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Proc. nº 390/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. veio a ser condenada, em 14 de Maio de 1997, na 8ª Vara Criminal de Lisboa, a uma pena de 5 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes. No mesmo processo foi condenada a idêntica pena o outro co-arguido.
Inconformada, a arguida interpôs em audiência recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, relativamente à eventual alteração da medida de coacção que lhe fora fixada, a de apresentações semanais, a arguida requereu que não fosse agravada tal medida, fundamentando esse pedido na circunstância de o recurso que havia interposto ter efeito suspensivo da decisão condenatória, no facto de ter estado presente em todas as diligências para que fora convocada e na jurisprudência uniforme no sentido de que o acórdão condenatório não transitado não justificaria, só por si, a alteração das medidas de coacção. O Ministério Público não se opôs a esse pedido, mas o mesmo veio a ser indeferido, tendo-se determinado que os arguidos aguardassem a apreciação dos recursos por eles interpostos na situação de prisão preventiva. Considerou-se nesse despacho que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime que é causa de alarme social, tendo a arguida sido condenada por haver a certeza absoluta no tribunal de primeira instância da culpabilidade dela. Reconhecendo-se que, por força do recurso interposto e admitido, o trânsito em julgado da condenação não se produzia, e que se mantinha como válido o princípio da presunção da inocência, afirmava-se que este último ficava abalado dada a matéria de facto apurada no julgamento (prática do tráfico de estupefacientes em certo bairro; dificuldade de localização dos arguidos nas fases processuais anteriores). O mesmo despacho concluiu que 'com a condenação acabada de proferir [resultava] aumentado [...] o perigo de fuga', pelo que se justificava o agravamento da medida de coacção (a fls. 51 dos autos).
Inconformada com este despacho, a arguida interpôs recurso do mesmo para a Relação, afirmando na motivação que o grau de certeza e definitividade que o tribunal a quo pretendera conferir ao acórdão condenatório de primeira instância não se compaginava com o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, sendo certo que a prisão preventiva, como medida de coacção, teria uma finalidade meramente cautelar e não repressiva, de antecipação do cumprimento de uma pena ainda não definitiva, sob pena de se violar o princípio da presunção de inocência. Indicou como normas violadas os arts. 28º e 32º da Constituição. Por seu turno, na resposta do recurso, o Ministério Público propugnou pela procedência do recurso da arguida, posição que foi sufragada no parecer do representante do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão tirado em 1 de Julho de 1997, a Relação de Lisboa negou, por maioria, provimento ao recurso. Aí se pode ler a seguinte passagem sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas:
' O despacho recorrido está conforme a legislação aplicável - art. 209 CPP e art. 54 do DL 15/93 de 22/01 - e não violou a lei designadamente os arts. 204 e
193 nº 2 do C.P.P. nem o art. 212 C.P.P.
Citando Maia Gonçalves, «a previsão deste artigo (212) abrange os casos de revogação de medidas de coacção e da sua substituição por outras menos gravosas. Daqui não deve tirar-se a ilação de que a lei rejeita a possibilidade de aplicação de medida de coacção mais gravosa, em substituição da que já foi aplicada. Para tanto bastará que surja novo circunstancialismo que dê fundamento legal à aplicação dessa medida mais gravosa (Cód. Processo Penal, anotado, 7ª edição, p. 365).
Não pode, pois, aceitar-se que, embora se presuma inocente até ao trânsito em julgado da sentença de 1ª instância se mantenha em liberdade, até porque a condenação reforçou, quiçá decisivamente, a convicção de que foi efectivamente co-autora dos factos imputados na acusação.
É que perante esta decisão proferida sob o princípio do contraditório, com todas as garantias de defesa asseguradas é de seguir o caminho trilhado pelo tribunal «a quo», uma vez que foi aplicada à arguida uma pena de cinco anos de prisão e haver receio de alarme social que provocaria a continuação da arguida em liberdade e da continuação da actividade criminosa.
No recurso penal 75/93, acórdão de 09.02.93, entendeu a Relação de Coimbra que a simples dedução de acusação constituía alteração substancial das medidas de coacção. Se isto é assim quanto à simples decisão indiciária, por maioria de razão assim será quando já foi proferida uma condenação em pena de prisão de cinco anos, ainda que não transitada em julgado.' (a fls. 93 vº e 94)
Na declaração de voto de vencido, indicou-se que o entendimento que havia feito vencimento se reconduzia 'ao fim e ao cabo a uma concepção gradualista das medidas de coacção que acaba por afectar a presunção constitucional de inocência'.
Inconformado com este acórdão, dele interpôs recurso de constitucionalidade a arguida, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, considerando violados 'o princípio do duplo grau de Jurisdição, consagrado no nº 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP); o princípio da presunção da Inocência vertido no nº
2 do artigo 32º da CRP; o artigo 28º nº 2 da CRP' (a fls. 97). O recurso foi admitido por despacho de fls. 101.
2. Já no Tribunal Constitucional e após a distribuição, a convite do relator, a arguida veio indicar como objecto do recurso as normas dos arts. 203º, do corpo e alíneas a) e c) do artigo 204º, e do art. 408º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, com o entendimento conferido pelo tribunal a quo.
Nas alegações que apresentou, a recorrente sustenta que só o art. 203º do Código de Processo Penal prevê e permite o agravamento das medidas de coacção anteriormente impostas, não se tendo verificado no caso sub judicio qualquer pressuposto que justificasse tal agravamento. Só a prolação do acórdão condenatório (não transitado) constituiu facto novo, mas a decisão recorrida violou o art. 203º do Código de Processo Penal, violando o art. 28º da Constituição, 'por frustrar a confiança que o cidadão tem de que a medida de coacção não pode ser aplicada, alterada ou agravada fora dos casos previstos na lei. Tal entendimento viola o nº 2 do art. 28º da Constituição que consagra o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva. Pode ler-se na parte final das conclusões:
' [...] 7º- Por outro lado, conferir carácter de certeza ao teor da decisão proferida em 1ª instância, ainda que não transitada (com recurso pendente), e ao utilizar o seu conteúdo como tal, para agravar a medida de coacção, mais do que rever os indícios existentes no processo e reexaminar os pressupostos da prisão preventiva,
8º- o que o Ilustre Tribunal «a quo» faz é violar o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº 2 da CRP, porquanto,
9º- utilizar o mérito do procedimento invocando a culpabilidade e a certeza dos factos, dando-os como assentes, quando na verdade aquela decisão, não transitada, encontra-se a ser reapreciada por Tribunal Superior, altura em que, de acordo com a norma e princípio citados na Constituição Portuguesa, o arguido deve ser considerado Inocente:
10º- Tal princípio da Presunção de Inocência não se compagina pois, com considerações que se pretendem definitivas (de certeza absoluta) quanto à culpabilidade e factos praticados pelo arguido; este ou se presume ou não se presume Inocente; O art. 32º nº 2 da CRP não admite graduações.
11º- [...]
12º- a arguida interpôs recurso do acórdão final (nos termos do artigo 408º nº 1 a) do CPP), sendo que, em consequência, este perde o seu vigor, não podendo valer até eventual confirmação por Tribunal Superior (também transitada). Violado encontra-se, pois, o princípio da presunção de inocência (nº 2 do art.
32º da CRP) pelo entendimento do douto tribunal «a quo» conferido àquele artigo
408º do CPP, obnubilando-o.
13º- Por último diga-se que o grau de certeza absoluta da culpabilidade e da prática dos factos vertidos no acórdão proferido em 1ª Instância, de acordo com o entendimento vertido pelo douto tribunal «a quo» viola o princípio do duplo grau de jurisdição.' (a fls. 116-117)
O Ministério Público concluiu, por seu turno, as contra-alegações que apresentou nos seguintes termos:
'1º- A decisão recorrida fundou claramente o decidido nas normas dos artigos
209º, 204º e 193º, nº 2, do Código de Processo Penal e no artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro - e não no «bloco normativo» indicado pelo recorrente a fls. 103, pelo que deverá considerar-se o presente recurso circunscrito à apreciação da constitucionalidade da norma constante das alíneas a) e c) do artigo 204º do Código de Processo Penal.
2º- Tal norma, isoladamente considerada, não ofende manifestamente qualquer preceito ou princípio constitucional atinente ao regime da admissibilidade do decretamento da prisão preventiva em processo penal.
3º- Sendo evidente que os «índices» estabelecidos neste preceito podem ser reavaliados ao longo do processo, de acordo com as circunstâncias que supervenientemente se verifiquem e que possam repercutir-se na concreta avaliação dos perigos de fuga, de perturbação da ordem e tranquilidade pública e de continuação da actividade criminosa.
4º- Termos em que é manifestamente improcedente o recurso interposto, com o objecto que a recorrente lhe atribuiu.' (a fls. 127 a 129)
3. Foram corridos os vistos legais.
Importa, pois, passar a analisar a admissibilidade do recurso e o respectivo objecto, se for caso disso.
II
4. A arguida indica como normas aplicadas com uma interpretação contrária à Constituição os arts. 203º, 204º (corpo e alíneas a) e c)) e 408º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Dispõem esses preceitos:
Art. 203º (Violação das obrigações impostas):
'Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas neste código e admissíveis no caso.'
Art. 204º (Requisitos gerais):
'Nenhuma medida de coacção prevista no capitulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
a) Fuga ou perigo de fuga,
b) (...)
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa.'
Art. 408º (Recursos com efeito suspensivo)
'Têm efeito suspensivo do processo:
a) Os recursos interpostos de decisões finais condenatórias, sem prejuízo do disposto no artigo 214º. [...]'
5. Como nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto, o acórdão recorrido não fundamentou a decisão de julgar improcedente o recurso interposto pela arguida no 'bloco normativo' constituído pelos arts. 203º e 408º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal. Referiu-se antes, e de forma explícita a outro conjunto de normas jurídicas, as dos arts. 193º, nº 2, 204º, 209º do Código de Processo Penal e 54º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
De facto, o art. 203º rege para uma situação diversa, que é a de imposição de medidas de coacção mais gravosas em caso de violação das obrigações impostas ao arguido no domínio das medidas de coacção anteriormente determinadas.
Contrariamente ao sustentado pela recorrente, a doutrina e a jurisprudência portuguesa em matéria de processo penal admitem que, por força do art. 212º do mesmo diploma, pode ser determinada a aplicação de uma medida de coacção mais gravosa no decurso do processo, se se verificaram circunstâncias que o justifiquem (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 7ª ed., 1996, págs. 364-365; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, págs. 251-252; jurisprudência citada por Maia Gonçalves e pelo próprio acórdão recorrido), não sendo, por isso, a norma do art. 203º a única que pode ser invocada para fundamentar o agravamento de uma medida de coacção.
Por outro lado, é manifesto que a norma do art. 408º, alínea a), do Código de Processo Penal não foi igualmente aplicada, de forma expressa ou implícita, pela decisão recorrida. Pelo contrário, tal decisão pressupôs sempre que a interposição de um recurso condenatório tinha efeito suspensivo obrigando a manter-se a presunção de inocência relativamente à pena do arguido. Simplesmente essa norma foi aplicada por outro despacho autónomo, o de admissão do recurso interposto pela própria arguida, na mesma ocasião. Relativamente ao despacho que impôs a nova medida de coacção, o Tribunal de Primeira Instância não procedeu a qualquer limitação ou restrição à eficácia suspensiva do recurso interposto em momento imediatamente anterior, antes procedeu a uma nova avaliação da situação da arguida, após a condenação em pena de prisão, considerando - em termos insindicáveis pelo Tribunal Constitucional - que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime que causa alarme social, que a condenação da arguida decorreu da formação de uma convicção pelo Tribunal da sua culpabilidade, que existia um aumentado perigo de fuga quanto à arguida e que o próprio comportamento processual anterior desta e as circunstâncias de facto apuradas quanto à prática do crime de tráfico de estupefacientes não podiam deixar de abalar, no que tocava ao Tribunal da Primeira Instância, a presunção de inocência.
6. Resta, assim, como objecto do presente recurso, a norma do art. 204º que foi expressamente invocada e indubitavelmente aplicada, conjugadamente com as normas dos arts. 193º, nº 2, 209º do Código de Processo Penal e 54º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93.
7. Não pode deixar de concordar-se com a afirmação do Representante da entidade recorrida, nas suas alegações, de que 'a deficiente delimitação do objecto do recurso - que restringe e condiciona irremediavelmente os poderes cognitivos deste Tribunal [Constitucional] - determina a sua clara improcedência' (a fls. 125).
O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, partiu de um entendimento - aliás, já perfilhado no despacho da 8ª Vara Criminal de Lisboa - de que, no crime de tráfico de estupefacientes, a regra é a prisão preventiva dos arguidos por tal crime - por força dos arts. 209º, nºs. 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Penal e 54º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 - sendo excepcional a liberdade.
A constitucionalidade deste entendimento não foi posta em causa pela ora recorrente, assim como a mesma não pôs em causa a interpretação da norma do art. 193º, nº 2, do Código de Processo Penal, nos termos da qual a prisão preventiva nos crimes de tráfico de estupefacientes deve ser aplicada, por se revelarem, em termos de juízo abstracto do legislador e como regra geral,
'inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção'.
O art. 204º, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, isoladamente analisado, não ofende manifestamente as normas constitucionais.
De facto, o art. 27º, nº 3, da Constituição admite a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, no caso de 'detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos', do mesmo modo que o nº 2 do art. 28º dispõe - a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, redacção que, acrescente-se, não serviu de parâmetro ao acórdão recorrido, proferido antes daquela data - que a prisão preventiva 'tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei'.
Ora, é manifesto que não viola a Constituição o disposto nas alíneas a) e c) do art. 204º do Código de Processo Penal quando estatuem que nenhuma medida de coacção, à excepção do previsto no art. 196º (termo de identidade e residência) pode ser aplicada se em concreto se não verificar 'fuga ou perigo de fuga' ou 'perigo, em razão de natureza e das circunstâncias do crime ou de personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa'. Por outro lado, não se vê que haja impedimento constitucional a que possa haver revisão de aplicação das medidas de coacção durante o processo, revisão que é mesmo obrigatória de três em três meses no caso da prisão preventiva, quando, em concreto, se verifique, a partir de certo momento, a existência de fortes indícios de prática de crime doloso que desaconselha a aplicação ou manutenção de caução ou de outra medida mais favorável prevista na lei.
É indubitável que, no caso sub judicio, o despacho da 8ª Vara Criminal procedeu a uma avaliação em concreto dos indícios e da adequação da anterior medida cautelar, em termos que não permitem formular uma censura constitucional
à interpretação perfilhada das alíneas a) e c) do art. 204º do Código de Processo Penal pelo acórdão recorrido, ao confirmar aquele despacho.
Está-se, pois, longe de situação hipotisada pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações:
' O que provavelmente seria dificilmente compatível com os princípios da Constituição em sede de prisão preventiva seria a consideração de que qualquer decisão condenatória determinaria automaticamente a prisão preventiva do arguido, independentemente da avaliação dos parâmetros e requisitos que, em geral, condicionam a aplicação de tal medida detentiva.' (a fls. 127)
8. Há-de, pois, improceder o presente recurso.
III
9. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de Dezembro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa