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Processo n.º 125/14
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Púbico, o primeiro reclamou do despacho daquele tribunal que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. O aqui reclamante foi condenado em 1.ª instância, como autor material de um crime de prevaricação de advogado, previsto e punível pelo artigo 370.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00, perfazendo o montante total de € 3.000,00. Mais foi condenado no pagamento da indemnização civil ao demandante e assistente, no montante de € 2.000,00.
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto viria a ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e concedido provimento ao recurso interposto pelo assistente, sendo o arguido condenado no pagamento de € 20.340,85 a título de indemnização por danos patrimoniais.
Inconformado, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por despacho de 12 de julho de 2013, não lhe admitiu o recurso.
Apresentada reclamação deste despacho, foi a mesma deferida e, em consequência, ordenada a substituição do despacho reclamado por outro que admitisse o recurso respeitante à indemnização cível.
Pediu, então, o arguido a reforma daquela decisão “no respeitante à irrecorribilidade do acórdão da Relação no que se refere à parte penal de decisão”, que seria indeferida, por despacho de 10 de dezembro de 2013.
Finalmente, “não se conformando com o indeferimento do pedido de reforma constante do Despacho proferido em 10 de dezembro de 2013 pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, pelo qual não foi admitido o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à matéria penal”, dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e, como este não foi admitido, reclama agora para este mesmo Tribunal.
3. É o seguinte o teor do despacho reclamado:
«O recorrente A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do art. 70.° da LTC para que seja apreciada a constitucionalidade do art. 400.°, n.° 1, alínea f), do CPP, por violação dos arts. 13.°, 20.°, n.° 4, 32.°, n.° 1, 203.° e 204.° da CRP.
Conhecendo,
O recorrente, por um lado, recorre ao abrigo das alíneas b) e f) do n.° 1 do art. 70.° da LTC e por outro apenas diz que pretende que seja apreciada a constitucionalidade da norma acima referida.
Ora, como a referida alínea f) se refere ao recurso de legalidade e não de constitucionalidade, o qual vem previsto na alínea b), vejamos ambas as situações:
Face ao disposto no n.° 2 do art. 72.° da LTC, os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.° 1 do art. 70º da LTC só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade “de modo processua1mente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Se o recorrente pretendia interpor recurso ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do art. 70.° da LTC, refere-se que para fundamentar a reclamação não foi suscitada adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade, uma vez que não foi identificada nenhuma norma como sendo inconstitucional.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 421 /2001 - DR, II Série de 14.11.2001 entendeu-se '... que uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstituciona1idade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constituciona1idade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstrato, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um ato administrativo”.
Neste entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não se considera suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade.
E, manifestamente, como a doutrina e a jurisprudência constitucional têm assinalado, é momento inidóneo para suscitar a questão da inconstitucionalidade o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, por, após a sua apresentação, o tribunal a quo já não poder emitir juízos de inconstitucionalidade.
Se ao invés pretendia o recorrente interpor recurso ao abrigo da alínea f) do n.° 1 do art. 70.° da LTC, mais uma vez se dirá que a ilegalidade da referida norma não foi atempadamente suscitada,
Depois, por não se visionar nenhuma das situações previstas no n.° 2 do art. 280.° da CRP, jamais se poderia admitir recurso para o TC, por ilegalidade.
Nestes termos, não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.»
4. O reclamante sustenta a reclamação nos seguintes fundamentos:
«1. No âmbito do processo acima em epígrafe, que correu termos pela 5ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça foi proferido, em 10 de Dezembro de 2013, Despacho que decidiu pelo indeferimento da reclamação apresentada, quanto à matéria penal, sendo que quanto à parte civil já havia ordenado que o Tribunal da Relação de pronunciasse sobre a admissibilidade do recurso interposto, decidindo, em consequência, pela inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quanto à matéria penal.
2. Assim decidindo em violação de princípios e normas constitucionalmente consagrados.
3. Inconstitucionalidade que foram suscitadas nos autos.
4. E, quanto à inconstitucionalidade da norma do art.° 400º, n.° 1, al. f) do C.P.P., positivamente interpretada, assumida e aplicada na decisão reclamada, quer quanto a um seu primeiro sentido normativo positivo que se pretende seja apreciado, dada a sua inconstitucionalidade, por violação, respetiva, dos artigos 20° e 32° n.° 1 da C.R.P., quer quanto a um segundo sentido normativo, assumido e aplicado, que também se pretende seja apreciado, dada a sua inconstitucionalidade por violação dos artigos 13° e 204° da C.R.P.
5. Na verdade, a aplicação da alínea f), do n.° 1, do art.° 400° do C.P.P., “com o sentido normativo”, é inconstitucional, por violação dos preceitos dos artigos 13°, 20° n.° 4, 32° n.° 1, 203° e 204° da C.R.P.
6. E isto, porque o legislador nos trabalhos preparatórios das Reformas do Processo Penal não perfilhou nenhuma proibição; nem impôs nenhuma especialidade que afastasse, de todo, a aplicabilidade do regime da Revista Excecional ao Processo Penal.
7. Por outro lado, acresce que, estamos no âmbito de uma lacuna jurídica que supõe a sua integração, através do recurso à analogia e como defende Castanheira Neves “o fundamento normativo da analogia não se suspende perante as normas excecionais e uma solução contrária à que estamos a sustenta seria inclusive, não só absurda, como mesmo “contra legem””.
8. E, de igual forma, também deve assumir-se que, a aplicação do artigo 400º, n° 1, al. f) do C.P.P. é inconstitucional, “no sentido normativo” que impeça recurso para o Supremo de Acórdãos proferidos pelas Relações que confirmem decisão da 1ª instância, quando esta apenas “assumiu” os pressupostos cíveis da incriminação da conduta ou “assumiu” que o arguido havia atuado “no exercício das suas funções”, mas sem propriamente excutir o seu julgamento substantivo (com a imprescindível indicação, interpretação e aplicação do conteúdo normativo das pertinentes normas jurídicas do direito civil e administrativo) ou seja, em mera decisão “formal”, mas realmente em vicio “substantivo” de “incompleição do julgado”, com lesão obvia do direito do cidadão ao julgamento equitativo.
9. O arguido abordou na sua reclamação para o Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça e em sede de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a sobredita questão da inconstitucionalidade.
10. Pretende o aqui Reclamante suscitar no Tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade da alínea f), do n° 1, do artigo 400° do C.P.P. e, se a mesma é inconstitucional, por violação dos preceitos dos artigos 13°, 20° n°4, 32° n° 1, 203° e 204° da Constituição da Republica Portuguesa.
11. De modo que, impõe-se a intervenção do Superior Tribunal de Justiça para reposição da correta interpretação do Direito.
12. Sendo certo que, o caso dos autos implica necessariamente a subida ao Supremo Tribunal de Justiça para correta e constitucional aplicação da Lei.
Assim,
13. Pretende o aqui Reclamante suscitar no Tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade da alínea f), do n° 1, do artigo 400° do C.P.P., com o sentido normativo e se a mesma é inconstitucional, por violação dos preceitos dos artigos 13°, 20° n°4, 32° n° 1, 203° e 204° da Constituição da Republica Portuguesa.
14. Como se disse, o Reclamante suscitou a presente questão de inconstitucionalidade nos autos, respetivamente:
- na reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho que não admitiu a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça; e
- nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
15. Mais concretamente, tais inconstitucionalidades foram suscitadas em sede de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça no Capítulo A do mesmo, bem como nos números 1, 2 e 3 das suas conclusões.
16. Inconstitucionalidades também alegadas em sede de Reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça da decisão de inadmissibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, mais concretamente, nos artigos 10 e 11 da mesma e n.ºs 5 e 6 das suas conclusões.
Note-se:
17. O Reclamante está a suscitar a inconstitucionalidade da referida norma do artigo 400.º, nº 1, alínea f), do C.P.P, nos seus referenciados sentidos normativos, assumidos e aplicados positivamente pela decisão recorrida, e com cujos sentidos de tal preceito foi interpretado, densificado, assumido e aplicado no caso dos autos para, com base nele, ser rejeitada a reclamação.
18. E, é dessa norma, com tal sentido normativo, positivo interpretado e aplicado, ou seja, é desse sentido normativo que se interpreta e aplica na decisão recorrida, e que nela existe, que se está a recorrer, e com fundamento na inconstitucionalidade desse mesmo preceito, nesses concretos e positivos sentidos normativos, consubstanciados e existentes na decisão recorrida.
19. O Reclamante, face ao Acórdão da Relação e à Reclamação da não admissão do Recurso, não está a interpor recurso ou reclamação de nenhuma “não-norma” ou de nenhuma “suposta dimensão negativa de uma norma”.
20. Consequentemente, pois, as inconstitucionalidades arguidas são dos referidos sentidos normativos do referido preceito - artigo 400.°, n° 1, alínea f), do C.P.P., e não de qualquer “não-norma”.
21. É manifesto que tal inconstitucionalidade é do referido “sentido normativo”, é da interpretação de tal preceito com tal sentido normativo; é dessa densificação concreta, normativa e positiva e em que, como tal, “tal preceito”, no caso dos autos, foi interpretado e aplicado, positivamente, como juízo de valor legal existente, e como fundamento legal, para nas decisões em causa se indeferir o recurso interposto pelo Arguido para o Supremo Tribunal de Justiça.
22. Mas preceito esse, com tal densificação normativa, interpretada e positivamente aplicada nos autos, pelas decisões de que se pretende recorrer - que a qualquer luz, racional e logicamente, constitui uma “norma”, com “conteúdo normativo densificado”, positivo e positivamente aplicado e, de modo algum, se referindo o Arguido a qualquer “não-norma”.»
5. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, considerando que o reclamante não suscitou previamente, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa ou de ilegalidade.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Dispõe o n.º 4 do referido artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), que do despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso ou retenha a sua subida cabe reclamação para o Tribunal Constitucional.
7. O ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b) e f) do artigo 70.º da LTC.
Compulsado o requerimento e o respetivo processo, resulta, todavia, como manifesto o não cumprimento dos pressupostos constantes da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, na medida em que não se vislumbra minimamente – e não foi invocada – qualquer questão de ilegalidade cognoscível pelo Tribunal Constitucional e suscetível de lhe servir de base. Em parte alguma do requerimento ou do respetivo processo se fundamentou a arguição de «ilegalidade» de qualquer norma em «violação de lei com valor reforçado» ou em «violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República».
Tanto basta para se demonstrar que se não mostram preenchidos os requisitos para o conhecimento do recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alíneas f) da LTC (por referência ainda ao artigo 280.º, n.º 2 da Constituição).
8. Subsiste o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Nos termos da referida disposição legal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, independentemente da falta de verificação de outros requisitos, relativamente à “norma” cuja apreciação é requerida pelo reclamante, certo é que não pode dar-se como verificado o requisito objetivo de suscitação prévia da questão de constitucionalidade invocado no despacho reclamado como fundamento da não admissão do recurso de constitucionalidade.
A razão da imposição deste requisito de conhecimento do recurso de constitucionalidade prende-se com a necessidade de colocação da questão de inconstitucionalidade de forma a vincular o juiz ao seu conhecimento.
A questão de constitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciada prende-se com a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação dada no despacho recorrido, i.e., o despacho do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu a reforma da decisão que deferira a reclamação da não admissão do recurso (respeitante à parte cível) para aquele tribunal do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação. Todavia, no pedido de reforma da decisão do Supremo Tribunal de Justiça o recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade reportada à interpretação do referido preceito legal, como claramente se alcança da leitura do respetivo requerimento (v. fls. 19). Idêntica omissão se verifica, de resto também na reclamação apresentada para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho de não admissão do recurso para aquele tribunal, nos termos do artigo 405.º do CPP (v. fls. 9 a 12), momento processual em que logo deveria ter suscitado a questão de inconstitucionalidade referente à não admissão do recurso em matéria penal, se, como mais tarde esclareceu (no pedido de reforma), pretendia impugnar também este segmento da decisão de que recorria.
Termos em que se impõe indeferir a presente reclamação.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de março de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral.