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Processo n.º 322/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A S..., S.A. requereu no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (10º Juízo) providência cautelar não especificada contra a T..., S.A. - providência que foi deferida, por decisão de 3 de Março de 1995.
Nessa decisão, o Juiz autorizou a entrega à S... das quantias depositadas à ordem do tribunal pela EDP-ELECTRICIDADE DE PORTUGAL, S.A. e determinou que a requerente prestasse caução, por garantia bancária, 'de metade das quantias' que lhe fossem entregues.
2. A requerida T... agravou, então, dessa decisão para a Relação, tendo o Juiz da 1ª instância, por despacho de 15 de Março de 1995, admitido o recurso com efeito meramente devolutivo.
Nesse mesmo despacho, o Juiz julgou prestada a caução arbitrada à requerente e ordenou que fosse passado precatório cheque a seu favor.
A requerida, notificada desse despacho, veio novamente agravar para a Relação, requerendo que ao recurso fosse fixado efeito suspensivo.
O Juiz da 1ª instância, por despacho de 30 de Março de 1995 - depois de consignar que 'a decisão que atribui efeito ao recurso é irrecorrível, podendo aquele efeito ser alterado em conferência' - admitiu o agravo apresentado contra o despacho que julgou prestada a caução e ordenou a passagem de precatório cheque, e fixou-lhe efeito meramente devolutivo.
A Relação, porém, por acórdão de 4 de Julho de 1995, alterou o efeito desse recurso - é dizer: do recurso interposto do despacho que julgou prestada a caução e ordenou a passagem de precatório cheque -, fixando ao mesmo efeito suspensivo.
3. Agravou, então, a requerente S... para o Supremo Tribunal de Justiça desse acórdão da Relação (de 4 de Julho de 1995) que fixara efeito suspensivo ao agravo - agravo a que (recorda-se) o Juiz da 1ª instância, pelo mencionado despacho de 30 de Março de 1995, tinha fixado efeito meramente devolutivo.
O Desembargador relator, por despacho de 24 de Novembro de 1995, não admitiu esse agravo, com fundamento em que a decisão que fixa o efeito a um recurso é irrecorrível.
Reclamou, então, a S... para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça contra esse despacho de inadmissão do recurso.
No Supremo Tribunal de Justiça, o Vice-Presidente, por despacho de
20 de Março de 1996, admitiu o agravo que o relator na Relação havia rejeitado. Ou seja: admitiu o agravo interposto pela requerente do acórdão da Relação, de 4 de Julho de 1995, que fixara efeito suspensivo ao agravo que a requerida tinha interposto do despacho do Juiz da 1ª instância, de 15 de Março de 1995, que havia julgado prestada a caução e mandado passar precatório cheque a favor da requerente, ao qual o mesmo Juiz, por despacho de 30 de Março de 1995, tinha fixado efeito meramente devolutivo.
4. Subindo o agravo assim admitido ao Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro relator levou os autos à conferência com o parecer de que o recurso não era de admitir, devendo, por isso, os respectivos autos 'baixar à Relação para aí prosseguirem seus termos'.
Este parecer do Conselheiro relator foi confirmado pela conferência, por acórdão de 25 de Fevereiro de 1997, por isso que, sem conhecer do mencionado agravo, mandou que os autos baixassem à Relação.
A requerente S..., notificada deste acórdão de 25 de Fevereiro de
1997, veio arguir a nulidade - recte, a irregularidade com influência no exame e decisão da causa - consistente no facto de ela não ter sido ouvida sobre o referido parecer do Conselheiro relator (ou seja: sobre o parecer de que o recurso não era de admitir).
Nesse requerimento, disse a S... que 'o artigo 704º, n.º 1, do CPC, interpretado no sentido de que, tendo o recorrente alegado já, não deve ser mandado ouvir sobre o parecer do relator que entende não dever conhecer-se do recurso, é inconstitucional, por violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, do qual decorre a consagração constitucional do princípio do contraditório'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 13 de Maio de 1997, decidiu não ter sido cometida a nulidade processual que fora arguida.
Quanto à invocada inconstitucionalidade, também a não teve por verificada, uma vez que - disse - 'o n.º 1 do artigo 704º, aplicável por força do artigo 749º, ambos do CPC, ao não mandar novamente ouvir as partes, 'não afecta substancialmente o próprio direito ao recurso, enquanto via de defesa contra actos jurisdicionais e de controlo da objectividade da realização do direito'.
5. É deste acórdão (de 13 de Maio de 1997) que vem o presente recurso, interposto pela S... ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do mencionado artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na interpretação que dele fez o aresto aqui sob recurso. (Registe-se que, embora, no respectivo requerimento de interposição, se aponte o acórdão do mesmo Supremo, de 25 de Fevereiro de 1997, também como recorrido, nas conclusões da alegação, o recurso foi expressamente limitado àquele acórdão de 13 de Maio de 1997: cf. conclusões
1ª e 2ª).
Neste Tribunal, apenas alegou a recorrente S..., tendo, quanto ao que aqui importa, dito, nas respectivas conclusões, que 'a interpretação dada à norma do artigo 704º, n.º 1, do CPC no acórdão do STJ ora recorrido' - 'no sentido de que, tendo o recorrente apresentado já a sua alegação, mas sem se ter pronunciado sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso, não deve ser ouvido sobre o parecer do relator que entende, ex officio (portanto, sem que a questão tenha sido suscitada pelo recorrido), não dever conhecer-se do recurso por inadmissibilidade do mesmo' - 'está ferida de inconstitucionalidade material, por violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da CRP' (cf. conclusões 6º e 8º).
6. Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de constitucionalidade tendo por objecto a norma do n.º 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil (redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), na interpretação segundo a qual, tendo o recorrente apresentado já a sua alegação, não tem o mesmo que ser ouvido sobre o parecer do relator que, ex officio, se pronuncie no sentido de se não dever conhecer do recurso, por ele ser inadmissível.
II. Fundamentos:
7. A norma do artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
O artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil preceituava assim: Artigo 704º (Não conhecimento do objecto do recurso)
1. Se entender que não pode conhecer-se do recurso, o relator faz a exposição escrita do seu parecer e mandará ouvir, por cinco dias, cada uma das partes, se estas ainda não tiverem alegado.
A letra deste preceito aponta para que, se já tiverem oferecido as suas alegações, as partes não têm que ser ouvidas sobre o parecer do relator que se pronuncie, ex officio, no sentido do não conhecimento do recurso. E foi nesse sentido que o acórdão recorrido o interpretou e aplicou. A doutrina tem-no, no entanto, interpretado por forma a que, num tal caso, apenas se não impõe a audição do recorrido, pois o recorrente, esse deve ser sempre notificado para se pronunciar.
Escreve, a propósito, ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra, 1952, página 437): Diz-se no artigo que as partes são ouvidas se ainda não tiverem alegado, donde parece concluir-se que se já tiverem oferecido as alegações, a audiência não tem lugar. Mas há que pôr de reserva esta conclusão. O apelado não é ouvido se já tiver oferecido alegação; mas deve ser ouvido o apelante. É o que se infere, quer da última alínea do artigo 704º, quer, por argumento de analogia, do artigo
751º. O apelante é ouvido, apesar de já ter alegado, quando a questão é levantada pelo apelado na sua alegação; pela mesma razão deve ser ouvido, posto que já tenha alegado, quando a questão é levantada oficiosamente. Por outro lado, o artigo
751º manda ouvir o agravante, apesar de este já ter oferecido a alegação; não se compreende que se crie ao apelante situação mais desfavorável do que aquela em que está colocado o agravante.
De sua parte JACINTO RODRIGUES BASTOS (Notas ao Código de Processo Civil, volume III, Lisboa, 1972, página 318): Entende o Prof. Alberto dos Reis que mesmo que as partes já tenham alegado, o relator deve mandar ouvir, em 48 horas, o apelante; seria curial que essa audiência estivesse prevista, dada a importância que, para o apelante, tem a questão suscitada; é certo que a letra da lei não favorece esta interpretação, mas o facto de se ter previsto, no n.º 3, a audiência do apelante que já alegou, quando a questão é levantada pelo apelado, leva-nos a aderir àquele entendimento.
Presentemente, antes de decidir não conhecer do recurso, deve o relator - que é quem tem competência para o efeito - ouvir cada uma das partes, por dez dias (cf. artigo 704º, n.º 1, após a reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro).
7. A questão de constitucionalidade:
7.1. Advertência:
Não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre qual seja a melhor interpretação do preceito. Compete-lhe apenas decidir se a interpretação do n.º
1 do artigo 704º do Código de Processo Civil adoptada pelo acórdão recorrido, e atrás apontada, é (ou não) compatível com a Constituição.
Antes de abordar esta questão, apenas duas notas. A primeira, para recordar que o argumento que ALBERTO DOS REIS extraía do artigo 751º do Código de Processo Civil de 1939 era, no caso, ininvocável. E era-o, porque a audição do advogado do agravante deixou de ser imposta pela lei processual de 1967 (cf. artigo 751º, n.º1, conjugado com o artigo 749º). A segunda nota é para chamar a atenção de que, embora pareça que a recorrente, nas conclusões da sua alegação, restringiu a hipótese da norma que pretende ver apreciada sub specie constitutionis, em bom rigor, tal não aconteceu. Sucedeu apenas que, ao enunciar a interpretação que considera inconstitucional, indicou também o que para si constitui o real motivo da inconstitucionalidade - a saber: o facto de, por ter alegado, não ter sido ouvida sobre o parecer em que o Conselheiro relator suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, não obstante, na sua alegação, se não ter pronunciado sobre tal questão.
7.2. Conhecendo da questão de constitucionalidade.
Sustenta a S... que se viola o artigo 20º, n.º 1, da Constituição, quando se interpreta o n.º 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, em termos de permitir que, quando o recorrente já alegou, o tribunal possa tomar a decisão de não conhecer do recurso, com fundamento na sua inadmissibilidade, sem o ouvir sobre essa questão.
Como este Tribunal tem feito notar (cf., entre outros, o acórdão n.º
249/97, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito - processo civil incluído - tem que ser um processo equitativo e leal, no qual cada uma das partes há-de poder expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º
1, da Constituição, que prescreve que 'a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' (versão de
1997).
Não se vê, porém, que a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido atinja - ao menos de forma intolerável - o direito de defesa assim definido, pois que, tendo oferecido a sua alegação, o recorrente teve ocasião de, aí, colocar e discutir todas as questões que o recurso suscitava.
Ora, só se a violação do direito de defesa fosse intolerável, é que a interpretação adoptada seria constitucionalmente inadmissível. E só então seria irremissivelmente inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, com o sentido que o acórdão recorrido dele extraiu. Fora dessa situação, a interpretação adoptada pode constituir melhor ou pior direito, mas ainda não é não-direito.
Não é despiciendo recordar aqui que este Tribunal, toda a vez que, depois de apresentadas as alegações, se deu conta de que, em virtude de a decisão impugnada ser irrecorrível (ou de se não verificarem os respectivos pressupostos), não podia conhecer do recurso, sempre decidiu não tomar conhecimento dele sem que sentisse necessidade de mandar ouvir o recorrente sobre essa questão prévia. E, quando essa sua prática sofreu contestação, reafirmou a correcção desse seu modo de proceder.
Assim é que, no acórdão nº 6/95 (por publicar), tendo sido arguida a nulidade do aresto, tirado depois de produzidas as alegações, em que se decidiu não conhecer do recurso - nulidade que, segundo o reclamante, consistiria no facto de se ter tomado aquela decisão sem que o relator tivesse feito exposição escrita do seu parecer e sobre ela tivesse mandado ouvir o recorrente -, o Tribunal decidiu que a exposição a que se refere o artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional só é imposta para o caso de o relator, logo no despacho liminar, entender que não pode conhecer-se do recurso, e não também para o caso de ele marcar prazo para alegações e, a final, o tribunal acabar por não conhecer do recurso. E, perante situações semelhantes, decidiu identicamente nos acórdãos nºs 28/94 e 86/95 (ambos também por publicar) e no acórdão n.º 87/95
(publicado no Diário da República, II série, de 29 de Abril de 1995)
No acórdão nº 87/95, o Tribunal precisou nada haver que impeça que, quando vai conhecer do mérito, 'possa, oficiosamente, encontrar uma causa impeditiva desse conhecimento' e que, tal sucedendo, não há já 'que proceder a qualquer notificação das partes para uma eventual pronúncia sobre a matéria'.
7.3. Nota final:
Para finalizar, há que referir que, no presente caso, ocorre uma particularidade, que é esta: no momento em que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não tomar conhecimento do recurso, por ser irrecorrível a decisão impugnada perante ele, já a recorrente se tinha pronunciado sobre a questão da recorribilidade da decisão, embora tal pronúncia não tivesse incidido sobre o parecer do Conselheiro relator.
De facto, quando reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça contra o despacho do Desembargador relator que não admitira o recurso interposto do acórdão da Relação que alterou o efeito meramente devolutivo
(fixado pelo Juiz da 1ª instância ao recurso interposto do despacho que julgou prestada a caução e ordenou a passagem de precatório cheque) e lhe fixou efeito suspensivo, discreteou ela sobre essa questão. Sustentou, na oportunidade, que, irrecorrível, é apenas a decisão do juiz da 1ª instância que fixa o efeito ao recurso, e não também o acórdão da Relação que altera esse efeito. E disse também que a isso acresce o facto de que, tratando-se de agravo de uma decisão que autorizou a entrega de uma elevada quantia à reclamante, a fixação do efeito suspensivo ao recurso, constitui uma grave 'incoerência sistemática', contrariando o fundamento das providências cautelares de evitar o dano decorrente do 'periculum in mora'.
Ora, o que, no aresto recorrido, o Supremo decidiu foi, justamente, que esse acórdão da Relação, que alterou o efeito do recurso, era irrecorrível.
A questão da recorribilidade da decisão que fixa (ou altera) o efeito de um recurso, decidida pelo Supremo em sentido negativo no acórdão aqui recorrido, foi, pois, discutida pela ora recorrente, naquela reclamação.
O que acaba de dizer-se significa que, se a falta de audição do recorrente, que já ofereceu alegações, sobre a questão do não conhecimento do recurso fundado na irrecorribilidade da decisão impugnada, pudesse, nalgum caso, importar violação do direito de defesa, essa violação não existiria, decerto, em casos como o dos autos, em que, justamente, ele se pronunciou, expressa e especificamente, sobre essa questão.
7.4. Conclusão:
A norma do artigo 704º, n.º1, do Código de Processo Civil, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido, não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento de constitucionalidade que nele se contém.
Lisboa, 12 de Maio de 1997 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brit0 Maria dos Prazeres Beleza (c/dispensa de vistos) Luis Nunes de Almeida