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Processo n.º 1369/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e B., o primeiro vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo ora reclamante.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária reclamada é o seguinte:
«6. Face à formulação do objeto do recurso (…) - e mesmo após convite de aperfeiçoamento por parte do Relator -, é patente que o recorrente não coloca ao Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer.
6.1. Desde logo, o recorrente reporta-se à inconstitucionalidade de uma norma da própria Constituição (o artigo 20.º, n.º4). Um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade cujo objeto sejam normas – ou interpretações de normas – da própria Constituição é manifestamente inidóneo, pois que o Tribunal Constitucional controla e fiscaliza a atividade do legislador na criação de direito infraconstitucional, no respeito das normas constitucionais (cfr. artigos 223.º, n.º1 e 277.º da CRP).
6.2. Mas mesmo quando invoca como objeto do recurso de constitucionalidade “os artigos 664.º do Código de Processo Civil e o art.º 1549.º do Código Civil, tal como interpretados/aplicados pelo Tribunal a quo nos termos supra descrito”, o recorrente continua a não formular uma questão normativa que possa constituir objeto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade. A forma como o recorrente formula o objeto do recurso é relevadora de que este pretende verdadeiramente questionar a decisão concreta do tribunal a quo. O recorrente continua a não lograr definir qual a dimensão interpretativa concreta que reputa de inconstitucional, remetendo sempre para a interpretação / aplicação concreta feita pelo tribunal a quo. Refere depois que tal interpretação foi no sentido de que este “decidiu sobre questões não peticionadas, não permitindo assim um processo equitativo, na medida em que não deu oportunidade de defesa em momento próprio aos recorrentes”. Ora, por um lado, esta suposta «interpretação» não decorre da letra de nenhum dos preceitos invocados. Por outro lado, o que o STJ considerou foi, muito pelo contrário, que no Acórdão da Relação, que se serviu dos factos articulados pelas partes, não existiu qualquer violação do princípio do contraditório ou do princípio da proibição de decisões-surpresa.
Isto demonstra que, na verdade, o recorrente limita-se a discordar da decisão do STJ, pretendendo, assim sindicar a decisão concreta do tribunal a quo, i.e., ver discutido, pelo Tribunal Constitucional, se no caso se deu, ou não, “oportunidade de defesa em momento próprio aos recorrentes”.
6.3. Mas, neste ponto há que sublinhar que não incumbe ao Tribunal Constitucional interferir nesse tipo de juízo. Discutir se a decisão do Tribunal da Relação constituiu ou não uma decisão surpresa, ou se houve ou não oportunidade de defesa para os réus, são juízos de índole puramente infraconstitucional, e, por isso, matérias deixada apenas à ordem dos tribunais comuns, não caindo no âmbito das competências específicas de fiscalização da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
De facto, há que relembrar a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, diretamente imputadas pela recorrente às decisões judiciais proferidas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Não tendo o presente recurso por objeto uma norma, ele não possui um objeto idóneo.
Tanto basta para que se não possa conhecer do objeto do presente recurso.»
3. O primeiro recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
«A decisão sumária que antecede decidiu não conhecer o recurso apresentado, considerando – em suma – que o objeto do recurso não é idóneo. Todavia, o objeto do recurso não é a inconstitucionalidade do artigo 20 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. O objeto do recurso acaba por ser a violação desta norma na decisão a quo, na esteira do disposto no artigo 70.º n.º 1 al. b) da Lei do Tribunal Constitucional.
E isto pela seguinte ordem de razões:
O Recorrente compreende e aceita a extensão e o uso dos poderes que as instâncias superiores fizeram nos presentes autos. Contudo, há um passo lógico muito específico na cadeia de fundamentos com que, todavia, o recorrente não concorda.
Naturalmente que o Tribunal a quo tem o poder de aplicar o direito, de acordo com o seu entendimento e leitura da situação e que, claramente, não tem que se confinar com as alegações das partes.
Contudo, onde é que se traça a diferença entre o quadro normativo e o quadro factual?
No caso concreto entende o recorrente que as decisões proferidas estão colocadas numa linha de fronteira entre o quadro factual e o quadro normativo. A este propósito, repare-se no teor da douta decisão que antecede, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça:
“A Relação, tendo os recorrentes impugnado tal decisão, por, em seu entender, não se verificarem os pressupostos da usucapião, decidiu não ser esse o instituto em causa, sendo certo que os autores, a respeito da servidão de águas por destinação do pai de família, embora sem nunca expressamente o referirem e perante os factos apurados a propósito, que o mesmo integram, com arrimo no preceituado no artigo 664.º do CPC, julgou constituída a reclamada servidão em tais termos, seja, por destinação do pai de família. Mantendo embora por diferentes razões, o decidido na 1ª instância.”
E
“Pois, os autores peticionaram também o reconhecimento do direito de servidão das referidas águas, alegando factos, sem apurada técnica, a propósito, permita-se o desabafo, integradores do instituto da constituição da servidão de águas por destinação do pai de família.” In página 13 do douto acórdão.
E aqui chegados, cremos que a questão se configura da seguinte forma:
Será que os factos necessários à usucapião por destinação do pai de família foram invocados? E, em caso afirmativo, será que tal foi pedido?
Começando pelo fim, o próprio STJ aceita que a usucapião com fundamento em destinação do pai de família não foi objeto de pedido. O que deixa em aberto que o Tribunal decidiu em violação do princípio do pedido, ultrapassando o objeto da ação, tal como a mesma foi conformada.
Quanto à primeira questão, sempre será de considerar que em momento algum os autores invocaram a existência de sinais visíveis e permanentes que revelem a serventia, bem como não foi alegado a existência de dois prédios do mesmo dono, duas frações de um só prédio ou, muito menos, de uma situação de domínio de um ou mais prédios, como o STJ ditou para o caso concreto.
E é neste preciso momento que, no entendimento do Recorrente, a decisão em crise ultrapassou o âmbito da livre aplicação e determinação do quadro normativo para, realmente, interceder no quadro factual (suprindo a alegação que, por sinal, considera insuficiente).
E, aqui chegados, entendemos que por estas razões que foi violado o artigo 20 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Por conseguinte, requer a V. Exa. que – recebendo e deferindo a presente reclamação – admita o presente recurso e o julgue procedente, com todas as legais consequências.»
4. Notificados para responderem, os recorridos vieram apresentar resposta nos seguintes termos:
«Salvo o devido respeito pela resposta, que só segue para não prolongar por mais tempo a instância, dizem o seguinte:
Não fosse o apoio judiciário e a litigância nos Tribunais, de quem o usa, desceria para 50%.
Nestes termos prossigam os trâmites que a Lei impõe e permite.»
II – Fundamentação
5. O recorrente reclama para a Conferência da Decisão Sumária proferida nos autos, por discordar do decidido quanto ao não conhecimento do objeto do recurso por falta de idoneidade do mesmo. A referida decisão considerou que o mesmo não possuía um objeto idóneo de recurso de fiscalização da constitucionalidade, por não consubstanciar uma questão de constitucionalidade normativa.
Ora, na presente reclamação, o reclamante nada invoca que permita invalidar a decisão proferida. Muito pelo contrário, apenas demonstra que o que pretende sindicar é, de facto, a bondade da própria decisão recorrida – imputando a essa mesma decisão, e não a qualquer norma, as inconstitucionalidades suscitadas. Senão, veja-se que o reclamante refere que «a decisão em crise ultrapassou o âmbito da livre aplicação e determinação do quadro normativo para, realmente, interceder no quadro factual (suprindo a alegação que, por sinal, considera insuficiente). E, aqui chegados, entendemos que por estas razões que foi violado o artigo 20 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa» (sublinhado nosso). É, pois, notório que o reclamante imputa a inconstitucionalidade à própria decisão recorrida, e não a qualquer norma ou interpretação normativa que tenha consubstanciado fundamento daquela decisão. Ora, inexistindo na nossa ordem jurídica «um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional», ao Tribunal Constitucional está vedada a fiscalização da constitucionalidade de decisões judiciais. Pelo que é de manter a decisão de falta de idoneidade do recurso por não possuir natureza normativa.
6. Por outro lado, não incumbe ao Tribunal Constitucional averiguar se «os factos necessários à usucapião por destinação do pai de família foram invocados» e se «em caso afirmativo, (…) tal foi pedido». Nem, nesse seguimento, sindicar se o tribunal recorrido «decidiu em violação do princípio do pedido, ultrapassando o objeto da ação, tal como a mesma foi conformada». O que equivale a dizer que não incumbe ao Tribunal Constitucional reexaminar o mérito da decisão recorrida, uma vez que isso implicará a formulação de juízos de índole puramente infraconstitucional, reservados à ordem dos tribunais comuns, não cabendo no âmbito das competências específicas de fiscalização da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
Nada mais imputando o reclamante no que toca à decisão de não conhecimento do objeto do presente recurso, conclui-se que a mesma é de manter.
III – Decisão
10. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 25 de março de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.