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Proc. nº 682/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A sociedade R..., Lda, adquiriu vários lotes de terreno à Câmara Municipal de Braga, por licitação em hasta pública.
Em cumprimento dos regulamentos relativos a essas vendas, liquidou na Repartição de Finanças os respectivos impostos de selo, à taxa de 6% sobre os preços respectivos de cada lote, nos termos do artigo 15º da Tabela Geral do Imposto do Selo.
Não conformada com esta liquidação, a recorrente impugnou a mesma, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, pedindo a sua anulação com base em vício de violação de lei.
Entende a recorrente que o imposto de selo deveria ter sido liquidado pelo artigo 50º daquela Tabela, e não pelo artigo 15º, pois este refere-se às arrematações em sentido jurídico, com efeito translativo da propriedade, sem necessidade de escritura pública, enquanto que, no caso, não houve arrematação, tendo a transferência de propriedade ocorrido apenas com a celebração da escritura pública de compra e venda, aliás, como previsto nos regulamentos elaborados pela Câmara Municipal de Braga para a venda daqueles lotes.
Por sentença de 6 de Julho de 1993, o Mmo Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância declarou a impugnação improcedente.
2. Inconformada, a recorrente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Tributário de 2ª Instância, tendo, nas suas alegações perante esse Tribunal, suscitado a questão da inconstitucionalidade do artigo 15º da Tabela Geral do Imposto do Selo.
Por acórdão de 21 de Março de 1995, o Tribunal Tributário de 2ª Instância concedeu provimento ao recurso, e Julgou organicamente inconstitucional, por violação do artº 168º, nº 1, al. i) da Constituição da República, um regulamento camarário que imponha pagamento de imposto de selo em casos em que esse imposto não é devido segundo lei feita pela autoridade constitucionalmente competente.
3. Desta decisão, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, com fundamento naquela recusa de aplicação, por inconstitucionalidade orgânica, da norma constante do nº V do Regulamento Camarário aprovado pela Câmara Municipal de Braga em 15 de Setembro de 1988.
Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, onde foram juntas alegações pelo Ministério Público.
4. Nestas, o Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão prévia relativa «à subsunção ao conceito funcional de norma do preceito desaplicado na decisão recorrida», concluindo no sentido de que aquele preceito constante do regulamento camarário não é susceptível daquela subsunção ao conceito de norma para efeitos de fiscalização da constitucionalidade.
Todavia, e para o caso de assim se não entender, quanto à questão de constitucionalidade suscitada, concluíu no sentido da inconstitucionalidade orgânica da norma sindicada.
A recorrida não apresentou alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. As normas que constituem objecto do presente recurso são as constantes da cláusula V, ponto 1, do Regulamento para Venda em Hasta Pública de
1 Lote de Terreno, sito no Loteamento do Antigo Campo da Feira, e da cláusula V, ponto 1, do Regulamento para Venda em Hasta Pública de 4 Lotes de Terreno, um por um, situados a Norte da Alameda da Fonte - Loteamento das Parretas, ambos de
15 de Setembro de 1988, da Câmara Municipal de Braga.
Naqueles regulamentos, após descrição das áreas e custos dos lotes de terreno, estabelecem-se as regras da licitação e da adjudicação provisória, nomeadamente no caso de a mesma ser feita a uma pessoa colectiva. Determina-se ainda que competem ao adquirente todas as despesas com a escritura, bem como quaisquer despesas que se mostrem necessárias com a avaliação do lote para efeitos de sisa, e que a escritura pública de compra e venda deverá ter lugar no prazo de trinta dias após o pagamento integral do preço, devendo a construção ter início no prazo de 12 meses após a adjudicação, e a conclusão da obra ocorrer até três anos após a mesma adjudicação.
As cláusulas em causa, ambas do mesmo teor, dispõem assim:
INCIDÊNCIAS FISCAIS
1 - O arrematante requisitará, no dia imediato ao da hasta pública guias para o pagamento, na Tesouraria da Repartição de Finanças, do imposto do selo (6% do valor do custo do lote), previsto no artº 15º da Tabela Geral do Imposto do Selo.
2 - O arrematante requisitará ainda guias para proceder ao pagamento, no prazo de 30 dias após a adjudicação definitiva, do Imposto de Sisa, na Tesouraria da Repartição de Finanças.
6. A norma cuja aplicação foi recusada, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica é, então, a constante do nº 1 daquela cláusula V, mas apenas na parte em que dispõe que o pagamento do imposto de selo se processará nos termos do artigo 15º da respectiva Tabela.
Importa, antes de mais, apurar se o preceito cuja inconstitucionalidade se suscitou, e desaplicado com tal fundamento na decisão recorrida, constitui ou não norma, para efeitos do determinado pelo artigo 280º da Constituição. É que, se o não for, não haverá que conhecer do presente recurso, pois que, nos termos da alínea a) daquela disposição constitucional, cabe recurso para o Tribunal Constitucional apenas das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Sobre o conceito de norma para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, debruçou-se este Tribunal, nomeadamente, no Acórdão nº
26/85, (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º Vol, págs. 7 e segs.), no Acórdão nº 150/86, (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º Vol., tomo I, págs. 287), no Acórdão nº 80/86, (id., págs. 79), bem como no nº
156/88, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º Vol., págs. 1057), e no nº
172/93, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º Vol., págs. 451), entre outros.
E em toda essa jurisprudência, o Tribunal tem entendido ser necessário adoptar um conceito funcional de norma, ou um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade.
Como se pode ler no referido Acórdão nº 26/85:
Assim, o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos
277º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de «norma», ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constituciona-lidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Consti-tucional já havia acentuado, o que se tem em vista com esse sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e, em especial, do poder legislativo - ou seja, daqueles actos que contêm uma «regra de conduta» ou um «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo sistema de fiscalização da constitucio-nalidade previsto na Constituição. A ele escapam, por um lado (e como já a Comissão Constitucional salientara), as decisões judiciais e os actos da Adminis-tração sem carácter normativo, ou actos administrativos propriamente ditos; e, por outro lado, os
«actos políticos» ou «actos de governo», em sentido estrito [...]
Onde, porém, um acto do poder público for mais do que isso e contiver uma regra de conduta para os particulares ou para a Administração, ou um critério de decisão para esta última ou para o juiz, aí estaremos perante um acto «normativo», cujas injunções ficam sujeitas ao controlo da constitucionali-dade.
7. Presente este conceito funcional de norma para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, resta-nos analisar se a «norma» em questão reveste estas características.
Aquela consta de um regulamento camarário, aprovado pela Câmara Municipal de Braga, e impõe a liquidação de um determinado imposto aquando dessa venda.
Patentemente, possui eficácia externa, com projecção directa na esfera jurídica de terceiros administrados: não se trata, com efeito, de meras instruções ou de interpretação de lei exclusivamente dirigida aos funcionários para orientar a actuação dos serviços ou o funcionamento da Administração.
E, por outro lado, a referida «norma» possui um mínimo de conteúdo genérico, destinando-se a qualquer cidadão indistintamente, desde que se coloque nas condições ali previstas. E isto, ainda que se possa entender que a sua previsão é concreta, faltando-lhe a característica da abstracção, por se referir
à venda de lotes de terreno bem determinados. Nessa perspectiva, ainda que algumas das cláusulas do regulamento apenas venham a ser aplicadas a uma pessoa
- o licitante a quem o lote em causa venha a ser adjudicado -, nem por isso deixam de ter aquela característica de generalidade, sendo, ainda, vinculativas para todos aqueles que pretendam participar na licitação.
8. O que se tem em vista com um «conceito funcional de norma», para efeitos de controlo da constitu-cionalidade, é o controlo de actos do poder normativo, o que quer dizer, dos actos que contêm uma regra de conduta ou um critério de decisão para os particulares, para os tribunais, ou para a própria Administração.
Inegavelmente dotado de eficácia externa, sendo as suas disposições vinculativas para todos aqueles que venham a encontrar-se ou a colocar-se na situação por ele prevista, o regulamento em causa assume, pois, a característica de 'regra de conduta' para os particulares, que estão obrigados a respeitar os seus comandos.
A Administração, por seu turno, não está apenas vinculada às leis em sentido formal, antes, e como é orientação jurisprudencial do STA, está vinculada ao conteúdo dos seus próprios actos unilaterais - é o princípio da auto-vinculação da Administração. Quer isto dizer que a Administração está obrigada a respeitar os efeitos resultantes das situações jurídicas que ela própria definiu aos particulares, pela prática de actos unilaterais e concretos.
(Cfr., nesta matéria, o Acórdão da 1ª Secção do STA, de 30 de Junho de 1977, citado por J.M. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, Lisboa, 1982, págs. 234).
A Administração está, pois, também ela, vinculada às disposições daquele regulamento por ela criado, que lhe serve, simultaneamente, como 'regra de conduta' e como 'critério de decisão'. Ao dispor ou regulamentar sobre determinada situação jurídica, com eficácia externa, daí resultam efeitos jurídicos para os particulares e para a Administração - efeitos esses que têm que respeitar, como comandos ou regras de conduta.
E para os próprios tribunais surge como critério de decisão, estando em princípio vinculados ao nele disposto; ou, melhor dizendo, e acompanhando o Acórdão nº 1058/96 (Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1996, nº
249), «para não aplicarem o que nele se dispõe, teriam de previamente julgá-lo inválido em decisão susceptível de recurso na ordem jurisdicional respectiva com fundamento em violação de um comando que, em princípio, estariam obrigados a respeitar.»
Estamos, pois, perante uma norma para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, o que basta para justificar que este Tribunal conheça do pedido formulado.
9. Nas suas alegações, o Ministério Público, perfilhando a opinião de que as cláusulas daqueles regulamentos não são subsumíveis ao conceito de norma para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, diz o seguinte:
Tais preceitos não serão substancialmente diferentes das cláusulas constantes dos contratos de adesão, com a particularidade de a disciplina instituída versar, neste caso, sobre os termos que precedem a celebração do negócio jurídico - substituinda as normalmente
'desregulamentadas' negocia-ções preliminares por um procedimento tipificado, destinado a individualizar a pessoa do outro contraente de entre a massa dos potenciais interessados em contratar.
Os contratos de adesão - as denominadas cláusulas contratuais gerais, regulamentadas pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de Janeiro - são, por vezes, considerados como «criação por entidades privadas de regras que, de facto, se assemelham ao direito imperativo estadual» (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, 1985). O que, desde logo, e ainda que se entendesse que nos encontrávamos, in casu, perante cláusulas contratuais idênticas às dos contratos de adesão, permitiria concluir que tais cláusulas, quando dimanadas de entidade pública, no exercício de funções de autoridade, se encontrariam sujeitas ao sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto no artigo 280º da CRP.
Decisivo é o facto, como reconhece o Ministério Público, de se ter estipulado um «procedimento tipificado», em substituição das «normalmente 'desregulamentadas' negociações preliminares», o que o mesmo é dizer que se optou por estabelecer critérios de decisão para a Administração (e para o juiz).
Aliás, idêntico raciocínio se encontra subjacente ao Acórdão nº
783/96 (Diário da República, II Série, nº 205, de 4 de Setembro de 1996), em que este Tribunal, pela sua 2ª Secção, apreciou a constitucionalidade de um
'regulamento' em que se estabeleciam os procedimentos tendentes à atribuição de lojas na Central de Camionagem do Município de Vila Nova de Famalicão, regulamento em tudo idêntico ao ora sujeito a apreciação.
10. Passando então à questão de inconstitucionalidade suscitada, pode ler-se na sentença recorrida:
Mas na medida em que os regulamentos da Câmara estabelecem a obrigatoriedade de pagamento de imposto de selo pelas impropriamente chamadas arrematações, remetendo para o artº 15º da TGIS, esses regulamentos são organi-camente inconstitucionais, pois as câma-ras municipais não têm competência cons-titucional para criar impostos. Essa competência é da Assembleia da República, nos termos do artº 168º, nº 1, al. i), da Constituição da República. Daí que esta 2ª Instância recuse a aplicação desses regulamentos na parte em que obrigam ao pagamento de imposto de selo como consequência da oferta de maior preço.
Já nada há a dizer sobre a exigência de imposto de selo pela compra e venda de imóveis por escritura ou instrumento notarial, pois a incidência do imposto decorre não dos regulamentos mas do artº 50º da TGIS.
A lógica desta interpretação afere-se pelo seguinte: se a recorrente tivesse que pagar duas vezes imposto de selo (pela arrematação e pela escritura) estaríamos em face de duplicação de colecta, pois a transmissão foi uma só.
O fundamento da recusa de aplicação da norma foi, pois, o da sua inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição. Este dispõe que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a «criação de impostos e sistema fiscal».
Considerou o Mmo Juiz a quo que a norma constante na indicada cláusula do regulamento camarário, ao ordenar o pagamento do imposto de selo - previsto no artigo 15º da respectiva Tabela - em situação não prevista pela respectiva disposição legal (aquele artigo 15º), correspondia à criação de impostos pela autarquia, o que lhe é constitucionalmente vedado pela disposição constitucional citada.
11. Na verdade, estabelecer a aplicação daquele imposto - legalmente fixado em sede própria - a uma situação não incluída na previsão legal respectiva é uma actividade inovadora, ou criadora, e que está reservada, nesta matéria, à Asembleia da República. Ou seja, o que aquele preceito autárquico fez foi determinar uma nova incidência àquele imposto (quando interpretada a TGIS como o foi pelo juiz a quo).
Ora, a actividade criadora nesta matéria - impostos e sistema fiscal
- é, na sua totalidade, reservada à Assembleia da República, nos termos daquela disposição constitucional.
Mesmo que se considerasse a cláusula em questão, constante do regulamento camarário, como meramente interpretativa, continuaria a estar-lhe vedada tal actividade, como tem sido entendimento uniforme deste Tribunal, quando tal interpretação envolve a determinação da incidência do imposto em causa em caso duvidoso. Aí, estar-se-ia inegavelmente perante uma actividade interpretação autêntica, actividade essa que apenas poderia ser realizada pela Assembleia da República, ou pelo Governo, quando munido de autorização para o efeito. (Cfr., entre outros, Acórdão nº 59/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol. págs. 531; nº
33/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. págs. 221; nº 372/91, Acórdãos do Tribunal Consti-tucional, 20º vol. págs. 83; nº 139/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol. págs. 583; nº 805/93, Diário da República, nº
2, Iª Série-A, de 4 de Janeiro de 1994).
Assim sendo, há que concluir pela inconstitucionalidade orgânica daquela cláusula V, ponto 1., dos indicados Regulamentos Camarários para a venda de vários lotes de terreno, de 15 de Setembro de 1988, da Câmara Municipal de Braga, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i) da Constituição.
III - DECISÃO
12. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais - por violação do artigo 168º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa - as normas constantes das cláusulas V, ponto 1., do Regulamento para Venda em Hasta Pública de 1 Lote de Terreno, sito no Loteamento do Antigo Campo da Feira, e da cláusula V, ponto 1, do Regulamento para Venda em Hasta Pública de 4 Lotes de Terreno, um por um, situados a Norte da Alameda da Fonte - Loteamento das Parretas, ambos de 15 de Setembro de 1988, da Câmara Municipal de Braga, enquanto determinam a aplicação do imposto de selo previsto no artigo 15º da TGIS às aquisições realizadas por via dos mesmos;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 3 de Junho de 1998 Luis Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração de voto junta)