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Processo n.º 557/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório:
M..., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, recorre do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1
de Julho de 1997, que, no recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO da
sentença do Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo do Porto que, na
acção contra si intentada, o absolvera do pedido, revogou tal sentença e
decretou a perda do seu mandato de Presidente da Câmara de Vieira do Minho,
relativamente ao triénio de 1990/1993.
Pede que se apreciem, sub specie constitutionis, as normas dos artigos 9º, n.º
2, alínea a), e 14º da Lei n.º 87/89, de 9 de Setembro, e do artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, cuja inconstitucionalidade ele suscitara nas alegações que apresentou no Supremo Tribunal Administrativo.
2. Neste Tribunal, o recorrente concluiu assim as suas alegações:
São inconstitucionais todos os preceitos integrados nos diplomas que
consagram a tutela administrativa que pressuponham a sua aplicação directa
aos membros dos órgãos autárquicos, por violação do disposto nos artigos
18º, 2, e 243º da CRP.
2. Consequentemente, são inconstitucionais os artigos 9º da Lei n.º 87/89, de 9 de Setembro, e a Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto.
3. É inconstitucional o disposto no artigo 14º da referida Lei 87/89, por violação do disposto no artigo 30º, 4, da CRP.
4. Ainda que assim se não considerasse, tal preceito seria inconstitucional, por infracção ao artigo 50º, n.º 3, da CRP, se interpretado no sentido de a sua aplicação poder ser efectuada sem uma concreta indagação e prova de que a conduta imputada ao autarca fere a sua capacidade de independência e isenção assim como a capacidade de livre escolha por parte dos seus eleitores.
5. O objecto legalmente definido pelo artigo 2º de cada uma das referidas leis
87/89 e 27/96 não inclui os actos dos membros dos órgãos das autarquias locais, pelo que, ao preverem sanções directamente aplicáveis aos autarcas, os referidos artigo 9º e nomeadamente o seu n.º 2, a), da Lei 87/89 e artigo 8º, e nomeadamente seu n.º 2, da Lei 27/96, são inconstitucionais, por violação do princípio nulla poena sine lege consagrado no artigo 29º, 1, da CRP.
6. Ainda que o não fossem por tal motivo, aqueles artigo 9º, n.º 2, a), e artigo
8º, n.º 2, sê-lo-iam precisamente por violação dos mesmos princípio e preceito constitucionais, quando interpretados no sentido de serem aplicáveis no caso de participação em deliberações.
7. Mesmo que se entendesse da aplicabilidade, em tais casos, então sempre serão esses mesmos preceitos inconstitucionais desde que interpretados no sentido de a aplicação deles ser independente da averiguação, no concreto caso e circunstâncias concretas dele, de concreta consciência da ilicitude da sua conduta por parte do autarca visado, inconstitucionalidade que ocorrerá sempre que a sua aplicação seja feita sem que esteja provada tal consciência da ilicitude, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 2, da CRP, integrado e interpretado em conformidade com o artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, por força do disposto no artigo 16º, n.º 2, da CRP.
8. Por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 243º, n.º 3, da CRP, seriam ainda os mesmos preceitos inconstitucionais desde que interpretados no sentido da sua aplicação mesmo sem que estivesse provada, em concreto, gravidade de conduta que justificasse a mais pesada das sanções a que está sujeito um autarca em exercício, qual seja a da declaração da perda do seu mandato.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu do modo que segue as suas contra-alegações:
1º. As normas constantes dos artigos 9º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 87/89, de
9 de Setembro, e 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, ao preverem a responsabilidade pessoal dos titulares de órgãos autárquicos pelos ilícitos culposamente cometidos no exercício das suas funções - nomeadamente a participação em acto ou deliberação relativamente ao qual se verifique impedimento legal, e que conduza a obtenção de vantagem patrimonial - sancionando-os com a perda do respectivo mandato, não violam qualquer preceito ou princípio constitucional.
2º. Termos em que deverá improceder o presente recurso.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
Fundamentos:
4. O objecto do recurso: As únicas normas legais que o recorrente indicou no requerimento de interposição do recurso, a fim de serem por este Tribunal apreciadas sub specie constitutionis, são as dos artigos 9º, n.º 2, alínea a), e 14º da Lei n.º 87/89, de 9 de Setembro, e a do artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto. Ora, é este requerimento que delimita o objecto do recurso. Nas conclusões da alegação, o recorrente pode restringir esse objecto. Não pode, porém, ampliá-lo
(cf. 684º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil).
No entanto, das normas indicadas no requerimento de interposição de recurso, o acórdão recorrido só aplicou o artigo 9º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 87/89, de
9 de Setembro, e o artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto. De facto, como resulta do teor desse aresto, a perda do mandato foi declarada quanto ao mandato de pretérito (ou seja: quanto ao mandato de 1990/1993), e não também quanto ao mandato que estava em curso, que era o de 1994/1997. E isso, porque - decidiu-se no acórdão recorrido - a alteração do pedido requerida pelo Ministério Público (este, inicialmente, pediu a declaração de perda do mandato de 1990/1993, mas, posteriormente, veio requerer que se declarasse, antes, a perda do mandato de 1994/1997) não era legalmente admissível. É que - disse-se aí -, 'na falta de acordo entre as partes, o pedido só pode ser alterado na réplica'. E, não sendo essa alteração do pedido legalmente admissível, o único pedido a considerar era o inicialmente formulado (isto é, o decretamento da perda do mandato de 1990/1993), pois que - acrescentou-se no mesmo aresto - 'na sequência da não consideração da pretendida transformação do pedido inicial, intentada pelo ª na acção, tudo se passa como se esta tenha sempre vivido sob a
égide daquele pedido inicial, ou seja, da declaração de perda do pretérito mandato do R. no período de 90/93'. Ora, para declarar essa perda do mandato de
1990/1993, o acórdão considerou que, como o 'comportamento do R. preenchia tanto a previsão da alínea a) do n.º 2 do artigo 9º da Lei n.º 87/89, como a do artigo
8º, n.º 2, da posterior Lei n.º 27/96', era 'indiferente apurar qual dos dois regimes' - o da Lei n.º 87/89 [ artigo 9º, n.º 2, alínea a)] ou o da Lei n.º
27/96 (artigo 8º, n.º 2) - era 'mais favorável ao R., uma vez que, em qualquer dessas duas hipóteses, o comportamento preenche todos os requisitos legais - objectivos e subjectivos - para a declaração de perda do mandato'.
Tem, assim, que considerar-se aplicada a norma que se contém, seja no artigo 9º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 87/89, seja no artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96. Mas, apenas estas normas. Quanto à norma do artigo 14º da Lei n.º 87/89, é óbvio não Ter ela sido aplicada. De facto, como se disse já, nos autos, apenas se declarou a perda do mandato de Presidente da Câmara de Vieira do Minho, que o recorrente exercera no triénio de
1990/1993. Não se decidiu, aí, a questão da sua eventual inelegibilidade, decorrente dessa perda de mandato, para o mandato subsequente de presidente (ou vereador) dessa mesma Câmara. Decretou-se a perda daquele mandato (já exercido) de 1990 a 1993, mas não se tirou qualquer consequência para o mandato de 1994 a
1997, para que, de resto, ele tinha, entretanto, sido eleito e em cujo exercício se encontrava. Ora, é tal inelegibilidade que o mencionado artigo 14º, n.º 1, prescreve, quando dispõe que 'os membros de órgão autárquico [ ...] que hajam perdido o mandato não podem [ ...] ser candidatos nos actos eleitorais [ ...] subsequentes que venham a Ter lugar no período de tempo correspondente a novo mandato completo, em qualquer órgão autárquico'. [ Sobre este artigo 14º, n.º 1, concluindo pela sua não inconstitucionalidade, embora com votos discordantes, cf. o acórdão n.º 25/92 e 573/96 (publicados no Diário da República, II série, de 11 de Junho de 1992 e de 18 de Julho de 1996)] .
A apreciação, ratione constitutionis, a que, de seguida, vai proceder-se incidirá, pois, tão-somente sobre a norma que, de acordo com o acórdão recorrido, se contém tanto na alínea a) do n.º 2 do artigo 9º da Lei n.º 87/89, de 9 de Setembro, como no artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto. Por força dessa norma (tal como o aresto recorrido a interpretou e aplicou), perde o mandato de presidente de câmara aquele que, sendo também presidente de uma cooperativa, vota, na qualidade de presidente da autarquia, a deliberação de atribuir a essa cooperativa um subsídio de entre 1.000.000$00 a 1.500.000$00, que a câmara, efectivamente, posteriormente pagou e a cooperativa recebeu.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. Liminarmente, adverte-se que, tendo o acórdão recorrido decidido que 'o comportamento preenche todos os requisitos legais - objectivos e subjectivos - para a declaração de perda do mandato', tanto à luz do artigo 9º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 87/89, como do artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96; e sendo uma tal conclusão insindicável; a argumentação do recorrente dirigida a fazer derivar a inconstitucionalidade dos mencionados preceitos legais de interpretações que partam de um diferente pressuposto é absolutamente improcedente. Isto vale para a afirmação por ele feita de que esses preceitos são inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º 2, da Constituição, 'desde que interpretados no sentido de a aplicação deles ser independente da averiguação, no concreto caso e circunstâncias concretas dele, de concreta consciência da ilicitude da sua conduta por parte do autarca visado, inconstitucionalidade que ocorrerá sempre que a sua aplicação seja feita sem que esteja provada tal consciência da ilicitude' (cf. conclusão 7ª). E vale também para o que o mesmo diz na conclusão 8ª - a saber: que esses normativos violam o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 243º, n.º 3, da Lei Fundamental, 'desde que interpretados no sentido da sua aplicação mesmo sem que estivesse provada, em concreto, gravidade de conduta que justificasse a mais pesada das sanções a que está sujeito um autarca em exercício, qual seja a da declaração da perda do seu mandato'.
5.2. A norma sub iudicio e a tutela administrativa:
5.2.1. As autarquias locais estão sujeitos a tutela administrativa, que consiste
- diz o artigo 242º, n.º 1, da Constituição - 'na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei'. [ Sobre a tutela administrativa, cf. os acórdãos nºs 330/94 e
379/96 (publicados no Diário da República, II série, de 30 de Agosto de 1994 e de 15 de Julho de 1997). Na doutrina, cf: ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, páginas 207 e seguintes); J. BAPTISTA MACHADO (Participação, Descentralização, Democratização e Neutralidade na Constituição de 76, Coimbra, 1982, páginas 13 e seguintes); DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1987, páginas 506 e seguintes); J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, Coimbra, 1993, páginas 898 e 899); J. CASALTA NABAIS (A Autonomia Local, separata do Boletim da Faculdade de Direito, número especial - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, 1993, especialmente páginas 161, 162, 171 e 173); e VITAL MOREIRA (Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, páginas 206 e seguintes)] .
A tutela administrativa é, assim, uma tutela de legalidade, pois que não visa controlar o mérito das decisões dos órgãos da administração local (a sua oportunidade e a sua conveniência) ou a sua conformidade com os interesses gerais, tal como o Governo os concebe. O seu objectivo é, antes e tão-só, assegurar que essas decisões cumpram a lei. E mais: ela própria - a tutela administrativa - está sujeita ao princípio da legalidade, uma vez que só pode ser exercida 'nos casos e segundo as formas previstas na lei' - o que significa que só podem adoptar-se as medidas tutelares constantes da lei, que, assim, tem que definir as diferentes formas de tutela (inspecções, inquéritos, sindicâncias, informações, dissolução de órgãos autárquicos): é o princípio da tipicidade das medidas de tutela.
As medidas tutelares restritivas da autonomia local (a dissolução de órgãos autárquicos tem, seguramente, essa natureza) têm que ser precedidas - prescreve o nº 2 do citado artigo 242º - de 'parecer favorável de um órgão autárquico, nos termos a definir por lei'. A aplicação da medida de dissolução de órgãos autárquicos - dispõe o n.º 3 do mesmo artigo 242º - só pode fundar-se em 'acções ou omissões ilegais graves'.
5.2.2. As Leis nºs 87/89, de 9 de Setembro, e 27/96, de 1 de Agosto, a que pertencem, respectivamente, o artigo 9º, n.º 2, alínea a), e o artigo 8º, n.º 2, aqui sub iudicio, contêm, justamente, o regime jurídico da tutela administrativa sobre as autarquias locais, sendo que o diploma legal indicado em último lugar revogou a Lei n.º 87/89, 'bem como todas as disposições especiais' que previam
'fundamentos de perda de mandato [ ...] por remissão para o regime de tutela administrativa estabelecido' por esta lei.
Nas leis acabadas de referir, estabelece-se, justamente, que a tutela administrativa se exerce através da realização de inspecções, inquéritos e sindicâncias; e que os serviços a ela sujeitos devem prestar as informações necessárias e cooperar no que for preciso (cf. artigos 3º e 4º).
No capítulo das sanções aplicáveis à 'prática, por acção ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais' (a chamada tutela sancionatória), tais leis prevêem o decretamento da perda do mandato, se as ilegalidades 'tiverem sido praticadas individualmente por membro de órgãos autárquicos', ou a dissolução do órgão, se elas 'forem o resultado da acção ou omissão deste' (cf. artigo 8º da Lei n.º 87/89 e artigo 7º da Lei n.º 27/96, respectivamente).
Os casos susceptíveis de implicar a perda do mandato acham-se enumerados, respectivamente, no artigo 9º da Lei n.º 87/89 e no artigo 8º da Lei n.º 27/96. E as situações capazes de determinar a dissolução de órgão autárquico constam, respectivamente, do artigo 13º da Lei n.º 87/89 e do artigo 9º da Lei n.º 27/96.
Pois bem: o artigo 9º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 87/89, aqui sub iudicio, prescreve que 'perdem igualmente o mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções ou por causa delas, intervenham em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado quando: a).nele tenham interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa'. E o artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, também aqui sob exame, dispõe que 'incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem'.
5.2.3. Conhecido o teor da norma aqui sub iudicio, resta apreciar a sua conformidade com a Constituição.
O recorrente sustenta que os artigos 9º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 87/89, de
9 de Setembro, e 8º, n.º 2, da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, ao consagrarem uma medida de tutela administrativa de 'aplicação directa aos membros dos órgãos autárquicos' (recte, a medida de perda do mandato), são inconstitucionais. São-no, desde logo, 'quando interpretados no sentido de serem aplicáveis no caso de participação em deliberações'. No fundo, o que o recorrente diz é que a chamada tutela sancionatória é constitucionalmente ilegítima, quando a sanção se aplique a um membro de um
órgão autárquico.
5.2.4. O recorrente não tem, porém, razão. A Constituição o que exige é que a tutela seja exercida apenas 'nos casos e segundo as formas previstas na lei' (cf. artigo 242º, n.º 1). Ou seja: não podem aplicar-se medidas tutelares que não se encontrem previstas na lei (pas de tutelle sans texte). E exige, bem assim, que, quando tais medidas assumam a natureza de sanções, a sua aplicação só tenha lugar em caso de prática de
'acções ou omissões graves'. De facto - prescreve o n.º 3 do mesmo artigo 242º
-, 'a dissolução de órgãos autárquicos só pode Ter por causa acções ou omissões ilegais graves'. Independentemente da qualificação da sanção de perda de mandato, há-de entender-se que a Constituição não proíbe que a lei preveja a responsabilização pessoal e directa das pessoas físicas, membros dos órgãos autárquicos, que cometam factos ilícitos no exercício dessas funções, quando aplicadas por um tribunal. Questão é que as sanções que preveja sejam necessárias e se mostrem adequadas a assegurar o cumprimento das leis vigentes por parte dos órgãos das autarquias locais que hajam de tomar essas decisões. Pois isso é o que ocorre com a sanção de perda do mandato, em que incorre o autarca que, 'no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenha em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem'. Se não pudesse ser aplicada a medida sancionatória indicada a um membro de um
órgão autárquico que praticou uma ilegalidade grave, só porque essa ilegalidade consistiu na participação indevida desse membro numa decisão colegial, o resultado seria deixar esse tipo de ilegalidade sem qualquer sanção. E isso, não obstante ela Ter sido, eventualmente, determinante do sentido da deliberação tomada, de esta ser, acaso, ruinosa para a autarquia e de ele ser o único responsável pelo comportamento ilegal.
5.2.5. Concluindo este ponto: a norma constante dos preceitos legais em apreciação não viola, pois, o artigo 242º (conjugado com o artigo 18º, n.º 2) da Constituição.
5.3. A norma sub iudicio e o princípio nulla poena sine lege:
5.31. O recorrente pretende que, como os artigos 2º das Leis nºs 87/89 e 27/96 não incluem os actos dos membros dos órgãos das autarquias locais, o artigo 9º, n.º 2, a), da Lei 87/89 e o artigo 8º, n.º 2, da Lei 27/96, quando prevêem sanções directamente aplicáveis aos autarcas, são inconstitucionais, pois que - diz - violam o princípio nulla poena sine lege, consagrado no artigo 29º, 1, da CRP.
5.3.2.Também quanto a este ponto o recorrente não tem razão. O artigo 29º, n.º 1, da Constituição preceitua que 'ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior'.
Deste preceito constitucional, que o recorrente tem por violado, decorre o seguinte:
(a). só a lei (lei parlamentar ou decreto-lei parlamentarmente autorizado) é competente para definir os crimes e, bem assim, os pressupostos das medidas de segurança, tal como só ela pode definir as penas correspondentes e as medidas de segurança aplicáveis (princípio da legalidade penal);
(b). a lei deve especificar com suficiente precisão e clareza os factos que integram os vários tipos legais de crime (ou os pressupostos das medidas de segurança), e tipificar, bem assim, as penas e as medidas de segurança
(princípio da tipicidade). É dizer que o princípio da legalidade faz aos tipos legais de crime exigências de determinabilidade e de certeza;
© Quanto aos factos passados, a lei não pode criminalizá-los, nem mandar-lhes aplicar medidas de segurança, nem tão-pouco punir mais severamente crimes praticados com anterioridade, ou aplicar medidas de segurança mais gravosas a pressupostos já antes verificados: é o princípio da proibição da retroactividade da lei penal.
Pois bem: a norma aqui sub iudicio, constante dos preceitos legais atrás referidos, não prevê uma sanção de natureza penal. O artigo 29º, n.º 1, da Constituição não seria, por isso, nunca o parâmetro de referência directo para tal norma. O que, então, decorre do mencionado artigo 29º, n.º 1, é a exigência de determinabilidade e de certeza. E decorre, porque, embora essa exigência de determinabilidade e de certeza apenas seja feita, de forma directa, para o domínio penal, ela há-de valer, na sua ideia essencial, ainda que em menor grau, para todo o direito público sancionatório.
Este Tribunal já teve, de facto, ocasião de ponderar, no acórdão n.º 666/94
(publicado no Diário da República, II série, de 24 de Fevereiro de 1995), a propósito do ilícito disciplinar, o seguinte: A regra da tipicidade das infracções, corolário do princípio da legalidade, consagrado no n.º 1 do artigo 29º da Constituição (nullum crimen, nulla poena, sine lege), só vale, Qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais ramos de direito público sancionatório (maxime, do domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as infracções não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas. Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos funcionários incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se trate de prever penas disciplinares expulsivas [ ...] , as normas legais têm que conter um mínimo de determinabilidade. Ou seja: hão-de revestir um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa espécie de penas - o que se torna evidente se se ponderar que, por força dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar-se a condutas cuja gravidade o justifique (cf. artigo 18º, n.º 2, da Constituição). No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam penas expulsivas, atenta a gravidade destas, têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, de ser normas delimitadoras.
É que a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da dignidade da pessoa humana - pessoa que é o princípio e o fim do poder e das instituições (cf. artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição). No caso, a norma sub iudicio prevê a sanção de perda do mandato para factos que descreve com toda a precisão e clareza. Cumpre, assim, os postulados de determinabilidade e de certeza, por mais exigente que se seja nessa matéria. Dir-se-á, por último, que, para o fim em vista, é irrelevante argumentar com os artigos 2º da Lei n.º 87/89 e da Lei n.º 27/96, como faz o recorrente.
É que, para o ajuizamento de uma norma legal, ratione constitutionis, o único parâmetro válido é uma norma da Constituição ou um princípio nela inscrito, e não um preceito legal.
5.3.3. Concluindo este ponto: a norma sub iudicio não viola as exigências de determinabilidade e certeza, que toda a norma sancionatória deve cumprir.
6. Conclusão: Não sendo inconstitucional a norma sub iudicio, tem que negar-se provimento ao recurso.
Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa 12 de Maio de 1999- Messias Bento Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa