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Proc. nº 372/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. J... intentou no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto acção contra o Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos, com vista ao reconhecimento do direito a uma actualização anual da sua pensão de aposentação, da qual faria parte, na sua perspectiva, o direito à participação emolumentar de 15%.
O autor sustentou a inconstitucionalidade dos artigos 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 110-A/81, de 14 de Maio, 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 40-A/81, de
11 de Fevereiro, 5º, nº 3, do Decreto-Lei nº 20-A/86, de 13 de Fevereiro, 11º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 26/88, de 30 de Janeiro e 9º, nº 2, do Decreto-Lei nº 98/89, de 29 de Março, por violação das normas contidas nos artigos 63º e 72º da Constituição.
O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, por sentença de 14 de Maio de 1993, absolveu o réu da instância, em virtude de ter considerado que a acção para reconhecimento de um direito não é o meio processual adequado para impugnar o acto de fixação do montante da pensão.
2. J... interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto de 14 de Maio de 1993, sustentando a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 69º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, na interpretação acolhida pela decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 268º, nº 5, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 19 de Abril de
1994, concedeu provimento ao recurso, determinando, consequentemente, o prosseguimento da acção com vista ao julgamento do mérito do pedido.
O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, em cumprimento do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Abril de 1994, julgou procedente a acção e condenou a ré no pedido, por sentença de 14 de Julho de
1994.
3. A Caixa Geral de Aposentações interpôs recurso da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto de 14 de Julho de 1994 para o Supremo Tribunal Administrativo, sustentando que, uma vez que o acto administrativo impugnado se encontrava sanado, a acção para o reconhecimento de um direito seria necessariamente improcedente, em virtude de já não existir qualquer direito susceptível de ser reconhecido.
J... contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 89º da Lei das Autarquias Locais, 28º, nº 1, alínea c), e
29º, nº 4, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação do disposto no artigo 268º, nº 5, da Constituição, na medida em que aquelas normas consagrariam uma limitação da efectivação concreta da acção para o reconhecimento de um direito, por via do mecanismo da anterior sanação dos actos administrativos impugnados.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 23 de Janeiro de
1996, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e julgando, consequentemente, improcedente a acção para o reconhecimento de direito.
4. J... interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de Janeiro de 1996, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 89º da Lei das Autarquias Locais, 28º, nº 1, alínea c), e 29º, nº 4, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretados no sentido de serem aplicáveis à acção para reconhecimento de direito.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
I - A acção para reconhecimento de direito é um meio de tutela jurisdicional autónoma, a título principal dos direitos subjectivos do particular - maxime quando estão em causa actos administrativos que se mostrem irrecorríveis à luz do recurso contencioso anulatório, como é o caso dos autos - cujos efeitos constitutivos//condenatórios no caso dos autos, são 'ex tunc', pelo que se estendem ao primeiro acto lesivo e se prolongam até ao momento executivo (da decisão);
II - O que resulta por aplicação directa do disposto no art. 268º nº
5 da CRP, na formulação dada pelo acórdão do STA de fls. 354 e segts. dos autos, o qual mandou prosseguir a acção com vista ao seu julgamento de mérito, assim fazendo caso julgado na presente acção;
III - Pelo que a esta acção são inaplicáveis as disposições conjugados dos arts. 89º da LAL, al. c) do nº 1 do art. 28º e nº 4 do art. 29º da LPTA, normas estas (processuais) que são próprias do recurso contencioso anulatório, que é um outro meio de tutela jurisdicional que não se confunde com a acção para reconhecimento de direito;
IV - A aplicação destas normas à presente acção, tal como foi feita pelo Acórdão do STA recorrido, impede a aplicação prática ao caso concreto, do
'direito--garantia' consignado no artº 268º nº 5 da CRP, pelo que tal aplicação
é, neste sentido, inconstitucional - ainda ex vi art. 18º nº 3 da CRP;
V - Maxime porque estão em presença prestações positivas da administração, lesivas do direito à pensão de aposentação quantificado este 'ope legis', actos que desde 1 de outubro de 1986 até 27 de julho de 1988 (data da publicação no DR da pensão definitiva), configuram actos provisórios, portanto irrecorríveis face aos pressupostos do recurso contencioso anulatório - o que determinaria, a não ser obtida tutela jurisdicional pela via da acção de reconhecimento, que tais actos ficassem sem controlo jurisdicional algum - o que também configura inconstitucionalidade, por violação do art. 268º nº 5 da CRP;
VI - Por outro lado, a falta de algum dos pressupostos (tradicionais) da recorribilidade do acto, à luz do contencioso anulatório - nomeadamente a oportunidade do recurso contencioso - não significa necessariamente a ausência de controlo jurisdicional de tais actos, pois este pode ainda ser obtido pela via da acção para reconhecimento de direito - art. 268º nº 5 da CRP, na acepção de que esta norma configura um 'direito-
-garantia' de natureza fundamental, garantia que se traduz na integralidade do controlo jurisdicional dos actos administrativos;
VII - Consequentemente, também o direito-garantia de que esse controlo seja integral, determina a inaplicabilidade, ao caso concreto, das citadas disposições processuais do recurso contencioso anulatório, pois tal aplicação, ao impedir a correcção de vícios de actos lesivos da pensão de aposentação do autor, assenta no pressuposto da oportunidade do recurso contencioso anulatório,- mas não no 'pressuposto' da oportunidade da acção para reconhecimento - que pode ser proposta a todo o tempo - art. 268º nº 5 da CRP, conjugado com o artº 69º nº 1 da LPTA;
VIII - Donde se demonstra que é inconstitucional, por violação do artº 268º nº 5 e também do artº 18º nº 3 da CRP, o desvio proporcionado por tal conjugação de normas, se aplicado fora do seu contexto que é o do recurso contencioso anulatório;
IX - Por força do comando do artº 268º nºs 4 e 5 da CRP, a eficácia constitutivo-condenatória (ex tunc) dos efeitos obtidos na presente acção para reconhecimento, estende-se também ao seu momento executivo (aplicação directa da decisão jurisdicional obtida), isto é, a sua aplicação prática, pelo que a tutela jurisdicional conseguido ( do direito invocado) ter que ser aplicada sem restrições de lei ordinária anterior que diminuam ou atinjam o seu conteúdo essencial, do qual esse momento executivo é parte integrante (artº 18º nº 3 da CRP), designadamente as restrições provenientes do artº 89º da LAL, al. c) do nº l do artº 28º e nº 4 do artº 29º da LPTA, não permitindo às citadas disposições constitucionais, como vai demonstrado, qualquer analogia (como pretende o acórdão recorrido), porque esta constitui uma restrição ao conteúdo essencial do direito de recurso jurisdicional obtido pela acção;
X - Assim, o mecanismo da sanação dos actos administrativos anuláveis
- artº 89º da LAL e demais disposições conjugadas - tem de traduzir uma aplicação prática do comando constitucional do artº 268º nºs 4 e 5, por forma a garantir-se uma unidade de sistema infra-constitucional, no sentido de que essas normas ordinárias (anteriores) não poderão impedir que, por via da acção para reconhecimento de direito se possa ainda obter a sanação de vícios que tais actos lesivos ainda contenham - as normas ordinárias inferiores têm de suportar uma aplicação prática da extensão dos preceitos constitucionais, harmonizando-se com essa extensão constitucional e não produzindo efeitos em contrário, sob pena de inconstitucionalidade superveniente invocada;
XI - Visto que também é imposto constitucionalmente que tal mecanismo não possa excluir radicalmente, no domínio da administração prestadora, a protecção, em primeira linha, da segurança e estabilidade dos direitos do particular face à administração e não o contrário;
XII - O controlo jurisdicional da relação jurídica administrativa, seja pela via do recurso anulatório, seja pela via da acção, implica a necessária independência da função Administrativa face à função Judicial - artºs
114º, 205º e segts e 266º e segts da CRP, pelo que não deverá subsistir na ordem jurídica infra-constitucional qualquer preceito que, em termos práticos, permita a 'fuga' do acto administrativo eficaz e lesivo, a esse controlo - artºs 268 nºs
4 e 5 e 18 nº 3 da CRP - maxime quando os actos administrativos em presença são desfavoráveis ao particular (porque diminuem a sua pensão de aposentação) e aproveitam à própria administração que os conformou unilateralmente - como é o caso dos autos;
Sem conceder quanto vai dito,
XIII - Deve ser aplicado o regime da nulidade ao acto administrativo ilegal que fixa a pensão de aposentação, por imposição dos artºs 63º nº 1, 72º nº 1, ex vi artº 1º, da CRP e ainda por aplicação do artº 18º nº 3 da mesma CRP;
XIV - Pois que, no caso de uma pensão de aposentação, conformada esta como parece ser admissivel como integrando o conteúdo (núcleo) mínimo de um direito social, com a protecção assinalada, em termos, pelo menos, da efectivação concreta deste, poder-se-á concluir que a sua lesão, quando integre actos dispositivos da administração com incidência lesiva no seu conteúdo mínimo
- no seu 'quantum' que é determinado por lei ordinária (ope legis), integra lesão da protecção constitucionalmente consagrada quanto a esse conteúdo mínimo fundamental, sendo então e nessa medida actos que ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental,
XV - Donde resulta, aceite esta análise, a inaplicabilidade ao caso concreto das citadas normas dos artºs 89 da LAL, 28º nº 1 al. c) e 29º nº 4 da LPTA, na medida em que estas normas partem do pressuposto de que os actos impugnados de fixação da pensão serão meramente anuláveis e não nulos, e assim impedem e restringem a concretização do conteúdo mínimo essencial de um direito fundamental (por lesão directa da conformação mínima deste traduzida no
'quantum' da pensão de aposentação devida ao recorrente), significando assim e também por esta via, uma violação dos artºs 63º nº 1, 72º nº l e artº 1º da CRP, violando igualmente o conteúdo essencial de tais preceitos constitucionais artº
18º nº 3 da CRP;
XVI - Por outro lado, haverá, em todo o caso e por força do estatuído no artº 268º nº 5 da CRP, que aplicar o critério do interesse predominantemente protegido ou tutelado (V.D. Marcelo Rebelo de Sousa, 'O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional', pág. 220 e segts., citado em comentário ao artº 133º, pág.
432 do Cód. Proc. Adm. anotado, supra referido);
XVII - No caso concreto, por força dos argumentos já expendidos nos pontos supra I, II e III destas Alegações, maxime por força da aplicação do artº
268º, nº 5 da CRP, também a aplicação do indicado critério não poderá deixar de conduzir à conclusão de que a tutela do direito do particular merecerá uma especial ponderação, à luz dos princípios (constitucionais) da imparcialidade, boa-fé e legalidade da administração - artº 266º da CRP, princípios que se impõem à produção do acto administrativo em geral e em particular quando estiverem em causa actos administrativos lesivos de direitos subjectivos,
XVIII - Sobretudo se configurados estes em prestações sucessivas e contínuas da Administração que configuram o núcleo essencial de um direito fundamental à segurança social, entendidos como um mínimo de subsistência que lhe é atribuído 'ope legis' - Estatuto da Aposentação e demais legislação Complementar - actos esses em relação aos quais o mecanismo da sanação dos actos administrativos anuláveis se vem a revelar inibitório da sua legal (e devida) reparação - como é o caso dos autos - devendo pois, neste caso, valorar-se, com predominância, a realização do direito subjectivo lesado, em desfavor do benefício obtido pela administração, pela pretendida sanação.
Por seu turno, a recorrida contra-alegou, tendo tirado as seguintes conclusões:
1. As questões suscitadas pelo interessado, ora recorrente, na presente acção foram já decididas por acto definitivo e executório da Caixa, praticado em 10 de Agosto de 1988 e publicado em 27 de Julho de 1989;
2. Quaisquer ilegalidades em que esse acto tenha incorrido ter-se-ão sanado, conforme os casos, em 10 de Março de 1989 ou em 27 de Julho de 1989, por aplicação do artº 89º da Lei das Autarquias Locais, conjugado com a alínea c) do nº l do artº 28º e com o nº 4 do artº 29º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos;
3. Esta sanação impede por si o reconhecimento judicial do direito invocado pelo interessado, ora recorrente;
4. Não seria admissível a coexistência no ordenamento jurídico duas definições contraditórias da mesma situação jurídica - o despacho de 10 de Março de 1988 e uma eventual sentença favorável ao Autor -, ambas dotadas de características autoritárias, ambas possuindo força executória;
5. E daí que o reconhecimento judicial do direito ou interesse pressuponha necessariamente - ao menos de uma forma implícita - a eliminação da prévia definição que a Administração fez do direito em causa;
6. Ora, como a sanação do acto administrativo impede a anulação do acto em sede de recurso contencioso, também há-de impedir, por identidade de razão, a anulação incidental a que o juiz procede no processo de reconhecimento de um direito;
7. Daí que a acção de reconhecimento tenha sempre de ser considerada improcedente naqueles casos em que o acto administrativo que definiu o direito de forma contestada já não pode ser objecto de eliminação com fundamento em
(eventual) ilegalidade - que é precisamente o que sucede na presente acção;
8. O entendimento perfilhado pelo S.T.A., que se afigura o único possível, em nada colide com o princípio da possibilidade de recurso, a todo o tempo, à acção para o reconhecimento de um direito, sendo certo que não é possível, nem a C.R.P. acolhe tal princípio, fazer reviver através dessa acção quaisquer direitos que eventualmente tenham existido mas já não existem.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. As normas impugnadas são as seguintes:
'Artigo 89º Deliberações anuláveis
1. São anuláveis pelos tribunais as deliberações de
órgãos autárquicos feridas de incompetência, vício de forma, desvio de poder ou violação de lei, regulamento ou contrato administrativo.
2. As deliberações anuláveis só podem ser impugna-das em recurso contencioso, dentro do prazo legal.
3. Decorrido o prazo sem que se tenha deduzido impugnação em recurso contencioso, fica sanado o vício da deliberação.'
'Artigo 28º Prazos de recurso
1. Os recursos contenciosos de actos anuláveis são interpostos nos seguintes prazos, salvo o disposto no nº 5 do artigo 18º do Estatuto Orgânico de Macau:
(...)
c) 1 ano, se o recorrente for o Ministério
Público;
(...)'
Artigo 29º Recurso do acto expresso
(...)
4. O prazo para a interposição de recurso pelo Ministério Público conta-se da data da prática do acto ou da sua publicação, quando esta seja imposta por lei.'
O recorrente entende que a interpretação de tais normas no sentido de serem conjugadamente aplicáveis à acção para reconhecimento de um direito é inconstitucional, por violação do 'direito garantia' consagrado no nº 5 do artigo 268º da Constituição (ex vi artigo 18º, nº 3, da Constituição).
O recorrente sustenta ainda que a aplicação do regime da anulabilidade ao acto administrativo que fixa a pensão de aposentação é inconstitucional por violação dos artigos 63º, nº 1, 72º, nº 1, 18º, nº 3, e 1º, da Constituição.
7. O Supremo Tribunal Administrativo julgou improcedente a acção para o reconhecimento de um direito (e não inadequado o meio processual utilizado, sublinhe-se), porque entendeu que a situação jurídico-administrativa do particular se encontrava definitivamente definida por acto administrativo que já não podia ser impugnado contenciosamente.
Nessa medida, pode afirmar-se que as normas sobre os prazos do recurso de anulação não foram interpretadas no sentido de serem aplicáveis à acção para o reconhecimento de um direito (com efeito, no acórdão recorrido afirma-se que '... a acção para o reconhecimento de direito ou interesse legítimo pode ser proposta a todo o tempo, porquanto o prazo não constitui pressuposto processual deste meio contencioso ...').
Assim, o Tribunal Constitucional averiguará tão somente se a interpretação normativa efectivamente acolhida pelo acórdão recorrido é inconstitucional, por violação da garantia dos administrados de acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, consagrada no nº 5 do artigo 268º da Constituição. Nos precisos termos de tal interpretação, quando a situação jurídica do particular se encontra definida por acto administrativo que já não pode ser impugnado por via do recurso de anulação, a acção para o reconhecimento de um direito será julgada improcedente se o direito que se pretende ver reconhecido estiver abrangido por aquela definição
8. Na versão originária da Constituição, só estava garantido o recurso de anulação.
Na revisão constitucional de 1989, procedeu-se à autonomização de um preceito especificamente dedicado a garantir o acesso à justiça administrativa, não apenas para o reconhecimento, mas também para a tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 268º, nº
5). Deste modo, passou a reconhecer-se ao administrado a plena protecção jurisdicional administrativa - consagrou-se o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa.
Tal inovação pretendeu colmatar as insuficiências e limites do contencioso de mera anulação, fornecendo ao administrado um meio processual adequado à reacção contra actuações (por acção ou por omissão) da Administração que não podiam ser eficazmente impugnadas através do recurso de anulação (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª edição, 1993, p. 941 e ss.).
9. O legislador constitucional pretendeu assim criar, no quadro da justiça administrativa, um modelo garantístico completo, de forma a facultar ao administrado uma tutela jurisdicional adequada sempre que esteja em causa um interesse ou direito legalmente protegido.
Porém, não pode afirmar-se que o legislador constitucional tenha pretendido uma duplicação dos mecanismos contenciosos utilizáveis. Com efeito, o que decorre do nº 5 do artigo 268º da Constituição é que qualquer procedimento da Administração que produza uma ofensa de situações juridicamente reconhecidas tem de poder ser sindicado jurisdicionalmente. É nesta total abrangência da tutela jurisdicional que se traduz a plena efectivação das garantias jurisdicionais dos administrados.
Mas já não se enquadra necessariamente nesta ideia de total garantia jurisdicional uma duplicação ou alternatividade de meios processuais de reacção a uma dada actuação da administração. Na verdade, não decorre do nº 5 do artigo
268º da Constituição a exigência da admissibilidade da acção para o reconhecimento de um direito quando o particular possa interpor recurso de anulação, precisamente porque este mecanismo processual se mostra adequado à tutela do seu direito, pretensamente lesado pela actuação da Administração
(estará assim assegurada a plenitude da garantia jurisdicional dos administrados, por via do recurso de anulação).
10. Deve pois entender-se que no nº 5 do artigo 268º da Constituição
'se estabelece que nenhum direito subjectivo do particular perante a Administração poderá ficar isento de tutela judicial, desta forma fazendo acrescer à protecção jurídica subjectiva conferida pelo contencioso de anulação a garantia de que, nos demais casos, os instrumentos do contencioso administrativo assegurarão a completude da protecção dos particulares perante a Administração.' (Vasco Pereira da Silva, Em busca do acto administrativo perdido, 1996, pp. 665-666).
Na verdade, o artigo 268º, nº 5, da Constituição, apenas exige que à protecção jurídica conferida pelo contencioso de anulação seja acrescentada, para os demais casos (casos não abrangidos pela protecção conferida pelo recurso de anulação), a tutela conferida pelos restantes instrumentos do contencioso administrativo. É esta a solução que decorre do preceito constitucional (neste sentido, referindo-se expressamente às situações de perda de oportunidade do recurso, cfr. João Caupers e João Raposo, Contencioso Administrativo Anotado e Comentado, 1994, p. 168).
Tenha-se ainda em conta, aliás, que uma das finalidades da autonomização do nº 5 do artigo 268º da Constituição em 1989 foi, como se disse, colmatar as insuficiências e limitações do contencioso de mera anulação (neste sentido, cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., p. 942).
11. No caso sub judicio o recorrente sustenta que considerar-se que o acto administrativo impugnado por via da acção para o reconhecimento de um direito se encontra sanado, julgando-se consequentemente improcedente a acção para o reconhecimento de um direito, viola o disposto no artigo 268º, nº 5, da Constituição.
Ora, como se viu, não decorre do preceito constitucional uma necessária duplicação dos mecanismos processuais à disposição do administrado. Seguramente não decorre que, por força do recurso à acção para o reconhecimento de um direito, a definição da situação jurídica do administrado, por via de acto administrativo, fique ilimitadamente em aberto (cf. João Caupers e João Raposo, ob. e loc.cit.). A tal opõem-se a segurança e a certeza, necessárias nas relações entre os particulares e, naturalmente, entre estes e a Administração.
Não se argumente, contra este entendimento, que é a própria lei
(artigo 69º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos) que não estabelece qualquer limitação temporal para a instauração da acção para o reconhecimento de um direito.
Como resulta do que se disse, os vários mecanismos processuais têm
âmbitos de aplicação diferentes. A definição da situação jurídica do particular por acto administrativo especificamente direccionado no sentido dessa definição integra uma categoria de casos que não abrange aqueles em que o que está em causa é uma omissão da Administração ou uma acção não lesiva da esfera jurídica dos particulares (mas criadora de situações de incerteza susceptíveis de atingir a 'economia' ou a 'posição substantiva' dos administrados - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. e loc.cit.). Naqueles casos, o mecanismo processual a utilizar será, em princípio, o recurso de anulação, nestes a acção para o reconhecimento de um direito.
12. Esta repartição compreende-se, tendo em conta a estrutura dos meios processuais em causa e a natureza das situações concretas. Existindo um acto administrativo directamente lesivo de um direito ou de um interesse do administrado, a respectiva tutela jurisdicional consubstanciar--se-á, tendencialmente, na anulação desse acto. Não existindo tal acto, a via contenciosa será, por regra, a do reconhecimento do interesse ou direito de que o administrado é titular.
Compreende-se, assim, que a inexistência de limite temporal para o recurso à via contenciosa apenas se encontre consagrada na acção para o reconhecimento de um direito, pois, como se disse, esta visa, fundamentalmente, possibilitar a reacção contra uma situação em que não existe um acto administrativo que especificamente defina a situação jurídica do administrado. Existindo esse acto administrativo, a via contenciosa será a do recurso de anulação, limitado temporalmente, pois a certeza e a segurança, necessárias nas relações jurídicas, em geral, e nas relações entre os particulares e a Administração, em especial, assim o exige - nos demais casos, o que estará em causa será o reconhecimento de uma posição juridicamente relevante, reconhecimento que, como se referiu, poderá ser realizado a todo o tempo.
13. Seria errado concluir que a certeza e a segurança apenas visam tutelar os interesses dos administrados e não os da Administração.
Com efeito, tal distinção não decorre da Constituição e a perfilhar-se esse entendimento, mal se compreenderia a diferenciação entre o regime da nulidade e o da anulabilidade (artigos 134º, 135º e 136º, do Código do Procedimento Administrativo; neste sentido, cf. António Francisco de Sousa, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 1993, p. 433).
Conclui-se pois que julgar-se improcedente a acção para o reconhecimento de um direito, em virtude de se considerar que o direito que o autor pretende ver reconhecido, a ter existido, se extinguiu, por força do decurso dos prazos do recurso de anulação do acto administrativo que definiu o conteúdo desse direito, não viola o disposto no artigo 268º, nº 5, da Constituição, pois a tal juízo subjazem os valores certeza e segurança jurídicas, valores que o legislador constitucional não terá querido banir do âmbito da actividade administrativa.
Tenha-se ainda em conta que o administrado terá podido reagir eficazmente contra o acto administrativo que, na sua perspectiva, afectou o seu direito, através do recurso de anulação, pelo que não se vislumbra qualquer afectação do princípio da plenitude da garantia jurisdicional dos administrados.
A solução legal acolhida pelo acórdão recorrido não viola, assim, o preceituado no artigo 268º, nºs 4 e 5, da Constituição.
14. O recorrente sustenta, por outro lado, que a aplicação do regime da anulabilidade - e não da nulidade - ao concreto acto de fixação do montante da pensão de aposentação viola o disposto nos artigos 63º, nº 1, 72º, nº 1, ex vi artigos 1º e 18º, nº 3, da Constituição. O fundamento que invoca é o de que a lesão do conteúdo mínimo de um direito social por via de actos da Administração contraria as referidas normas constitucionais. E uma tal lesão decorreria, precisamente, da aplicabilidade ao caso concreto do regime da anulabilidade, consagrado nos artigos 89º da Lei das Autarquias Locais, e 28º, nº 1, alínea c) e 29º, nº 4, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
15. Não se nega que o direito à pensão de aposentação consubstancia um direito social constitucionalmente consagrado. Na verdade, tal direito é corolário do direito à segurança social e do direito à segurança económica das pessoas idosas (artigos
63º, nº 1, e 72º, nº 1, da Constituição). Importa porém verificar se a interpretação normativa dos preceitos efectivamente aplicados pela decisão recorrida violará os preceitos constitucionais que consagram tal direito.
No mero plano de legalidade, não cabe ao Tribunal Constitucional decidir qual o regime aplicável ao acto em causa (o da nulidade ou o da anulabilidade). Essa questão situa-se no nível infraconstitucional, não competindo ao Tribunal apreciá-la, pois o recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, tem apenas por objecto a apreciação da conformidade à Constituição de normas jurídicas. O que cabe ao Tribunal apreciar é a conformidade à Constituição da interpretação normativa, segundo a qual o regime da anulabilidade é aplicável ao acto administrativo em causa.
16. Ora, a verdade é que a aplicação do regime da anulabilidade ao acto administrativo em causa não colide com o princípio da plenitude da tutela jurisdicional administrativa. Com efeito, o acto administrativo, porque anulável, podia ser impugnado contenciosamente, observando-se os requisitos legalmente fixados para o efeito.
O que importa, porém, considerar é que a aplicação do regime da anulabilidade ao acto administrativo de fixação do montante da pensão de aposentação não é, em si mesma, susceptível de afectar o direito social em causa. O que poderia, eventualmente, lesar esse direito seria o acto administrativo impugnado. Contudo, não compete ao Tribunal Constitucional sindicar tal acto, pois o presente recurso de constitucionalidade tem apenas por objecto a apreciação de questões de constitucionalidade normativa [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional]. Quando muito, poderia estar em causa a apreciação da conformidade à Constituição da ou das normas com base nas quais o acto impugnado foi praticado. Ora, tal questão não foi suscitada pelo recorrente, pelo que não integra o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Constata-se, assim, que a aplicação do regime da anulabilidade dos actos administrativos ao acto de fixação do montante da pensão do recorrente não viola o preceituado nos artigos 63º, nº 1, e 72º, nº 2 (ex vi artigos 1º e 18º, nº 3), da Constituição.
O efeito do que o recorrente pretende seria, objectivamente, o reconhecimento de uma indefinição duradoura da sua situação jurídica, no que concerne à pensão de aposentação, de modo a poder impugnar o acto de fixação do respectivo montante no momento que entender. Porém, como se referiu, tal não é exigido pela Constituição, pelo que não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade.
17. Por todas as razões enunciadas, conclui-se que as normas impugnadas, tal como foram interpretadas e aplicadas na decisão recorrida, não violam qualquer preceito constitucional.
III Decisão
18. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 89º da Lei das Autarquias Locais, e 28º, nº 1, alínea c) e 29º, nº 4, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa,16 de Junho de 1998 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa