificação, como também faltava o requisito material de admissibilidade consistente na suscitação prévia e adequada das questões de constitucionalidade, o convite a suprir deficiências formais do requerimento, não se revestiria de qualquer utilidade.
13.º Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
II – Fundamentação
5. Nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3 da LTC, a forma de reação contra a Decisão Sumária do Relator é a reclamação para a conferência. No entanto, como bem refere o Ministério Público, o Tribunal Constitucional pode qualificar os incidentes pós-decisórios suscitados como reclamações para a conferência, “transformando” em tal meio impugnatório, requerimentos deduzidos perante o relator (vd. v.g. Acórdãos n.ºs 590/2007, 431/2008, 617/2008 e 222/2009). É o que se faz no presente caso. Assim sendo, o pedido de «esclarecimento/correção» da decisão sumária n.º 58/2014 será tramitado como reclamação para a Conferência dessa mesma decisão sumária.
6. Invoca o recorrente, em primeiro lugar, que o relator deveria ter dado cumprimento ao disposto nos atuais artigos 6º e 7º do CPC, devendo providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais com vista a obter uma justa composição do litígio.
Ora, neste ponto incumbe relembrar que o processo de fiscalização concreta da constitucionalidade obedece a lei própria – a Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal Constitucional -, que dispõe, no n.º 5 e 6 artigo 75.º-A que, se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos nesse artigo, o relator convidará o requerente a prestar essa indicação. Essa notificação destina-se a dar a possibilidade aos recorrentes de suprirem deficiências formais dos requerimentos de interposição do recurso. Ora, o requerimento de interposição de recurso indica todos os elementos requeridos pelo artigo 75.º-A da LTC, pelo que não incumbia ao relator notificar o recorrente para suprir deficiências do mesmo.
Ademais, acrescente-se que, tal como decorre do teor da decisão sumária reclamada, não foi por falta dos elementos enunciados no artigo 75-A, n.º1 e 2 da LTC que o Tribunal Constitucional não tomou conhecimento do presente recurso. Foi, aliás, expressamente referido no ponto 6.2., 6.3. e 7. da referida decisão sumária que o não conhecimento do recurso prendeu-se com a falta de verificação dos pressupostos processuais – nomeadamente a falta de suscitação prévia e de forma adequada da questão de constitucionalidade que se pretendia ver apreciada, perante o tribunal a quo, bem como a natureza não normativa da questão objeto do recurso. A falta desses pressupostos processuais era insuprível com o convite a que o ora reclamante se refere.
7. A decisão sumária n.º 58/2014 decidiu não conhecer do objeto do recurso com fundamento, desde logo, na falta de idoneidade do mesmo.
Em primeiro lugar, porque o recorrente invocava uma questão de inconstitucionalidade de normas da própria Constituição. Vem agora o recorrente referir que se tratou, aí, «de um “lapsos linguae” que o recorrente pode admitir ter cometido e que é muito simplesmente o de não ter deixado claro que apontou a sua inconformidade à interpretação que o tribunal “a quo” fez dos artigos de processo que regem a “PROVA” – artº 124º a 127º do CPP». Ora, neste ponto incumbe referir que cabe ao recorrente o ónus de formular o objeto do recurso de forma clara e compreensível, não cabendo ao Tribunal Constitucional substituir-se ao mesmo nessa tarefa. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
8. Invoca ainda o recorrente que «não entende a conclusão do ponto 6.2 da douta Decisão Sumária pois, nesse caso parece claro qual é a norma cuja interpretação se reputou inconstitucional e porquê». Ora, nesse ponto da decisão sumária considerou-se que o recorrente não logrou definir a norma que reputa de inconstitucional, questionando apenas “o alcance da interpretação do artº 205º do Cód. Penal perfilhada pela Relação de Lisboa”. Ora, como se demonstra, não resulta nada clara qual a interpretação reputada de inconstitucional. O recorrente limita-se a reputar de inconstitucional «o alcance da interpretação» de certa norma, que em concreto foi perfilhado pelo Tribunal a quo. Mas se é o «alcance» da interpretação que questiona, isso equivale a dizer que é a própria forma como o Tribunal a quo interpretou a norma que é posta em causa. Daí que o Tribunal Constitucional tenha referido que o que o recorrente verdadeiramente pretendia sindicar era o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, i.e., a forma como este interpretou a referida norma do artigo 205.º do Código Penal. Ora, neste ponto há que sublinhar, novamente, que, como resulta de jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, pois que esse juízo é puramente de índole infraconstitucional. Assim, o “alcance interpretativo” de normas de direito infraconstitucional é matéria deixada apenas à ordem dos tribunais comuns, não caindo no âmbito das competências específicas de fiscalização da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
9. A natureza não normativa do objeto do presente recurso é, aliás, confirmada com o requerimento agora apresentado. Senão, atente-se nas seguintes passagens: «Parece de mediana evidência que o recorrente questiona a constitucionalidade da atuação da Comarca – e também da Relação no Recurso para o STJ não admitido – em sede de direito probatório. 8. O que realmente se pretendia – e pretende é sindicar o que a Comarca fez (e também a Relação) dos princípios constitucionais que têm reflexo e controle no âmbito da “apreciação da prova”». Admite assim o recorrente, mais uma vez, que o que pretende é um reexame do mérito das decisões mencionadas.
10. Por fim, o recorrente refere que nas alegações para a Relação de Lisboa enquadrou claramente a inconstitucionalidade que entendia verificar-se. Mas na verdade, em momento algum o mesmo confrontou o Tribunal da Relação de Lisboa com uma questão de constitucionalidade normativa de que este pudesse conhecer.
Para se compreender melhor, confrontemos o que para o Tribunal Constitucional constitui o preenchimento desse ónus de suscitação prévia com o que o recorrente fez no caso concreto.
10.1. Fazendo-se o acesso ao Tribunal Constitucional por via de recurso é necessário que o tribunal que proferiu a decisão recorrida tenha sido confrontado, por iniciativa do sujeito processual interessado, com a questão de constitucionalidade normativa, “identificando-se (…) o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Para tanto, a questão tem de ser suscitada perante o tribunal da causa como respeitando às normas cuja apreciação se pretende deferir ao Tribunal Constitucional perante eventual “decisão negativa”. Isto é, o interessado tem o ónus de convocar esse tribunal, no âmbito da resolução de uma questão que lhe seja submetida, a recusar a aplicação de determinada norma no uso do poder ou dever funcional que lhe é conferido pelo artigo 204.º da Constituição. É necessário que seja discernível a autonomização da questão, como questão de constitucionalidade da norma infraconstitucional, relativamente ao tema da sua interpretação e aplicação aos factos da causa, de modo a colocar o juiz perante a necessidade de apreciar tal questão sob pena de omissão de pronúncia. Ora, para que se considere cumprido o pressuposto de acesso ao Tribunal Constitucional especificamente imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não basta alegar que a decisão recorrida viola determinados preceitos constitucionais.
10.2. Sendo este o entendimento do Tribunal Constitucional sobre o que constitui o preenchimento do pressuposto específico do recurso de fiscalização de constitucionalidade ao abrigo da alínea b), de “suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”, veremos que o mesmo não foi adequadamente cumprido pela ora reclamante, como se mencionou na decisão sumária reclamada. De facto, o que a reclamante invocou, perante o Tribunal da Relação de Lisboa foi o seguinte:
«(…) 56. Entendeu-se que a criminalização dessa conduta – feita uma correta análise da prova – é um exemplo quase académico de violação dos princípios da solidariedade e da proibição de excesso imanentes à penalização de condutas e o princípio da não intervenção moderada, o que inquina o Acórdão recorrido também de inconstitucionalidade pois, em rigor, o presente pleito é apenas de índole civil.
57. Na sequência da errada apreciação da prova, da errada subsunção dessa prova deficiente à Lei – e a incorreta interpretação e a aplicação desta – o arguido foi condenado em pena efetiva de privação da liberdade.
(…)
68. Claro que o arguido, e aí o Tribunal de uma assentada viola os artºs 50º a 54º do Cód. Penal e os artºs 32º nº 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, não pode assumir culpa que entende não ter nem ser punido por comportamento que não interiorizou e quis a seu tempo resolver pelo que, o que fez em julgamento foi relatar os factos – todos até onde o Tribunal entendeu ir – com verdade e humildade assumptiva de erros de procedimento».
10.3. O ora reclamante limita-se, assim, por um lado, a tecer considerações genéricas sobre a violação dos princípios «da solidariedade e da proibição de excesso imanentes à penalização de condutas e o princípio da não intervenção moderada», que teria sido feita pela decisão recorrida, que, na sequência de «errada apreciação da prova, da errada subsunção dessa prova deficiente à Lei – e a incorreta interpretação e a aplicação desta», condenou o arguido em pena efetiva de privação da liberdade. Refere depois que, com isso, o Tribunal «de uma assentada viola (…) os artºs 32º nº 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa». Em suma, o recorrente limitou-se, nas alegações de recursos perante a Relação, a invocar preceitos constitucionais e referir que os mesmos foram violados pela decisão recorrida. Assim, quando muito, limita-se a imputar de inconstitucional a própria decisão do Tribunal que decidiu condená-lo pela prática dos crimes em causa. Em momento algum o recorrente logra invocar a inconstitucionalidade de uma norma ou interpretação normativa suscetível de generalização, de forma autonomizável relativamente ao aos factos da causa. Em momento algum, enfim, o recorrente logrou suscitar uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal a quo.
10.4. Mas, insiste o recorrente que, mesmo assim, deveria o Relator tê-lo convidado «no âmbito do artº 75º-A, nº 6 da L.O.T.C. a esclarecer esse ponto». Ora, incumbe aqui sublinhar, mais uma vez, que o convite previsto no artigo 75.º-A, n.º 5 e 6 da LTC se prende apenas com a insuficiência do requerimento de interposição do recurso. Esse expediente não pode servir para suprir deficiências que se prendem com o processado, como é a necessidade de suscitação prévia, perante o tribunal a quo, da questão de inconstitucionalidade normativa objeto do recurso, já que esse requisito deve ser feito num momento prévio ao da pronúncia desse tribunal. Assim, um convite feito nos termos da norma da LTC mencionada não teria suprido a falta deste pressuposto processual, essencial para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC.
11. Perante o exposto, é fácil concluir que não se encontravam reunidos os pressupostos processuais para o Tribunal Constitucional decidir com base na al. b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. O recorrente não suscitou, perante o tribunal a quo, uma questão de constitucionalidade normativa de forma processualmente adequada e, em segundo lugar, contesta o próprio juízo interpretativo/subsuntivo feito pelo tribunal a quo, e não a inconstitucionalidade de uma norma. Acrescente-se que a falta destes pressupostos é, de resto, insuprível com um convite feito pelo juiz Relator nos termos e para os efeitos do artigo 75-A da LTC.
Nada mais acrescentando o reclamante no que toca à decisão de não conhecimento do objeto do presente recurso, conclui-se que a mesma é de manter.
III – Decisão
12. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 25 de março de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.