Imprimir acórdão
Processo n.º 156/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. No presente processo o relator no Tribunal Constitucional elaborou em 28 de Março de 2000 decisão sumária em que, com os seguintes fundamentos, recusou tomar conhecimento do recurso interposto por A....e C...:
'(...)
5. Analisando os autos, com o objectivo de apurar se se encontram preenchidos os requisitos do presente recurso de constitucionalidade, conclui-se que é de proferir decisão sumária ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro). Na verdade, sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, são requisitos para dele se poder tomar conhecimento, como se sabe, além da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo. Este último requisito, como este Tribunal tem frisado repetidamente (por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994) deve ser entendido, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão',
'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita' (ver também José Manuel Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, separata dos Estudos em homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª ed., Coimbra, 1992, pág. 51, e nota 50). É que é este o único sentido que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado – ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995, onde se escreveu que 'a exigência de um cabal cumprimento do
ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão' (e ainda o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade (v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo, o Acórdão n.º 166/92, publicado no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992). Antes os recorrentes têm o ónus de suscitar a inconstitucionalidade perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela. Esta orientação, como também se salientou no Acórdão n.º 352/94, 'sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final', por ter sido confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo inesperada, cuja possibilidade não poderia antever.
6. Nos termos do requerimento de recurso de constitucionalidade (fls. 1860), os recorrentes pretendem que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional da norma do n.º 2 do artigo 428º do Código de Processo Penal, segundo dizem, 'tal como o Tribunal da Relação de Lisboa o interpretou e aplicou nos autos'. Tal norma dispõe:
'2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, a declaração referida no artigo 364º, n.ºs 1 e 2, ou a falta do requerimento previsto no artigo 389º, n.º 2, ou no artigo 391º-E, n.º 2, vale como renúncia ao recurso em matéria de facto.' Ora, poderá, antes do mais, duvidar-se que a forma como, no requerimento de recurso, os recorrentes definem a questão de constitucionalidade a apreciar por este Tribunal se revista da necessária determinação, uma vez que não se enuncia o sentido ou a dimensão normativa do preceito do artigo 428º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que se tem por violador da Lei Fundamental, antes se remetendo para tal preceito 'tal como o Tribunal da Relação de Lisboa o interpretou e aplicou nos autos'. Acresce, porém, que não se verificam outros requisitos essenciais à tomada de conhecimento do presente recurso. Assim, os recorrentes afirmam que tal questão de constitucionalidade foi suscitada aquando da invocação da nulidade do acórdão proferido na 1ª instância
(ou seja, do recurso que interpuseram para o Supremo Tribunal de Justiça que foi depois remetido para o tribunal competente, o Tribunal da Relação de Lisboa). No entanto, consultando tal peça, verifica-se que nela não se encontra qualquer suscitação da inconstitucionalidade da norma do artigo 428º, n.º 2, do Código de Processo Penal. A única referência a uma desconformidade com a Lei Fundamental que se encontra nesse recurso reporta-se, na verdade (nem sequer ao artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, apenas se dizendo que se verifica o vício previsto neste), ao artigo 374º, n.º 2, daquele Código, num determinado entendimento. Na verdade, a suscitação da inconstitucionalidade do artigo 428º, n.º 2, do Código de Processo Penal – cuja apreciação sub specie constitutionis é, segundo indicação dos próprios recorrentes no requerimento de recurso, o objecto do presente recurso –, nunca ocorreu nos autos senão perante este Tribunal Constitucional, nem sequer podendo considerar-se terem os recorrentes, através da referida suscitação durante o processo da inconstitucionalidade do artigo
374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pretendido impugnar o referido artigo
428º, n.º 2, norma remissiva que, contudo, não remete para esse artigo 374º, n.º
2. Deste modo se compreende, aliás, que no Acórdão recorrido se não encontre qualquer referência ao artigo 428º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e à questão da sua conformidade constitucional (mas, tão-só, à inexistência de violação do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Nem sequer, por outro lado, se verifica qualquer circunstância que possa levar a considerar que se está no presente caso perante uma daquelas situações em que se deve dispensar os recorrentes da exigência da invocação da inconstitucionalidade antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a quo.
7. Acresce, aliás, que não se vê que a norma do artigo 428º, n.º 2, do Código de Processo Penal – à qual, como se disse, não se encontra referência no Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa – tenha sido objecto de aplicação na decisão recorrida, como sua razão de decidir. Na verdade, tal norma limita-se a dispor que a declaração de que se prescinde da documentação da prova (referida no artigo 364º, n.ºs 1 e 2), ou a falta do requerimento para tal documentação (previsto no artigo 389º, n.º 2, ou no artigo
391º-E, n.º 2), vale como renúncia ao recurso em matéria de facto, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Penal. Ora, não se vislumbra na decisão recorrida, não só qualquer referência, como qualquer ensejo de aplicação de tal norma, em qualquer dos seus aspectos – designadamente, não podendo considerar-se a referência a que 'cumpria, efectivamente, ao Tribunal da Relação de Lisboa, assegurar o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto' suficientemente determinadora do sentido do artigo 428º, n.º 2, do Código de Processo Penal cuja constitucionalidade se impugna. Também, pois, por a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada não ter sido aplicada pela decisão recorrida, não poderia este Tribunal tomar conhecimento do presente recurso.
8. Quanto às restantes considerações que se encontram no requerimento de recurso
– relativas ao cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, e no n.º 5 do artigo 423º do mesmo Código –, a verdade é que não correspondem a qualquer questão de constitucionalidade normativa que os recorrentes tenham trazido ou pretendam trazer à apreciação deste Tribunal (se bem que tenham invocado durante o processo a inconstitucionalidade do artigo
374º, n.º 2, desse diploma, num seu certo entendimento). Tais considerações (que se seguem à identificação da norma impugnada – o artigo 428º, n.º 2, referido –, sem, como se viu, explicitarem o sentido que reputam inconstitucional) são, na verdade, referidas no requerimento de recurso directamente à decisão recorrida. Em tal requerimento, o que os recorrentes fazem é, pois, impugnar a constitucionalidade do próprio Acórdão da Relação, que, segundo dizem, deveria ter dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (e, não o tendo feito, 'violou o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto consagrado no n.º 1 do artigo 32º da CRP'). E não impugnar a conformidade constitucional desta norma. Ora, como é bem sabido – e este Tribunal tem repetido várias vezes –, objecto do recurso de constitucionalidade na nossa ordem jurídica é apenas a apreciação da constitucionalidade de normas, e não de decisões, judiciais ou administrativas, por isso que o nosso legislador constitucional não acolheu a figura do recurso de amparo contra actos concretos de aplicação do Direito. Não estando, neste ponto, em causa qualquer questão constitucionalidade normativa, o Tribunal também nesta parte não pode tomar conhecimento do presente recurso.
(...)'
2. Os recorrentes vieram reclamar para a conferência dessa decisão sumária, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo que:
'1. De acordo com a decisão sumária do Exmo.º Senhor Juiz Cons. Relator, os recorrentes impugnam a constitucionalidade do próprio Acórdão da Relação de Lisboa.
2. Não é esse, salvo o respeito devido, o entendimento dos recorrentes.
3. Muito pelo contrário, o que os recorrentes dizem é tão só e apenas isto:
4. O artº 374º n.º 2 do C.P.P., quando entendido, como no caso vertente, de que basta uma resumida indicação dos factos provados e sua crítica - interpretado como foi, restritiva e inconstitucionalmente - ofende o artº 32º da C.R.P., violando-o, pois não se indica o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção de modo explícito e minucioso, quando na verdade o artº 374º n.º 2 exige uma enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, dos motivos que fundamentam tal decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não se bastando com meras referências genéricas e abstractas.
5. Cremos, assim, que tal inconstitucionalidade foi invocada durante o processo e, como tal deve ser apreciada, concluindo-se, deste modo pela procedência da reclamação com o consequente conhecimento do recurso.'
3. O Ministério Público, em resposta à reclamação deste modo deduzida, defendeu que
'1 - A presente reclamação - circunscrita ao não conhecimento do recurso no que se reporta à norma constante do artigo 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal -
é claramente improcedente.
2 - Na verdade, não suscitaram os ora reclamantes qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de fundar o recurso interposto.
3 - Não constituindo objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade normativa a questão que se traduz em apreciar se o nível de fundamentação
'substancial' da decisão sobre a matéria de facto, constante do acórdão condenatório - reconhecendo os arguidos que este se não limitou a uma mera especificação ou arrolamento de meios probatórios relevantes, procedendo a uma
'resumida indicação dos factos provados e sua crítica' (cfr. fls. 1820) - deve considerar-se bastante, face à exigência legal que se o tribunal proceda a um
'exame crítico das provas'.
4 - Na verdade, tal questão é absolutamente indissolúvel da especificidade do caso concreto, da matéria de facto apurada e do tipo e natureza das provas produzidas, não sendo viável formular, sobre tal matéria, um critério
'normativo', susceptível de se reconduzir à formulação 'de uma regra abstractamente enunciada para uma aplicação genérica e não simplesmente o controlo da concreta decisão de um caso jurídico', por não competir ao Tribunal Constitucional a fiscalização do que represente 'valoração própria do órgão julgador exclusivamente imputável à latitude da própria conformação interna da decisão judicial' (cfr. Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, pág.
339/340).' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. Na presente reclamação nada de substancial adiantam os reclamantes susceptível de infirmar a decisão sumária em apreço. De facto, como se explicou na decisão reclamada, a questão de constitucionalidade cujo objecto foi delimitado no requerimento de interposição do presente recurso reporta-se à norma do n.º 2 do artigo 428º do Código de Processo Penal, não tendo relativamente a ela sido suscitada, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa que o Tribunal da Relação de Lisboa devesse apreciar e decidir, de forma a poder desencadear a intervenção do Tribunal Constitucional para reexame da questão de constitucionalidade normativa. Acresce que a norma indicada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade não só não foi impugnada, ela própria, durante o processo, por desconformidade constitucional, como não foi sequer aplicada na decisão recorrida, tal como explicado na decisão reclamada. No sentido de que o requerimento de interposição do recurso limita o seu objecto
às normas nele indicadas e impugnadas sub specie constitutionis, cfr. os Acórdãos n.ºs 71/92, 323/93, 402/93, 10/95, 35/96 e 379/96 (publicados no Diário da República, II série, de 18 de Agosto de 1992, de 22 de Outubro de 1993, de 18 de Janeiro de 1994, de 22 de Março de 1995, de 2 de Maio de 1996 e de 15 de Julho de 1996, respectivamente). Assim sendo, e de um ponto de vista formal, nunca poderia a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal fazer parte do objecto do recurso de constitucionalidade pretendido interpor, porquanto, embora referida pelos ora reclamantes no respectivo requerimento de interposição, foi-o em relação à decisão recorrida e sem se individualizar de forma clara a interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada por este Tribunal. Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Junho de 1995):
'[...] impunha-se que os reclamantes tivessem indicado – o que não fizeram – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que eles têm por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.'
5. O Tribunal Constitucional não funciona como mais um grau de jurisdição em relação às decisões anteriores, de forma a, independentemente da solução de questões de constitucionalidade normativa, poder corrigir eventuais erros na apreciação dos elementos probatórios e na valoração da prova sobre a matéria dos factos controvertidos (como se observou no Acórdão n.º 756/96, inédito). Constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal Constitucional que o objecto da impugnação por meio do recurso do constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional é, não a conformidade constitucional das decisões, mas sim o juízo nelas contido sobre a constitucionalidade de normas com interesse para a decisão da causa, efectiva e decisivamente aplicadas, devendo a questão ser suscitada atempadamente durante o processo, de forma directa, explícita e perceptível de modo a que não se fomentem dúvidas quanto à matéria a considerar (cfr., por todos, os Acórdãos n.ºs 214/94 e 178/95, publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994 e de 21 de Junho de 1995, respectivamente). Ora, os reclamantes, ao defenderem que no Acórdão recorrido 'não se indica o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, de modo explícito e minucioso', deixaram mais uma vez claro que pretendem impugnar a constitucionalidade da própria decisão recorrida. Que assim é, no caso concreto, torna-se particularmente visível quando os reclamantes persistem em censurar a decisão recorrida por ter procedido a 'uma resumida indicação dos factos provados e sua crítica', e não a um 'exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção, de modo explícito e minucioso'.
É, mais uma vez, a decisão judicial que está em causa, e não a norma do artigo
374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, tal como – conforme se salientou na decisão sumária impugnada – foi à decisão judicial, a não a determinada interpretação, devidamente enunciada, daquela norma, que, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade os reclamantes imputaram a desconformidade constitucional. Há, pois, que confirmar a decisão sumária em questão. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, não tomar conhecimento do recurso e condenar os reclamantes em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 17 de Maio de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa