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Processo n.º 350/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Em reclamação deduzida ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal, por A., B. e C., o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu o seguinte despacho:
“1. Por decisão da 1ª instância foram os arguidos B. e C. condenados pela prática, como coautores, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, respetivamente, nas penas de 7 anos de prisão e 6 anos e 6 meses de prisão e o arguido A. pela prática, como coautor, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 6 anos de prisão.
Não se conformando recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Na Relação foi proferida decisão sumária, rejeitando os recursos interpostos da decisão da 1ª instância por extemporâneos.
Na decisão sumária refere-se que «se em passo algum da motivação do recurso, ou das respetivas conclusões, os recorrentes manifestam efetiva pretensão de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e muito menos cumprem qualquer dos ónus a que se reportam os n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, não pode deixar de se entender que os recursos efetivamente, não têm por objeto a reapreciação da prova gravada e, consequentemente, são absolutamente extemporâneos».
Notificados desta decisão reclamaram os arguidos para a conferência.
O acórdão recorrido, proferido em 14.12.2011, negou provimento a cada uma das reclamações, mantendo a decisão sumária reclamada.
2. Inconformados, os arguidos recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça. Os recursos não foram admitidos por despacho de 25-01-2012, nos termos do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
Os arguidos reclamam da não admissão do recurso, nos termos do art. 405.º do CPP, invocando, em síntese, os seguintes fundamentos:
- Cumpriram o prazo processualmente exigível para a apresentação dos recursos.
- No caso, foram convidados a aperfeiçoar as conclusões da motivação por falta de concisão e por não ter sido cumprido o previsto no art. 412.º, n.º 3, do CPP.
- Relativamente às motivações que contendem com a verdade ou inverdade que nelas invocam, bastará ao Tribunal Superior auditar o que foi dito em audiência pelos consumidores e, segundo um critério de escrutínio do Tribunal ad quem, alcançar a verdade material.
- A interpretação literal ou meramente formal do art. 412.º, n.º 3 do CPP, gera uma inconstitucionalidade da norma que, em si, não enferma desse vício.
- O indeferimento da admissão do recurso apresentado junto do Tribunal da Relação de Lisboa e a decisão que não admitiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, constituem uma diminuição das garantias de defesa consagradas no art. 32.º, n.º 1, da CRP e como tal devem ser consideradas violadoras dos direitos constitucionais previstos na referida norma da Lei Fundamental.
3. O modelo dos recursos em processo penal está organizado segundo a solução e os princípios do recurso como remédio para erros de facto ou de direito de decisões judiciais, mas com o enquadramento na prefiguração e organização processual e hierárquica de graus de recurso.
O recurso como remédio opera e tem de enquadrar-se no âmbito e no limite do respetivo grau hierárquico, no sentido em que todo o remédio apenas se pode efetivar se se compreender ainda no âmbito hierárquico da organização por graus de recurso segundo pressupostos de admissibilidade objetivos e prefixados.
O remédio não pode valer ato a ato, por referência a decisões fragmentárias, mas só atua se os pressupostos gerais o permitirem dentro do respetivo grau de recurso admissível.
Nesta matéria e na conjugação recurso-remédio (funcional) – graus de recurso (hierárquico e de organização e repartição processual), a regra é a coincidência do recurso-remédio com a máxima amplitude no primeiro grau de recurso – que constitui a regra geral do art. 427.º CPP.
Este princípio significa que em todas as situações que não admitam, processualmente, um outro grau, todas as questões pertinentes e que integrem o objeto do processo, ou que estejam referidas ao conhecimento do objeto do recurso, obtêm decisão definitiva nesse grau (salvo, obviamente, as específicas questões relativas a contencioso de constitucionalidade).
4. No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, a redação do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do artigo 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os “ acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo”.
O acórdão em causa não conheceu, e muito menos a final, do objeto do processo, precisamente porque ao manter a decisão sumária que rejeitara os recursos por extemporaneidade não se pronunciou sobre o mérito da causa.
Com efeito, a apreciação dos requisitos sobre a admissibilidade do recurso reporta-se a questões de ordem processual (legitimidade, interesse em agir, respeito pelo prazo de interposição) que precedem o conhecimento do objeto do processo nos limites definidos pelo âmbito do recurso, mas o âmbito do recurso não se identifica com o objeto do processo.
Logo, o recurso não é admissível ao abrigo do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
Não há assim violação do art. 32.º, n.º 1, da Constituição porque a decisão proferida pela Relação (extemporaneidade do recurso), por se incluir nos pressupostos e conhecimento do recurso, não se autonomiza e integra-se nas próprias condições do exercício do direito, que só pode ser cabalmente exercido uma vez verificados e cumpridos todos os pressupostos e condições de que depende.
Por outro lado, e como é jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no art. 32º, n.º 1, da Constituição, basta-se com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição, que os reclamantes já utilizaram ao recorrer para o tribunal da Relação.
E a inconstitucionalidade imputada ao art. 412.º, n.º 3, do CPP, não pode ser objeto de conhecimento, por respeitar ao acórdão recorrido, e não aos termos e fundamentos da reclamação.
5. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.”
2. Os mesmos reclamantes interpuseram recurso deste despacho para o Tribunal Constitucional, mediante requerimento do seguinte teor:
«(…) arguidos nos autos supraidentificados, vêm, perante Vós, recorrer da douta decisão proferida em 26 de março de 2012, pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, que manteve a decisão reclamada proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1 – O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento à pretendida admissão dos recursos interpostos pelos arguidos do douto acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Judicial de Praia da Vitória, com fundamento numa alegada extemporaneidade.
2 – Na verdade o artigo 412º – nº 3, do C.P.P. preceitua que os arguidos, ao impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, devem especificar, para beneficiarem do prazo de recurso de 30 dias, o seguinte:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) – As provas que devem ser renovadas.
3 – Sucede que a Excelentíssima Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa decretou numa 1ª fase que as conclusões do recurso apresentado pelos 3 arguidos eram demasiado extensas e não tinham correspondência com a fundamentação.
Após o aperfeiçoamento apresentado entendeu que não foi dado cumprimento aos preceitos legais adjetivos que impendem sobre tal matéria.
4 – Porém, o que está em causa é a credibilidade dos depoimentos das testemunhas/consumidores que foram ouvidas em audiência, depoimentos esses plasmados na matéria de facto dada como provada e que conduziram à aplicação de determinada pena.
Se tais depoimentos tivessem sido valorados pelos julgadores considerando as sucessivas declarações prestadas no sentido afirmativo ou negativo dos factos imputados aos arguidos, certamente que funcionaria o princípio constitucional consagrado na Lei Fundamental in dubio pro reo.
5 - E tal matéria, suscitada pelos recorrentes, foi suficientemente relevante para que o Exmo. Procurador da República do Tribunal de 1a Instância não deixasse passá-la em claro, tendo-a rebatido, o que só poderá significar que as motivações apresentadas pelos arguidos que tiveram como contraponto as contramotivações do Ministério Público poderiam e deveriam ter sido escrutinadas em Tribunal Superior.
6 – Ora, os recorrentes tiveram o cuidado de identificar em folha anexa quais foram as testemunhas que não mantiveram as suas declarações prestadas à polícia, no início do julgamento e após a admoestação do Tribunal.
7 – Sendo certo que tais depoimentos foram plasmados na matéria de facto dada como provada e determinaram a fixação de uma determinada medida da pena que obviamente seria outra se funcionasse o princípio in dubio pro reo.
8 – E salvo o devido respeito, que é muito, pelo douto entendimento dos tribunais superiores, que já se debruçaram sobre tal matéria, os recorrentes ainda não compreenderam onde está a substância que lhes é imputada da violação do artigo 412º/3 do CPP.
9 – Assim sendo, é inconstitucional por violação das garantias de defesa dos arguidos consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 412º/3 do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de admitir que a inclusão no recurso de uma folha anexa discriminativa da identificação das testemunhas/consumidores com depoimentos contraditórios e factos relevados na matéria dada como provada não preenche os requisitos exigidos pela respetiva norma que autorizem a dilação do prazo de 10 dias previsto para o recurso nos termos do artigo 411º/4 do mesmo diploma legal.
Pugnando-se assim pela declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 412º/3 do CPP se interpretada como o fez o Tribunal da Relação de Lisboa e confirmada pelo Tribunal de Revista.»
3. Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho:
“Requerimento de fls. 218 a 220.
Não se toma conhecimento do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional em que os recorrentes invocam a inconstitucionalidade da interpretação efetuada do art. 412.º, n.º 3, do CPP, por se referir ao Acórdão da Relação e não a decisão proferida nos termos do art. 405.º do CPP.”
4. Os reclamantes apresentaram o seguinte requerimento, mandado processar como reclamação para o Tribunal Constitucional:
“(…) vêm dela RECLAMAR para este Alto Tribunal ao abrigo do artigo 76º - nº 4 da Lei nº 28/82, de 16111 com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de fevereiro, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1 – No douto despacho, ora reclamado, vem lavrado que os arguidos invocam no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade da interpretação efetuada do artigo 412º nº 3 do C.P.P., referindo-se ao acórdão da Relação de Lisboa e não a decisão referida nos termos do artigo 405º do C.P.P.;
2 – Salvo o devido respeito, que é muito, o que está em causa é a violação dos direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados no artigo 32º - nº 1 da CRP, que sempre poderão ser assegurados pela mais alta instância penal e que é o Supremo Tribunal de Justiça;
3 – Podendo ordenar às instâncias hierarquicamente inferiores a sanação de irregularidades e ilegalidades derivadas da inobservância da lei onde se inclui a repetição de diligências:
4 – E sem necessidade de, recurso ao Tribunal Constitucional que tem a vocação própria da verificação da constitucionalidade das normas aplicadas na administração da justiça;
5 – Assim, e na perspetiva dos ora reclamantes, o recurso “per saltum” diretamente para o Tribunal Constitucional, sem ser esgotado o reexame da matéria de direito no Supremo Tribunal de Justiça é desconforme às razões de economia processual que têm presidido às sucessivas reformas do Código de Processo Penal e que visam a celeridade na administração da Justiça.
Face ao exposto, vêm os arguidos pugnar pela procedência da presente reclamação junto do Tribunal Constitucional, admitindo o recurso interposto para este Alto Tribunal.”
5. O Ministério Público respondeu nos termos seguintes:
“1. Os arguidos [ ….] interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação de Lisboa que indeferiu a reclamação da decisão sumária, na qual, por extemporaneidade, se tinham rejeitado os recursos interposto da decisão da 1ª instância.
2. Como o recurso não foi admitido, reclamaram para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que, em 26 de março de 2012, proferiu decisão a indeferir a reclamação.
3. Dessa decisão os arguidos reclamaram para a conferência e recorreram para o Tribunal Constitucional.
4. O primeiro dos pedidos foi indeferido e não se tomou conhecimento do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
5. Quer do conteúdo dos requerimentos apresentados pelos reclamantes, quer do das decisões proferidas, duas conclusões, que nos parecem evidentes, se podem extrair: os reclamantes, como afirmam expressamente, recorreram para o Tribunal Constitucional da decisão que, no Supremo Tribunal de Justiça, indeferiu a reclamação (a proferida em 26 de março de 2012); a questão da inconstitucionalidade está relacionada com o artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
6. Ora, a decisão recorrida, que se limitou a indeferir a reclamação considerando irrecorrível o Acórdão da Relação, apenas aplicou o artigo 400.º, n.º 1. alínea c), do CPP.
7. Aliás, quanto à inconstitucionalidade imputada ao artigo 412.º, n.º 3, do CPP diz-se, expressamente, na decisão, que ela “não pode ser objeto de conhecimento, por respeitar ao acórdão recorrido, e não aos termos e fundamentos da reclamação”.
8. Assim, não tendo sido aplicada na decisão recorrida a “norma” cuja inconstitucionalidade os reclamantes pretendiam ver apreciada, falta um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, devendo, consequentemente, a reclamação ser indeferida.”
Cumpre decidir.
6. Apesar de alguma deficiência das peças apresentadas, três conclusões são seguras:
1ª - Os reclamantes recorreram para o Tribunal Constitucional da decisão de 26 de março de 2012, do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que indeferiu a reclamação apresentada nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal;
2ª - Pretendem ver apreciada uma questão de inconstitucionalidade relacionada com a aplicação do artigo 412.º, n.º 3, do CPP (especificação da motivação do recurso que verse sobre matéria de facto);
3ª - A decisão recorrida limitou-se a indeferir a reclamação considerando irrecorrível o Acórdão da Relação, por aplicação do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP (não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo).
Assim, não tendo a decisão recorrida – isto é, o despacho de 26 de março de 2012, do Vice?Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – feito qualquer aplicação da “norma” cuja inconstitucionalidade os reclamantes pretendiam ver apreciada, falta o primeiro dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Não podendo conhecer-se do recurso, a reclamação não pode proceder.
7. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar os recorrentes nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de maio de 2012.- Vítor Gomes – Ana Guerra Martins – Gil Galvão.