Imprimir acórdão
Processo n.º 204/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que inicialmente é recorrente o Ministério Público e recorridos A., S.A., e o Município de Sintra, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), do acórdão daquele Tribunal de 10 de janeiro de 2012, que, recusando aplicação ao artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008 no Diário da República, II Série, de 31 de outubro de 2008, e mantido em vigor, sem qualquer atualização, no ano de 2009, por deliberação da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, conforme o n.º 1 do Aviso n.º 5156/2009, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de março de 2009, concedeu provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e anulou a liquidação, referente ao ano de 2009, das taxas devidas pela recorrida por equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos situados em propriedade privada. O fundamento da aludida desaplicação foi a desconformidade do citado artigo 70.º, n.º 1, 1.1, com o estatuído nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição.
Pelo Acórdão n.º 581/2012 – disponível, assim como os demais adiante referidos, em http://www.tribunalconstitucional.pt/ - a 2.ª Secção do Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional, quando aplicável a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada, o artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 acima identificada.
2. Notificada deste Acórdão, a recorrida, A., S.A., considerando existir oposição entre o mesmo e o Acórdão n.º 24/2009, proferido pela 3.ª Secção, que julgou inconstitucional, por violação do disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 69.º, ponto 1.1., da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovada pela respetiva Câmara Municipal, em 6 de novembro de 2001, e publicada na II Série do Diário da República, de 1 de Outubro de 2001, quando interpretada no sentido da sua aplicação a posto de abastecimento instalado totalmente em terreno privado, interpôs recurso para o Plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC.
Por despacho do relator, de 7 de janeiro de 2013, o recurso não foi admitido. Inconformada, aquela recorrida reclamou para a conferência.
Pelo Acórdão n.º 599/2013, proferido em 18 de setembro de 2013, decidiu este Tribunal, em plenário, deferir a reclamação, considerando que a 2.ª Secção e a 3.ª julgaram em sentido divergente a questão da inconstitucionalidade da norma segundo a qual é devido um tributo estabelecido por um município relativamente aos equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada. No acórdão fundamento – o Acórdão n.º 24/2009 - julgou-se tal norma inconstitucional, por se entender que o tributo em causa reveste a natureza de imposto; no acórdão recorrido – o Acórdão n.º 581/2012 – foi a mesma norma julgada não inconstitucional, por se entender estar em causa a previsão de uma taxa.
Consequentemente, foram as partes notificadas para alegações.
3. A recorrida, ora recorrente, alegou, tendo concluído nos seguintes termos:
I) O escrutínio da inconstitucionalidade da norma em questão deve orientar-se por verificar se ela não é a roupagem de «um mero estratagema para obter receitas», usando a expressão sugestiva de CASALTA NABAIS (Direito Fiscal, 5ª ed., Coimbra 2009, p. 15. nota 27).
II) O julgador há de usar de um especial cuidado no recenseamento de considerações apriorísticas que tendam a ver numa taxa municipal de supostos fins ambientais, e sobre postos de venda de carburantes, uma medida justa.
III) Ou porque a designação taxa indiciasse um modesto peso financeiro, ou porque os municípios sejam associados à escassez de recursos, ou pela tonalidade verde e ecológica com que o autor da norma a pinta, ou pela redistribuição de riqueza que potencia, ou pela submissão da propriedade privada à sua função social e ambiental, a norma do artigo 70.º, n.º 1, da Tabela de Taxas e Receitas do Município de Sintra (2008) poderia insinuar-se como uma medida a salvar de algum excessivo formalismo.
IV) É que tais considerações relativizam, por vezes, o facto de as normas e princípios constitucionais preverem meios próprios seja para dotar os municípios de recursos, seja para alcançar verdadeiramente fins de proteção dos recursos naturais, seja para submeter a propriedade privada à sua função social e ambiental.
V) E nem sempre consideram que a ordem jurídica já dispõe de instrumentos bastante aperfeiçoados para conferir exequibilidade a tais normas constitucionais: alguns impostos com incidências ambientais sobre a circulação automóvel, a venda e o consumo de carburantes; o licenciamento e fiscalização de atividades económicas segundo padrões rigorosos de segurança ambiental, quando os riscos de impacto não justifiquem o procedimento de avaliação do impacto ambiental e o de pós-avaliação a intervenção da Administração Central do Estado na execução das políticas ambientais e sobretudo no exercício de poderes de polícia ambiental, sem prejuízo das competências dos órgãos municipais.
VI) Um outro risco é o de querer difundir a viragem jurisprudencial obtida no Acórdão nº 177/2010, de 5 de maio, para fora dos pressupostos em que foi tirado.
VII) A norma em causa, justamente, permite ao Tribunal Constitucional confirmar a delimitação e esconjurar a errónea convicção de a jurisprudência ter feito um bordo de 180 graus.
VIII) Com efeito, no citado aresto, o que se discute é a extensão da remoção do obstáculo jurídico por meio de uma licença ao período subsequente por via da fiscalização a tributar. Ao invés, no caso presente, não se trata da taxa sobre a licença (dessa cuida-se no artigo 69.º da Tabela).
IX) Por seu turno, no mesmo acórdão, discute-se a extensão do aproveitamento do domínio público municipal pela publicidade afixada ou inscrita em terrenos privados vizinhos que tiram partido dessa proximidade.
X) No caso vertente, o que está em causa é a utilidade proporcionada por imóveis privados à rede de estradas para que estas possam justamente satisfazer as necessidades coletivas a que se propõem.
XI) Já a fundamentação linear da designada taxa deixa adivinhar a fuga para o imposto, ao usar expressões e nexos de causalidade tão nebulosos como o do próprio conceito de taxa se presta a ser: «em virtude dos condicionamentos no plano do tráfego e acessibilidades», «impacto ambiental negativo da atividade».
XII) Esfuma-se a equivalência jurídica própria das taxas em nome de uma presunção de impacte ambiental que é afastada, ora por a venda de carburantes não estar sujeita – nem no direito comunitário nem no direito nacional – a avaliação do impacto ambiental, ora por se postergar o cumprimento devido pelos postos de abastecimento a uma sucessão de preceitos legais e regulamentares de segurança ambiental.
XIII) Nos postos licenciados reconhece a ordem jurídica a redução de efeitos ambientais nocivos para limiares aceitáveis e comuns.
XIV) Confessando o município de Sintra que a fiscalização especial que pratica – entre as inspeções obrigatórias – é destinada recensear e sancionar os postos de abastecimento ilegais, confessa a infração do princípio da equivalência jurídica e até o da bilateralidade com o que isso significa de violação do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º e artigo 266.º, n.º 2, da Constituição).
XV) Não é legítimo que se exija aos agentes económicos cumpridores o pagamento de uma taxa para fiscalizar os prevaricadores, sob pena de pagar o cumpridor pelo infrator em violação do princípio constitucional da justiça na atividade administrativa (artigo 266.º, n.º2).
XVI) A fiscalização desta atividade, a efetuar nos termos do Decreto-lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, pratica-se por meio das inspeções ordinárias e extraordinárias a que houver lugar. E por estas são já liquidadas as taxas previstas no artigo 69.º da Tabela
XVII) Se porventura o município pretende ir mais longe e intensificar as ações de fiscalização, há de fazê-lo por sua conta, não podendo duplicar taxas.
XVIII) Pois, com efeito a dupla tributação através de taxas quebra a equivalência jurídica, sem a qual a taxa não pode ser reconhecida, e infringe o princípio da igualdade tributária (artigo 13.º e artigo 266.º, n.º 2, da Constituição), ao mesmo tempo que exorbita dos poderes regulamentares combinados na Constituição entre os artigos 238.º, n.º 4, 241.º e 165.º, n.º 1, alínea i).
XIX) Bem andou o Acórdão n.º 24/2009, de 14 de janeiro (3ª Secção) ao iluminar os traços de «um tributo ambiental em sentido amplo ou impróprio», por incidir sobre os postos de abastecimento, independentemente da utilização ou não de bens do domínio público, «a que acresce uma taxação determinada em função da utilização da via pública». E, em outro passo, denuncia com lucidez e pragmatismo que «o único elemento da norma suscetível de ser erigido em pressuposto de facto do tributo é, afinal, a existência de um posto de abastecimento de combustíveis líquidos».
XX) A norma do artigo 70.º, n.º 1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra colide, por outro lado, com a proibição constitucional do arbítrio (artigo 13.º, n.º2).
XXI) Isto porque duma leitura sistemática de toda a Tabela resulta que nem os estabelecimentos industriais, nem as grandes superfícies comerciais, nem a exploração de massas minerais, nem os recintos itinerantes, nem o comércio alimentar, nem o plantio de espécies florestais de rápido crescimento, como os eucaliptos, sofrem um agravamento tributário análogo ou aproximado ao do artigo 70.º, n.º 1, relativo aos postos de venda a retalho de carburantes automóveis.
XXII) Todas essas atividades, cujos efeitos ambientais e de desgaste em bens públicos e recursos naturais dispensa particulares conhecimentos técnicos, sujeitam-se a taxas por conta do seu licenciamento e das vistorias, inspeções, exames ou vistorias a que concretamente, haja lugar.
XXIII) O tratamento igual dos postos de abastecimento de combustíveis obtém-se simplesmente pela liquidação das taxas previstas no artigo 69.º da Tabela, sendo as taxas e sobretaxas contidas no artigo 70.º, n.º 1, uma oneração discriminatória.
XXIV) A norma do artigo 70.º, n.º 1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra viola outrossim o princípio constitucional da proporcionalidade na atividade administrativa, compreendendo a tributária (artigo 266.º, n.º 2) na sua vertente de adequação.
XXV) E ofende, bem assim, o princípio de prossecução racional do interesse público (artigo 266.º, n.º 2).
XXVI) Se, na verdade, o que se pretende é conter o congestionamento do tráfego e salvaguardar os recursos naturais, é pelo exercício dos poderes de licenciamento, previstos no Decreto-lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, e através dos adequados instrumentos de gestão territorial, designadamente através do Plano Diretor Municipal, que se alcançam esses objetivos.
XXVII) Só o exercício desse poder de polícia administrativa permite impedir a localização de postos de abastecimento em áreas mais sensíveis, só o exercício desse poder permite estipular condições adequadas às circunstâncias concretas do local, dos acessos e da rede viária, só esse exercício permite adequadamente garantir a compatibilidade com a preservação dos recursos naturais que pudessem ser afetados e com a salvaguarda da qualidade de via (v.g. horários de funcionamento reduzidos para máquinas ruidosas de lavagem automóvel).
XXVIII) Ao invés, esta taxa só produz um desincentivo que é o de evitar o uso de imóveis privados para instalar postos de venda a retalho de carburantes, já que a diferença perante os encargos com a renda por utilização do domínio público justificam racionalmente esta opção.
XXIX) É contrário à racionalidade na prossecução do interesse público deferir uma licença para um estabelecimento e, depois, procurar anualmente incentivá-lo a cessar a atividade por força da crescente carga de taxas.
XXX) Por se turno, registe-se que os supostos fins regenerativos dos recursos ambientais e que a norina pretende fazer inculcar a título de consignação das receitas obtidas com a taxa, constitui mais uma falácia.
XXXI) Primeiro, porque não pode indistintamente arrumar esses recursos na categoria dos bens públicos. Nem o ar, nem as águas subterrâneas nem os solos e subsolos são, por definição, públicos.
XXXII) Depois, porque ainda que fossem públicos, isso não implica necessariamente fazerem parte do domínio público municipal.
XXXIII) Aliás, se há alguma presunção sobre os bens dominiais públicos é a de pertencerem ao catálogo dos bens dominiais nacionais (artigo 84.º, n.º 1, alínea f), da Constituição), o que bate certo com a natureza unitária do Estado (artigo 6.º, n.º1).
XXXIV) E, com efeito, no continente, é à Administração Central que incumbe prover à recuperação e regeneração dos recursos naturais, seja através da Agência Portuguesa do Ambiente, IP (Decreto-lei n.º 56/2012, de 12 de março), seja através das comissões regionais de coordenação e desenvolvimento regional (Decreto-lei n.º 228/2012, de 25 de outubro).
XXXV) Nesta medida, a norma em causa viola os limites da autonomia regulamentar dos municípios (artigo 241.º), modelada pelo que a lei defina como atribuições próprias (artigo 235.º, n.º 2).
XXXVI) Por fim, contanto que a norma do artigo 70.º, n.º 1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra, revele traços tipicamente fiscais – desde logo, a incidência na capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 1 e n.º 2, da Constituição), de par com a falta de bilateralidade e de equivalência jurídica – não seria de excluir a sua qualificação como contribuição financeira especial em favor de entidade pública.
XXXVII) Esta categoria sim, permite tributar o desgaste especial de bens públicos ou de outros recursos naturais como um fim em si, onerando um grupo homogéneo de sujeitos, ao contrário das taxas, cujo alcance moderador de certas atividades pode contar apenas para a definição do montante da taxa, havendo sempre de ter na base a prestação de um serviço, a remoção de um obstáculo jurídico ou a utilização privativa do domínio público.
XXXVIII) A reconhecer-se materialmente uma contribuição financeira especial, ocorre violação da reserva de competência legislativa parlamentar (artigo 165.º, n.º 1, alínea i)), enquanto por ato legislativo não for definido o seu regime geral (que, de momento, é o dos impostos, nos termos do artigo 4.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária).»
4. O Ministério Público contra-alegou, pugnado pela confirmação do citado Acórdão n.º 581/2012:
«1º
Nas suas alegações iniciais […] o Ministério Público defendeu, designadamente o seguinte (cfr. fls. 519-524 dos autos):
“VII. Apreciação do thema decidendum
40º
Ponderosos são, como se acabou de ver, os argumentos que se poderão aduzir, a favor, ou contra, a constitucionalidade da norma impugnada, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra, para o ano de 2009.
Desde logo, estamos perante a instalação de postos de abastecimento de combustíveis líquidos em terreno do domínio privado, muito embora com acesso por vias públicas.
Depois, o conceito formal de taxa, por oposição ao conceito de imposto, pressupõe um sinalagma entre o montante da taxa aplicada e o(s) serviço(s) prestado(s) pelo Município de Sintra - ou seja, impõe a não unilateralidade do tributo, uma vez que tal tributo tem de consubstanciar uma contraprestação ou contrapartida -, que poderá não resultar inteiramente comprovado nos autos, pelo menos quantitativamente, pelo mesmo Município (cfr. no entanto o referido a págs. 220 dos autos e supra nº 13 das presentes alegações).
Acresce, que poderão suscitar-se dúvidas se estaremos, no que à atividade desenvolvida pelo Município de Sintra diz respeito, perante uma verdadeira remoção de um qualquer obstáculo jurídico ao exercício da atividade em causa por parte da A., uma vez que não foram suficientemente justificados, em concreto, pelo mesmo Município, a prestação de concretos serviços de fiscalização ou de quaisquer alterações, por exemplo, no plano de tráfego ou de acessibilidades.
41º
Em contrapartida, a A. aceitou, anteriormente, proceder ao pagamento das taxas relativas aos anos de 2005 a 2008, apenas tendo contestado o pagamento da taxa relativa ao ano de 2009.
Por outro lado, a Câmara Municipal de Sintra justifica a liquidação da taxa com os condicionamentos de tráfego e acessibilidades, o impacto ambiental e consequente atividade de fiscalização desenvolvida pelos serviços municipais.
Atividades, essas, que tiveram, necessariamente, de ser equacionadas antes da concessão da necessária autorização para a exploração dos referidos postos de abastecimento de combustível - mesmo que a autarquia possa não o ter suficientemente demonstrado -, sendo certo que as atividades de fiscalização terão, ainda, de ocorrer posteriormente à concessão da referida licença de exploração.
42º
Não há, pois, dúvidas que tal atividade tem custos financeiros para a autarquia, e isto, quer os referidos postos de abastecimento estejam em domínio privado ou público. E o ressarcimento de tais custos pode, perfeitamente, integrar a noção de taxa, com o correspondente sinalagma, a que a doutrina persistentemente se reporta.
Sendo, por outro lado, inegável, que a entidade administrativa assume uma particular obrigação – a duradoura obrigação de suportar uma atividade que interfere permanentemente com a conformação de um bem público, pelo que se entende que as taxas cobradas, pela instalação daqueles equipamentos, consubstanciam, realmente, a remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de uma tal atividade.
Para além de que a relação sinalagmática, entre a taxa aplicada e a prestação de serviços subjacente, não implica necessariamente uma equivalência económica entre eles, aferindo-se, antes, em função do custo e do grau de utilidade prestada.
Acresce que, para haver lugar ao preenchimento do conceito de taxa, “tem de existir uma contraprestação, que nem sempre pode significar para o particular o gozo de uma vantagem ou benefício, nem tem que constituir o exato correspetivo económico de um serviço ou de uma atividade da Administração”.
43º
É, ainda, indubitável, o facto de que um posto de abastecimento de carburantes tem marcante incidência «externa», que extravasa o local do domínio privado em que está implantado, implicando, necessariamente, a utilização de recursos naturais (ar, solo e água), ocasionando forte desgaste ambiental, determinando condicionantes urbanísticas e de aproveitamento dos solos, causando riscos ambientais, que incumbe à autarquia inspecionar, fiscalizar e prevenir, para além de colocar delicados problemas de planeamento e prevenção em termos de segurança civil.
Com efeito, a utilização de tais postos de abastecimento apresenta elevados riscos - mesmo se instalados em domínio privado -, de contaminação atmosférica e de solos, quer em termos imediatos, quer futuros, pelo que representa um fator poluidor com enorme sobrecarga ambiental e riscos para uma vida humana sadia e ecologicamente equilibrada.
Para além de implicar o armazenamento e manipulação de materiais altamente inflamáveis.
44º
Como consequência, implica – ou, pelo menos, deveria implicar - a necessária adaptação de estruturas e serviços municipais, em termos ambientais, urbanísticos e de segurança civil, com a correspondente adoção de medidas adequadas de controlo de riscos de eventuais acidentes.
Assim, a atividade de exploração de postos de abastecimento de combustíveis não se pode configurar como uma atividade livre, mas é, antes, sujeita a restrições várias, implicando uma rigorosa avaliação dos seus riscos potenciais, pelo que a concessão da necessária licença constitui, realmente, como se disse, a remoção de um obstáculo jurídico a tal exploração.
45º
Também não poderá, por último, olvidar-se o facto de a Constituição consagrar o “direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” (cfr. art. 66º, nº 1 da Constituição), cabendo ao Estado particulares responsabilidades neste domínio, designadamente, o de “prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão” (cfr. nº 2 do mesmo artigo).
Ora, a taxa aplicada à A. pode, realmente, integrar-se no conceito do poluidor/pagador (cfr. art. 3º, alínea a) da lei de Bases do Ambiente), cabendo-lhe, assim, suportar os encargos daí resultantes, uma vez que é a principal beneficiária das vantagens económicas decorrentes dessa exploração.
VIII. Conclusões
46º
Em conclusão, em face de todo o referido ao longo das presentes alegações, atendendo às importantes questões de proteção ambiental necessariamente subjacentes ao recurso em apreciação, que sobrelevam a mera apreciação formal dos conceitos tradicionais de taxa e imposto, crê-se de concluir, propugnando por:
a) conceder provimento ao recurso;
b) consequentemente, considerar constitucionalmente conforme a norma constante do disposto no art. 70º, nº 1, pontos 1.1. e 1.2. da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para o ano de 2009;
c) revogar-se, em conformidade, o Acórdão recorrido do Tribunal Central Administrativo Sul, de 10 de Janeiro de 2012.”
[…]
8º
[A] inicialmente recorrida A. – S.A., ora recorrente, [apresentou] as suas alegações (cfr. fls. 733-776 dos autos).
9º
Compulsadas as referidas alegações, e apesar da sua inegável qualidade, não crê este Ministério Público de alterar a sua posição inicial nos presentes autos, constante das suas alegações iniciais.
Subscreve, por outro lado, inteiramente, a fundamentação expendida, por este Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 581/12, de 5 de Dezembro, anteriormente prolatado nos presentes autos.
10º
Nestes termos, entende o Ministério Público que deverá negar-se provimento ao presente recurso, confirmando-se, assim, o sentido do Acórdão anterior deste Tribunal Constitucional, nº 581/12, de 5 de Dezembro.»
5. Devidamente notificado para o efeito, o Município de Sintra não apresentou contra-alegações.
6. Concluída a discussão e tomada a decisão, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 79.º-D da LTC, cumpre agora formulá-la.
II. Fundamentação
7. A Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008 no Diário da República, II Série, de 31 de outubro de 2008, foi, por deliberação da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, mantida em vigor no ano de 2009, sem qualquer atualização (cfr. o n.º 1 do Aviso n.º 5156/2009, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de março de 2009). É o seguinte o teor do preceito em que se integra a norma objeto do presente recurso:
«Artigo 70.º
Equipamento de abastecimento de combustíveis líquidos – Alínea d) do n.º 7 do artigo 64.º da Lei 169/99 de 1 de janeiro, com a redação introduzida pela Lei 5-A/2002, de 11 de janeiro; RMOVPMS; Reg. Obras Trabalhos no Subsolo de Domínio Público, n.º 2 do artigo 6.º da Lei 53-E/2006 de 29 de dezembro; Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87 de 7 de abril
1 – Por cada um e por ano: € 80,00 (d).
1.1 – Em virtude dos condicionamentos no plano do tráfego e acessibilidades, do impacto ambiental negativo da atividade nos recursos naturais (ar, águas, solos) e da consequente atividade de fiscalização desenvolvida pelos serviços municipais competentes:
1.2 – À taxa prevista no ponto 1.1. acresce, ainda, a seguinte taxação:
1.2.1 – Instalados inteiramente em domínio público - € 590 (d).
1.2.2 – Instalados em domínio público, mas com depósito em propriedade privada - € 416,50 (d).
1.2.3 – Instalados em propriedade privada, mas com depósito em domínio público - € 518,50 (d).
1.2.4 - Instalados inteiramente em propriedade privada, mas abastecendo em domínio público - € 233 (d).
(d) – IVA não sujeito»
O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul fundamentou o seu juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, na violação dos parâmetros contidos nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição. Tais parâmetros estabelecem que no ordenamento jurídico português a criação de impostos deve ser feita através de lei, integrando-se tal matéria na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Verificando-se no caso concreto que os postos de abastecimento de combustíveis se encontram totalmente – “inteiramente” - implantados em propriedade privada, os tributos liquidados pelo Município de Sintra não teriam como fundamento um qualquer correspetivo prestado pela entidade administrativa, assim falhando o conteúdo sinalagmático que deve presidir à aplicação e cobrança de qualquer quantia a título de taxa. Diferentemente, os mesmos tributos seriam exclusivamente marcados pela sua unilateralidade, revestindo a natureza de verdadeiros impostos, o que redundaria em inconstitucionalidade por violação das regras constitucionais relativas à competência para a criação de encargos desse tipo.
8. Todavia, mesmo à luz dos parâmetros constitucionais convocados por tal decisão, afigura-se redutora uma análise dos tributos considerando apenas a classificação dicotómica imposto-taxa. Na verdade, importa considerar, fugindo àquela «alternativa excludente», a existência de outras figuras designadas genericamente no texto constitucional por “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (cfr. o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição e o artigo 3.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária). Como refere Sérgio Vasques, trata-se de tributos situados “no terreno intermédio que vai das taxas aos impostos [de que são, ou podem ser, exemplo] não apenas as taxas de regulação económica, mas toda a parafiscalidade associativa, as contribuições para a segurança social, as contribuições especiais de melhoria, assim como o universo crescente dos tributos ambientais, todos eles com estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários” (v. o Autor cit., in Sérgio Vasques (Coord.), As Taxas de Regulação Económica em Portugal, Almedina, Coimbra, 2008, p. 38). Pode, por isso, afirmar-se com Cardoso da Costa:
«[A]figura-se forçoso concluir […] que à luz do direito constitucional português vigente, e para os correspondentes efeitos, não é possível manter uma classificação dos «tributos» reduzida à alternativa excludente «imposto» ou taxa»: a partir do momento em que a Constituição se ocupa delas a se, definindo igualmente a extensão em que ficam subordinadas à reserva de lei parlamentar, importa ainda considerar esse tertium genus de receitas, que incluiu sob a designação genérica de «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas». Na verdade – e, no fundo, dizendo o mesmo por outras palavras – para decidir, face a um determinado tributo, qual o regime de reserva que se lhe aplica, não basta (ou já não basta) apurar qual daquelas qualificações tradicionais lhe convém (ou mais lhe convém): há que ver ainda se ela não cai antes dentro desse terceiro, e residual, tipo de receitas.
É certo que na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição não se define mais do que dois tipos de reserva de lei parlamentar: um, com a extensão que acima recordámos [v. p. 797: nos termos do artigo 103.º, n.º 2, daquele diploma - com o qual a mencionada alínea i) do artigo 165.º, n.º 1, deve, nesse capítulo, combinar-se - a reserva - referida, como vai, à «criação de impostos» (e ao «sistema fiscal») – abrange todos os «elementos essenciais» de cada um deles, ou seja: «a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes»], relativo aos «impostos»; e outro, restrito ao respetivo «regime geral», aplicável às «taxas» e às demais contribuições financeiras». Mas, não só isso não põe em causa o que vem de dizer-se, como […] o que justamente é mais significativo (até desse ponto de vista classificatório) é o facto de o legislador constitucional não haver sujeitado esse terceiro tipo de receitas à mesma reserva parlamentar dos primeiros e antes a uma reserva menos exigente, idêntica ou semelhante à que passou a consignar para as taxas: é que, anteriormente, e quando a doutrina e a jurisprudência tinham que operar unicamente com as duas categorias clássicas, a classificação que acabavam por atribuir a muitas dessas situações abrangidas agora pela referência constitucional «às demais contribuições financeiras» - e assim, nomeadamente e em especial, no caso das receitas «parafiscais» - era a de «imposto», com as correspondentes consequências, em matéria de princípio da legalidade e reserva de lei. Se a nossa leitura do preceito constitucional em análise está correta, quanto a essas receitas – e, desde logo, quanto às receitas ditas «parafiscais» - deixou, pois, de ser assim: para efeitos constitucionais, deixaram elas, numa palavra, de poder ser tratadas como impostos.» (v. Autor cit., “Sobre o Princípio da Legalidade das «Taxas» (e das «Demais Contribuições Financeiras»)” in AAVV, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano – No Centenário do seu Nascimento, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2006, Vol. I, pp. 805-806).
Neste mesmo sentido se pronunciou já este Tribunal no seu Acórdão n.º 365/2008, entendendo-se o seguinte quanto à extensão da «reserva de lei formal em matéria tributária»:
« A criação de impostos foi na nossa história constitucional, apesar das incertezas manifestadas entre 1945 e 1971, após o esvaziamento da competência legislativa da Assembleia Nacional resultante da Revisão Constitucional de 1945, matéria sempre reservada à aprovação parlamentar (sobre a evolução desta competência legislativa, vide JORGE MIRANDA, em “A competência legislativa no domínio dos impostos e as chamadas receitas parafiscais”, na R.F.D.U.L., vol. XXIX (1988), pág. 9 e segs. e ANA PAULA DOURADO, em “O princípio da legalidade fiscal: tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação”, pág. 50 e segs.).
A fidelidade a esta exigência não deixa de ter justificação no princípio dos ideais liberais “no taxation without representation”, correspondente à ideia de que, sendo o imposto um confisco da riqueza privada, a sua legitimidade tem de resultar duma aprovação dos representantes diretos do povo, numa lógica de autotributação, a qual permitirá a escolha de tributos bem acolhidos pelos contribuintes e, por isso, eficazes (sobre uma mais aprofundada justificação da reserva de lei fiscal, vide ANA PAULA DOURADO, na ob. cit., pág. 75-84).
Foi esta a opção da Constituição de 1976, que deixou de fora desta exigência as taxas (sobre esta opção, vide o Parecer da Comissão Constitucional n.º 30/81, in Pareceres da Comissão Constitucional, 17.º volume, pág. 91, da ed. da INCM, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 205/87, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 9º vol., pág. 209, e CASALTA NABAIS, em “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal”, no B.F.D.U.C. n.º 69 (1993), págs. 407-408).
Os termos do texto constitucional, antes da Revisão operada em 1997, suscitavam uma representação dicotómica dos tributos, pelo que a doutrina e a jurisprudência procuravam equiparar os apelidados tributos parafiscais à categoria dos impostos, ou das taxas, para concluírem se a sua criação estava ou não sujeita ao princípio da reserva de lei formal (vide NUNO DE SÁ GOMES, em “Manual de Direito Fiscal”, vol. I, pág. 315 e seg., da 12ª ed., do Rei dos Livros, SOUSA FRANCO, na ob. cit., pág. 74-76, e CASALTA NABAIS, em “O dever fundamental de pagar impostos”, pág. 256-257, da ed. de 1998, da Almedina).
No que respeita às contribuições cobradas para a cobertura das despesas de pessoas coletivas públicas não territoriais, assumia algum relevo a posição de as incluir na categoria dos impostos, exigindo que a sua previsão constasse de lei aprovada pela Assembleia da República (vide, neste sentido, ALBERTO XAVIER, na ob. cit., pág. 73-75, JORGE MIRANDA, na ob.cit., pág. 22-24, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1239/96, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 35.º vol., pág. 145, relativo à taxa devida à Comissão Reguladora de Produtos Químicos e Farmacêuticos).
Esta qualificação visava combater o já acima apontado objetivo da subtração destas receitas ao regime clássico da legalidade tributária e do orçamento do Estado, considerado um “perigoso aventureirismo fiscal”.
Contudo, a alteração introduzida na redação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P. (anterior alínea i), do n,º 1, do artigo 168.º), pela Revisão Constitucional de 1997, veio obrigar a uma reformulação dos pressupostos da discussão sobre a existência de uma reserva de lei formal em matéria de contribuições cobradas para a cobertura das despesas de pessoas coletivas públicas não territoriais.
Onde anteriormente o artigo 168.º, n.º 1, i), da C.R.P. dizia que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i) Criação de impostos e sistema fiscal (…)”, passou a constar que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i) Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas (…).
Para efeitos de submissão dos diversos tipos de tributo ao princípio da reserva de lei formal a nova redação do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da C.R.P., autonomizou a categoria das “contribuições financeiras”, a par dos impostos e das taxas.
Conforme resulta da consulta dos trabalhos parlamentares da Revisão Constitucional de 1997, a referência às contribuições financeiras constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., procurou abranger precisamente o mencionado tertium genus, incluindo as contribuições cobradas para a cobertura das despesas de pessoas coletivas públicas não territoriais. Conforme, nessa altura, esclareceu o deputado Vital Moreira: “a expressão 'contribuições financeiras' foi aquela que se encontrou para ser mais neutra, para não se falar em contribuições especiais, em contribuições parafiscais, que é aquilo a que a doutrina normalmente se refere: são as chamadas taxas dos antigos institutos de coordenação económica, as atuais chamadas taxas das comissões vitivinícolas regionais ou seja, toda uma série de contribuições financeiras que não são taxas em sentido técnico mas que são contribuições criadas para e a favor de determinadas entidades reguladoras e para sustentar financeiramente as mesmas. Penso que não devemos entrar nesta discussão teórica e por isso a escolha da expressão 'contribuições financeiras' foi aquela que se encontrou mais neutra para que a doutrina continue livre para fazer as suas discussões teóricas doutrinárias.” (In DAR , II Série, de 30-10-1996, pág. 1381).
O artigo 165.º,n.º 1, i), da C.R.P., passou a referir-se a três categorias de tributos, continuando os impostos sujeitos à reserva da lei formal, enquanto, relativamente às taxas e às contribuições financeiras, apenas a definição do seu regime geral tem que respeitar essa reserva de competência, podendo a concreta criação deste tipo de tributos, ao contrário dos impostos, ser efetuada por diploma legislativo governamental, sem necessidade de autorização parlamentar. […]»
Uma das consequências metódicas e práticas da aludida tripartição dos tributos respeita ao teste da «bilateralidade». Continuando esta a ser uma característica essencial das taxas, não pode hoje todavia ignorar-se a existência das «contribuições», entendidas como “figuras de contornos paracomutativos que dão corpo a uma relação de troca entre a administração e grupos determinados de indivíduos” e em que tal «relação comutativa» se pode mostrar mais ou menos difusa (cfr. Sérgio Vasques, ob. cit., p. 33). Como pondera Cardoso da Costa, “não que esse caminho [- o do aludido teste da «bilateralidade» -] não possa e não deva continuar a ser adotado em certas situações; mas, se agora se contempla uma terceira categoria de receitas, outras situações haverá em que importará ainda analisar o cabimento, no caso, da correspondente qualificação” (v. Autor cit., ob. cit., p. 806). E, atento o caráter mais ou menos difuso da relação comutativa que subjaz a alguns tributos, não são de excluir dificuldades na sua qualificação, seja por referência à categoria unilateral do imposto, seja em relação à categoria bilateral da taxa. De resto, a já mencionada ideia, avançada por Sérgio Vasques, das «contribuições da modernidade» como «tributos que se encontram a meio caminho entre as taxas e os impostos» parece exprimir isso mesmo. Ou seja, o alargamento dos tipos constitucionais de tributos vem obrigar a uma análise mais fina de cada espécie tributária, em especial no que se refere à distinção entre «taxas» e «outras contribuições financeiras não unilaterais a favor de entidades públicas».
9. No caso sub iudicio, porém, uma vez que o tributo aplicado pelo Município de Sintra se funda exclusivamente num regulamento municipal aprovado ao abrigo do artigo 56.º, n.º 2, da Lei das Autarquias Locais (a Lei n.º 169/99, de 1 de janeiro) e do artigo 8.º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (a Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro, adiante referida simplesmente como “RGTAL”); e, uma vez que inexiste qualquer outro diploma legal que contenha uma habilitação genérica para a aprovação pelos municípios de outro tipo de tributos, das duas uma: ou o tributo previsto no artigo 70.º, n.º 1, ponto 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra, aprovada no ano de 2008, e aplicada à ora recorrente em 2009, se pode reconduzir ao conceito de «taxa» consagrado no citado RGTAL, e, por conseguinte, aquele preceito regulamentar não é inconstitucional; ou, diversamente, correspondendo o tributo previsto no artigo 70.º, n.º 1, ponto 1.1, daquela Tabela a um «imposto» ou a uma «outra contribuição tributária com contornos paracomutativos», o mesmo preceito não poderá deixar de ser tido como incompatível com o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição. E isto independentemente da compreensão do conceito jurídico-constitucional de «taxa».
Na verdade, as referências a diplomas legais que se contêm na epígrafe do artigo 70.º daquela Tabela são, por si só, insuficientes para operar a habilitação do Município de Sintra a aprovar quaisquer tributos:
– O artigo 64.º, n.º 7, alínea d), da Lei das Autarquias Locais limita-se a prever a competência da câmara municipal para “exercer as demais competências legalmente conferidas, tendo em vista o prosseguimento normal das atribuições do município”;
– O artigo 6.º, n.º 2, do RGTAL contém uma norma de incidência objetiva – “as taxas municipais podem também incidir sobre a realização de atividades dos particulares geradoras de impacto ambiental negativo” – que pressupõe o conceito legal de taxa consignado no artigo 3.º do mesmo diploma: a proteção do ambiente é um fim extrafiscal legítimo, mas, para que exista «taxa», é necessário que tal «proteção» se materialize em prestações públicas concretas de que os sujeitos passivos sejam os efetivos causadores ou beneficiários (nestes termos, v. Sérgio Vasques, Regime das Taxas Locais – Introdução e Comentário, Cadernos IDEFF, n.º 8, Almedina, Coimbra, 2008, nota 3 ao art. 6.º, p. 116; cfr., também, em especial quanto aos fins extrafiscais, Joaquim Freitas da Rocha, Direito Financeiro Local (Finanças Locais), Cejur, Braga, 2009, p. 141):
– A Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de abril), no que para este efeito releva, prevê, como instrumento da política de ambiente e de ordenamento do território, “a fixação de taxas a aplicar pela utilização de recursos naturais e componentes ambientais, bem como pela rejeição de efluentes” (cfr. o artigo 27.º, n.º 1, alínea r); mas não as cria ela própria, nem habilita os municípios a criá-las.
O RGTAL é, assim, o único diploma legal que habilita o Município de Sintra a criar os tributos constantes da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra, aprovada no ano de 2008, uma vez que só ele permite dar cumprimento ao princípio da legalidade das taxas e demais contribuições financeira decorrente da norma de reserva relativa de competência legislativa consignada no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição.
10. Decorre do Acórdão que deferiu a reclamação para a conferência – o Acórdão n.º 599/2013 – e do Acórdão recorrido – o Acórdão n.º 581/2012 – e, bem assim, das próprias alegações das partes, que a questão da qualificação, ou não, como «taxa» das quantias exigidas pelo Município de Sintra como contrapartida da implantação de instalações de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente em terrenos de particulares – ou seja, não ocupando, nem utilizando, para o seu funcionamento, quaisquer terrenos do domínio público - não é nova nem na jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais, nem na jurisprudência constitucional.
No Acórdão n.º 24/2009 – o Acórdão fundamento – entendeu-se a tal respeito, tomando como referência a norma homóloga constante da Tabela aplicável ao ano de 2001e que corresponde àquela que é objeto de apreciação no presente processo:
« É certo que nada obsta a que as taxas municipais cumpram finalidades de gestão de tráfego ou ambientais, desde que o seu pressuposto de facto seja suscetível de revelar o caráter sinalagmático do nexo entre a imposição e uma prestação individualizável por parte do ente público, que o Tribunal sempre teve por integrante do conceito constitucional de taxa no confronto com o imposto. Refira-se, aliás, que o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro, passou a contemplar essa possibilidade (cfr. artigo 6.º).
Porém, na norma em apreciação, os elementos contidos no n.º 1.1. do artigo 69.º da Tabela não são mais do que a mera declaração de finalidade ou justificação geral do tributo, sem uma descrição que corresponda a qualquer uma das hipóteses de imposição que, pela presença de contraprestação pública individualizável, satisfaça o conceito de taxa. Como se disse no acórdão n.º 536/2005, “o específico conteúdo da justificação contida na norma –designadamente no que concerne à degradação e utilização ambiental dos recursos naturais – seria suscetível de classificar o tributo entre as contribuições especiais, designadamente na categoria de contribuições para maiores despesas: “aquelas em que a prestação devida pelos particulares encontraria a sua razão de ser no facto de estes ocasionarem com a sua atividade ou com coisas por eles possuídas um acréscimo de despesas para as entidades públicas”. Mas estes tributos têm, para o que agora nos interessa, a mesma exigência formal dos impostos, como o acórdão também refere, não podendo ser criados por regulamento municipal.
Deste modo, o único elemento da norma suscetível de ser erigido em previsão do pressuposto de facto do tributo é, afinal, a existência de um posto de abastecimento de combustíveis líquidos. Pelo que só se afigura possível que a imposição integre o conceito de taxa quando a exploração do posto implique, por algum dos seus elementos, a utilização da via pública (cf. acórdão n.º 441/2003). Caímos, portanto, apesar da evolução do teor normativo, na situação já analisada no acórdão n.º 113/2004 pelo Plenário do Tribunal.
Assim, impõe-se a conclusão que, no caso dos autos, como salientou o Ministério Público, a “causa” da tributação radica exclusivamente na referida utilização de bens particulares, o que permite a transposição da jurisprudência firmada no acórdão nº 113/2004 e o consequente juízo de inconstitucionalidade da norma regulamentar que integra o objeto do presente recurso.»
Consequentemente, a questão que se coloca no presente recurso é a de saber se este entendimento deve ser mantido, ou alterado, conforme decidido no Acórdão n.º 581/2012.
Para o efeito, importa recordar que está em causa o conceito de taxa das autarquias locais, hoje consagrado no artigo 3.º da Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro: as «taxas» são tributos devidos como contrapartida: (i) da prestação concreta de um serviço público local; (ii) da utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais; ou (iii) da remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei. Este conceito evidencia também que um concreto tributo pode merecer a qualificação de taxa por mais do que uma razão. Na verdade, é de admitir que um qualquer tributo, consoante os termos da sua previsão, possa ser perspetivado como contrapartida de um único, ou de mais do que um, dos benefícios típicos e individualizados auferidos pelo respetivo sujeito passivo ou, em alternativa, pura e simplesmente não possa ser perspetivado como contrapartida de qualquer benefício daquela natureza.
11. Conforme referido no Acórdão n.º 581/2012, a reponderação do problema justifica-se, desde logo, em razão do conceito constitucional de taxa assumido no Acórdão n.º 177/2010 deste Tribunal. Aliás, é justamente a propósito da subsunção da realidade tributária do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 que se verifica uma divergência entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra – o tribunal de primeira instância - e o Tribunal Central Administrativo Sul. Para o primeiro, o Município de Sintra assume uma particular obrigação – “a duradoura obrigação de suportar uma atividade que interfere permanentemente com a conformação de um bem público” – pelo que se deve entender que as taxas cobradas com referência aos postos de abastecimento de combustíveis consubstanciam a remoção de um obstáculo jurídico; já, para o segundo, esta noção mais ampla de taxa – a contrapartida pela «simples» remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares – não poderia ser transposta para a situação ora em análise relativa à aplicação do citado artigo 70.º, n.º 1, 1.1, a postos localizados inteiramente em propriedade privada.
Além disso, a já mencionada consideração autónoma dos tributos com uma «estrutura paracomutativa», a meio caminho entre a unilateralidade dos impostos e a bilateralidade das taxas, exige um aprofundamento casuístico da análise das situações factuais e jurídicas subjacentes e no âmbito das quais os tributos são fixados. Com efeito, a natureza jurídica destes, em especial no respeitante às «taxas» e às «demais contribuições», é função da maior ou menor intensidade das relações jurídicas entre o sujeito tributário ativo e o sujeito tributário passivo, da maior ou menor proximidade entre a Administração tributária e os particulares. Em não raros casos estará em causa apenas uma subtil diferença de grau. E, nesta perspetiva, torna-se necessária uma análise cuidadosa do regime jurídico aplicável aos postos de abastecimento de combustíveis, enquanto base de uma atividade económica juridicamente regulada com abstração da localização de tais equipamentos em terrenos de propriedade pública ou privada.
E justifica-se começar precisamente por aqui, uma vez que, só conhecendo os direitos e deveres recíprocos da Administração municipal e dos interessados na existência e funcionamento dos mencionados postos de abastecimento de combustíveis, é, depois, possível avaliar se à prestação pecuniária coativa exigida pelo Município de Sintra corresponde um qualquer serviço concreto ou, e porventura cumulativamente, a remoção de um obstáculo jurídico à atividade dos particulares. Recorde-se que, nos termos do artigo 3.º do RGTAL, são esses os dois pressupostos relevantes do conceito de taxa aplicáveis in casu.
12. O enquadramento legal dos postos de abastecimento de combustíveis remonta à Lei n.º 1947, de 12 de fevereiro de 1937, que tinha por objeto o licenciamento de instalações de armazenagem de petróleos brutos, seus derivados e resíduos. Este diploma veio a ser regulamentado pelo Decreto n.º 29034, de 1 de outubro de 1938, que aprovou o «Regulamento de Segurança das Instalações para Armazenagem e Tratamento Industrial de Petróleos Brutos, Seus Derivados e Resíduos». No entanto, por se considerar que a implantação e exploração daqueles postos de abastecimento carecia de um estatuto mais específico e atualizado do ponto de vista técnico que acautelasse as respetivas condições de segurança em geral, tendo em consideração o desenvolvimento de políticas de prevenção conducentes à melhoria das condições de bem-estar e segurança dos cidadãos bem como a preservação da qualidade do ambiente, veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei n.º 246/92, de 30 de outubro, o «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis». Este diploma definiu novas regras aplicáveis à construção e exploração dos postos de abastecimento, com especial destaque para as matérias referentes aos locais de implantação dos postos, às distâncias mínimas a observar em relação a outras infraestruturas e construções, à forma de implantação dos reservatórios e à envolvente da unidade de abastecimento, às precauções a observar na exploração e utilização dos equipamentos, à qualidade dos materiais a empregar e, em especial, à proibição da colocação dos postos de abastecimento debaixo de edifícios. A fiscalização da sua observância foi cometida, “no âmbito do Ministério da Indústria e Energia, às respetivas delegações regionais” (cfr. o artigo 2.º).
O simples enunciado destas matérias elucida sobre a interferência da implantação e funcionamento deste tipo de equipamentos com os interesses públicos da segurança de pessoas e bens, do urbanismo e do ordenamento do território e da preservação do meio ambiente e o consequente potencial de conflito entre os interesses de «vizinhos» e os interesses económicos associados à sua exploração.
Não surpreende, por isso, que, volvidos poucos anos, a Lei n.º 159/99, de 14 de setembro, no quadro do reforço da descentralização administrativa e dando concretização ao princípio da subsidiariedade, tenha previsto a transferência para os municípios de competências relativas ao licenciamento e à fiscalização de postos de abastecimento de combustíveis até aí exercidas pelo Governo, em especial pelo Ministério da Economia. Fê-lo, designadamente no seu artigo 17.º, n.º 2, alínea b), nos termos do qual passou a ser da competência dos órgãos municipais o “licenciamento e fiscalização de instalações de armazenamento e abastecimento de combustíveis salvo as localizadas nas redes viárias regional e nacional”. Em conformidade, o Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro – diploma que, nos termos do seu artigo 1.º, alínea b), estabelece os procedimentos e define as competências para efeitos de licenciamento e fiscalização de instalações de abastecimento de combustíveis líquidos e gasosos derivados do petróleo, também legalmente designado «postos de abastecimento de combustíveis» - veio disciplinar o competente licenciamento municipal:
«Artigo 4.º
Requisitos para o licenciamento
1 - A construção, exploração, alteração de capacidade e outras alterações que de qualquer forma afetem as condições de segurança da instalação ficam sujeitas a licenciamento nos termos deste diploma.
2 - Os elementos a fornecer pelo promotor e os procedimentos a seguir na instrução do processo de licenciamento, bem como os requisitos a satisfazer para a passagem das licenças de construção e de exploração da instalação, são definidos em portaria conjunta do Ministro da Economia e do membro do Governo que tutele as autarquias locais.
Artigo 5.º
Licenciamento municipal
1 - É da competência das câmaras municipais:
a) …;
b) O licenciamento de postos de abastecimento de combustíveis não localizados nas redes viárias regional e nacional
2 - A construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação das instalações de armazenamento e dos postos de abastecimento de combustíveis obedecem ao regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares, com as especificidades estabelecidas neste diploma.
Logo na redação originária deste diploma, em especial no seu artigo 4.º, n.º 2 - mas também no seu artigo 25.º, n.º 2, relativo à fiscalização - ficou claramente assinalada a distinção entre a dimensão procedimental e competencial do licenciamento e da fiscalização e as normas técnicas a observar em todo o momento pelos postos de abastecimento de combustíveis e que consubstanciam requisitos materiais daquela atividade licenciadora e a principal referência da fiscalização a exercer, seja pelas câmaras municipais, seja pela Administração central, segundo, respetivamente, as competências previstas nos artigos 5.º e 6.º (cfr. o artigo 25.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Na verdade, desde o início de vigência do Decreto-Lei n.º 246/92, de 30 de outubro, as circunstâncias que envolvem a construção e exploração dos postos de abastecimento de combustíveis haviam sofrido significativas modificações que, no entender do Governo, exigiam, em linha com a preocupação de adotar as mais avançadas técnicas de segurança e de qualidade dos materiais em uso na maioria dos Estados-membros da União Europeia, a revisão do Regulamento aprovado por aquele diploma, de modo a introduzir padrões de segurança mais rigorosos e eficazes, quer quanto à qualidade dos materiais a utilizar, quer quanto às condições dos locais destinados à implantação e exploração dos postos. É nesse quadro que surge o Decreto-Lei n.º 302/2001, de 23 de novembro – diploma que estabelece o quadro legal para a aplicação do «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis», prevendo ao mesmo tempo que o novo Regulamento, substitutivo do de 1992, seja aprovado por portaria do Ministro da Economia (cfr. os respetivos artigos 1.º e 8.º, n.º 1). E a Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro, veio aprovar tal Regulamento, nos termos previstos.
É assim que entre os regulamentos de segurança, da área dos combustíveis, aplicáveis aos projetos contemplados na portaria prevista no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro – a Portaria n.º 1188/2003, de 10 de outubro – nomeadamente no seu Anexo I, figura, com referência aos postos de abastecimento de combustíveis, o Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis, aprovado pela Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro.
Em suma, a implantação e exploração de postos de abastecimento de combustíveis é à data em que foram aplicadas as taxas objeto de impugnação no presente processo – 2009 - disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro (com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 195/2008, de 6 de outubro), no que se refere aos procedimentos e às competências em matéria de licenciamento e de fiscalização; e, quanto aos requisitos de construção e de exploração, pelo Decreto-Lei n.º 302/2001, de 23 de novembro, e, bem assim, pelo «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis», aprovado pela Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro.
13. Com interesse para o presente recurso importa salientar alguns aspetos deste regime.
Em primeiro lugar, a sua justificação: deixando de lado os aspetos referentes à implantação e construção, o simples funcionamento e a exploração de postos de abastecimento de combustíveis envolve riscos para a segurança e a saúde das pessoas e interfere com a «qualidade do ambiente» (no sentido dado a esta expressão no artigo 5.º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 11/87, de 7 de abril – a Lei de Bases do Ambiente: “a adequabilidade de todos os seus [do ambiente] componentes às necessidades do homem”), razões que levaram o legislador a estabelecer um quadro normativo técnico com caráter preventivo e a consagrar um sistema de fiscalização destinado a fazê-lo respeitar. Estas ações do legislador configuram por isso – ao menos, também – uma concretização do dever de proteção do ambiente. Na verdade, os postos de abastecimento de combustíveis, em si mesmos enquanto depósitos, e o seu funcionamento, representam uma fonte de poluição, em especial para os componentes ambientais ar, água, solo e subsolo nas suas imediações (cfr. o artigo 21.º da Lei de Bases do Ambiente). É também a proibição de poluir que justifica os condicionamentos normativos e os termos concretos da ação fiscalizadora a desenvolver (cfr. o artigo 26.º da Lei de Bases do Ambiente).
A consciência dos perigos e dos riscos para terceiros é, por outro lado, bem evidenciada, quer na previsão de um registo de acidentes com deveres de comunicação às autoridades da Administração central com competência nos domínios da energia e do ambiente, quer no reconhecimento expresso de um direito de reclamação relativo à laboração de qualquer posto de abastecimento (cfr., respetivamente, o artigo 30.º e o artigo 33.º, ambos do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro).
A partir do início de vigência do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, os municípios adquiriram um papel central na operacionalização do sistema de fiscalização (cfr. o respetivo artigo 25.º). A importância dos municípios e da fiscalização por eles exercida é tanto mais de sublinhar, desde logo, porque é o ambiente de cada município em que se localizam postos de abastecimento de combustíveis que é – ou pode ser - degradado. Por outro lado, atenta a duração longa das licenças de exploração deste tipo de instalações – até 20 anos, sendo esta a situação normal, de modo a amortizar os investimentos vultosos realizados pelos seus promotores (cfr. o artigo 15.º do Decreto n.º 29034, de 1 de outubro de 1938 e o artigo 15.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro) – frequentemente é apenas ao nível da fiscalização que os municípios podem intervir em defesa dos seus interesses e dos seus munícipes.
Em quarto lugar, e de acordo com a legislação aplicável, a fiscalização é exercida “no âmbito da regulamentação técnica das instalações” (assim, o artigo 25.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro). E “as regras técnicas relativas à construção e exploração das instalações de armazenamento e postos de abastecimento referidos no artigo 1.º obedecem à regulamentação e legislação específicas aplicáveis” (assim, o artigo 17.º do mesmo diploma). Ou seja, incumbe aos municípios o dever de proteção dos interesses acautelados na legislação e regulamentação própria dos postos de abastecimento de combustíveis. E esse dever legal é permanente e específico, porque dirigido à garantia de regras especiais, de modo a, por exemplo, detetar situações de “perigo grave para a saúde, a segurança de pessoas e bens, a higiene e a segurança dos locais de trabalho e o ambiente” e “tomar imediatamente as providências que em cada caso se justifiquem para prevenir ou eliminar a situação de perigo” (cfr. o artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro); ou situações de infração às regras de exploração de postos de abastecimento (cfr. o artigo 45.º e seguintes do «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis»).
Há aqui manifestamente um plus, relativamente aos deveres gerais de polícia administrativa. Com efeito, não é indiferente para um qualquer município, ter ou não ter postos de abastecimento de combustíveis localizados na sua circunscrição, já que, em caso de acidente, a omissão de uma fiscalização diligente pode ser considerada como tendo contribuído para o mesmo e, assim, ser causa de danos para o próprio município e fonte de obrigações de indemnização de danos de terceiros.
14. É a existência deste dever legal de fiscalização especificamente imposto às câmaras municipais com referência aos postos de abastecimento de combustíveis, para mais pautado por requisitos técnicos especiais previstos em legislação própria, que torna menos plausível – para não dizer completamente implausível – a inexistência de atividades de fiscalização e a adaptação das estruturas e serviços municipais nos planos da proteção civil e da defesa do ambiente. Aliás, isso mesmo foi alegado pelo Município de Sintra junto do Tribunal Central Administrativo Sul:
As instalações de carburantes são um fator de risco público que tem de ser ponderado permanentemente e representam um fator poluidor que gera uma enorme sobrecarga ambiental muito superior a qualquer quiosque ou esplanada;
– A sobrecarga ambiental das instalações de carburantes obriga à adaptação de estruturas e serviços municipais, em termos ambientais, urbanísticos e de segurança civil, impondo a tomada de medidas de segurança;
– Uma vez que o exercício da atividade de comércio de carburantes implica o armazenamento e manipulação de materiais inflamáveis, trata-se de uma atividade que, para além de poluente, é perigosa em si mesma e condicionadora do tráfego rodoviário, implicando que funcione em locais apropriados e em boas condições de segurança, o que tem de ser assegurado pelos serviços fiscalizadores da Câmara, quer quando concede a licença, quer posteriormente;
– O Município de Sintra, através dos seus serviços de fiscalização e de polícia municipal, desenvolveu atividades de polícia e de controlo do ambiente e das regras urbanísticas, tendo procedido nomeadamente a um levantamento de todos os postos de abastecimento de combustíveis, por forma a promover os devidos licenciamentos (licenças de utilização, alvarás, publicidade e ocupação do espaço público, horários de funcionamento e licenças de equipamentos de combustíveis líquidos), tendo ainda elaborado um relatório com dados específicos de cada um dos postos de abastecimento do concelho.
Isso mesmo é expressamente reconhecido pelo Ministério Público nas suas alegações (cfr. os n.os 43.º e 44.º, supra no n.º 4):
«43º
É, ainda, indubitável, o facto de que um posto de abastecimento de carburantes tem marcante incidência «externa», que extravasa o local do domínio privado em que está implantado, implicando, necessariamente, a utilização de recursos naturais (ar, solo e água), ocasionando forte desgaste ambiental, determinando condicionantes urbanísticas e de aproveitamento dos solos, causando riscos ambientais, que incumbe à autarquia inspecionar, fiscalizar e prevenir, para além de colocar delicados problemas de planeamento e prevenção em termos de segurança civil.
Com efeito, a utilização de tais postos de abastecimento apresenta elevados riscos - mesmo se instalados em domínio privado -, de contaminação atmosférica e de solos, quer em termos imediatos, quer futuros, pelo que representa um fator poluidor com enorme sobrecarga ambiental e riscos para uma vida humana sadia e ecologicamente equilibrada.
Para além de implicar o armazenamento e manipulação de materiais altamente inflamáveis.
44º
Como consequência, implica – ou, pelo menos, deveria implicar - a necessária adaptação de estruturas e serviços municipais, em termos ambientais, urbanísticos e de segurança civil, com a correspondente adoção de medidas adequadas de controlo de riscos de eventuais acidentes. […]»;
E é essa também a justificação invocada para a imposição da taxa prevista no artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 (cfr. supra o n.º 7): “Em virtude dos condicionamentos no plano do tráfego e acessibilidades, do impacto ambiental negativo da atividade nos recursos naturais (ar, águas, solos) e da consequente atividade de fiscalização desenvolvida pelos serviços municipais competentes”.
Atento o dever legal permanente e específico de fiscalização dos postos de abastecimento de combustíveis - das instalações e equipamentos e do respetivo funcionamento e utilização - previsto no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, com referência ao «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis», imposto às câmaras municipais, não se afigura razoável exigir que estas, para poderem cobrar uma taxa, tenham de fazer prova de todas e de cada uma das ações realizadas em cumprimento de tal dever. Certo é que o cumprimento deste dever – e a responsabilidade associada à sua existência – não está na disponibilidade dos municípios. É a lei que exige a ação continuada de vigilância com caráter preventivo, sem prejuízo de ações pontuais e formais de fiscalização (como, por exemplo, as «vistorias periódicas» ou as «vistorias para verificação do cumprimento das medidas impostas nas decisões proferidas sobre reclamações», as quais, de resto, são objeto de uma taxação autónoma – cfr. o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro). Esta ação continuada de vigilância corresponde ao cumprimento de lei imperativa e traduz o «funcionamento normal do serviço». E a imposição do dever funcional correspondente – um dever de vigilância - traduz-se na assunção de certa responsabilidade. É assim que o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, prevê no seu artigo 10.º, n.º 3, a presunção de culpa leve – que é condição suficiente da responsabilidade exclusiva do ente público – “sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância”.
Em suma, o dever legal de fiscalização dos postos de abastecimento de combustíveis por parte das câmaras municipais cria uma presunção suficientemente forte no sentido de que a simples localização daqueles postos em determinada circunscrição concelhia é causa de uma atividade de vigilância e de ações de prevenção por parte do município correspondente, não só para dar cumprimento à lei, como principalmente para evitar que os riscos quanto à segurança de pessoas e bens, os riscos para a saúde pública e os riscos ambientais associados à existência e funcionamento daquelas instalações se materializem. É, pelo menos «normal», e é seguramente expectável da parte de autoridades públicas jurídica, social e ambientalmente responsáveis, que o significado e importância dos bens postos em perigo pela existência e funcionamento de postos de abastecimento de combustíveis, em articulação com as obrigações legais dos municípios, que estes desenvolvam em relação aos postos de abastecimento localizados nas respetivas circunscrições todas as ações a que legalmente estão obrigados, entre as quais se inclui a mencionada vigilância permanente com intuitos de prevenção. Assim sendo, não parece que lhes deva ser exigido que, para justificar a fixação de uma taxa como contrapartida de tais ações realizadas em cumprimento da lei, façam prova de cada uma dessas ações junto dos destinatários das mesmas.
Aliás, estes sabem bem e à partida que, por força da lei, a existência de postos de abastecimento de combustíveis “não localizados nas redes viárias regional e nacional” obriga os municípios em cuja circunscrição se localizem a uma ação de vigilância permanente, de modo a verificar o cumprimento permanente dos requisitos técnicos específicos desse tipo de instalações, e que vão para além das vistorias previstas e inspeções periódicas. Com efeito, a fiscalização prevista no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, não se esgota nas ações previstas no artigo 22.º do mesmo diploma nem se confunde com o cumprimento do dever geral de polícia. Assim, tal ação fiscalizadora pode ser tida como efetivamente provocada (e, em certo sentido, também aproveitadas) apenas pelos proprietários dessas instalações, justificando-se, por conseguinte, o pagamento de uma compensação.
Na verdade, conforme referido no artigo 3.º do RGTAL, “as taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local”. No caso vertente é razoável e forte a presunção, feita a partir da natureza dos postos de abastecimento de combustíveis e dos deveres legais de fiscalização que incumbem às câmaras municipais (factos indiciários), da existência de uma atividade de vigilância permanente por parte dos serviços camarários dirigida àquele tipo de instalações e ao seu modo de funcionamento. Assim sendo, é lícito presumir que quem explora postos de abastecimento de combustíveis “não localizados nas redes viárias regional e nacional” dá azo ou provoca uma atividade de fiscalização por parte das câmaras municipais correspondentes às circunscrições concelhias em que os postos se localizem. A implantação dos mesmos postos “inteiramente” em propriedade privada ou em terrenos do domínio público municipal é, para este efeito, irrelevante, já que os riscos e a vigilância legalmente exigida são idênticos nas duas situações. O que releva é o tipo de instalação e não a natureza privada ou pública onde a mesma se encontra implantada. Mais: essa atividade de vigilância é, pela peculiaridade dos requisitos técnicos que visa controlar, exclusivamente imputável às ditas instalações. Nos municípios em que não se localizem tais postos de abastecimento, não há lugar a tal ação de vigilância.
E tanto basta para que a taxa prevista no artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 se possa reconduzir ao conceito do artigo 3.º do RGTAL, afastando, por consequência, a arguida inconstitucionalidade orgânica e formal daquele preceito regulamentar.
15. A mesma conclusão pode ser alcançada a partir da consideração da própria licença de exploração de postos de abastecimento de combustíveis. Aliás, e como referido, foi essa a via ensaiada pelo tribunal de primeira instância para fundamentar o seu juízo de não inconstitucionalidade. Para o efeito, foi considerada a jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no seu Acórdão n.º 177/2010.
Naquele Acórdão o Tribunal Constitucional ultrapassou “o argumento restritivo de que as taxas com fundamento na remoção de um obstáculo jurídico, tivessem que permitir a utilização de um bem do domínio público, sob pena de ser qualificadas como impostos ou figuras que seguissem o regime destes tributos [… O] Tribunal Constitucional reconheceu, em plenário, o caráter excessivamente restrito da tese que vinha subscrevendo nas últimas duas décadas. E, nessa medida, passou a consagrar que, para a aferição da legitimidade da remoção de um obstáculo jurídico como fundamento das taxas, é determinante aferir se esse obstáculo é real, genuíno, ou se foi arbitrariamente criado” (é a síntese de Nuno de Oliveira Garcia e Andreia Gabriel Pereira, “A nova jurisprudência das taxas municipais pela colocação de painéis publicitários em domínio privado” in Direito Regional e Local, N.º 15, julho-setembro de 2011, p. 25 e ss., p. 33).
Foi o seguinte, o raciocínio seguido pelo Tribunal no caso então em apreço:
« 11. Assente que há prestações conexas, sem mais, ao licenciamento de um comportamento dos particulares, a que cabe, também do ponto de vista das valorações constitucionais, a qualificação como taxa, cumpre ajuizar, por último, se o tipo de situações de que o caso vertente é exemplo se integra nessa categoria.
Está em causa, como já vimos, a colocação de um anúncio luminoso num prédio particular. Seja qual for a materialidade concreta desse reclamo e o modo do seu posicionamento no prédio – matéria sobre a qual não há elementos nos autos - não sofre dúvidas de que o local de implantação do suporte físico da publicidade se situa em domínio privado, num imóvel de propriedade privada. Mas isso não invalida que, pelo seu modo funcional de ser, a atividade publicitária assente em painéis ou inscrições se projete visualmente no espaço público, interferindo conformadoramente na configuração do ambiente de vivência urbana das coletividades locais. A fixação do âmbito de incidência da taxa em questão leva em conta isso mesmo, pois só são taxados “os anúncios que se divisem da via pública” (observação 1), aplicável às normas do Capítulo IV, em que se integra a do artigo 31.º, da Tabela de Taxas anexa ao Regulamento em causa).
Na busca da máxima percetibilidade e do maior impacto da respetiva mensagem junto dos potenciais consumidores ou utentes dos produtos ou serviços publicitados, o anunciante utiliza, com muita frequência, formas agressivas de comunicação, em termos luminosos, gráficos ou, até, de dimensão e destaque físicos, pelo que a visualização tem verdadeiros efeitos intrusivos, no ambiente de vida comunitária.
Contrariamente ao que transparece de algumas apreciações, a questão não se resolve, pois, pela simples demarcação “física” dos espaços privado e público, determinando-se a legitimidade da qualificação como taxa pela “ocupação” de um ou de outro, por parte da fonte emissora da mensagem publicitária. «É que – faz-se notar na referida declaração de voto do Conselheiro Benjamim Rodrigues – a utilidade essencial e determinante na ótica do utilizador que o obrigado do tributo obtém pela via do pagamento do tributo não é propriamente a utilidade traduzida na afixação ou inscrição dos anúncios nos bens do domínio privado mas sim, essencialmente, a utilidade dos mesmos poderem ser visíveis e tidos em conta por quem circula nos espaços públicos planificados pelos municípios e cuja preservação como ecologicamente sadios principalmente lhes compete».
A colocação, em prédios de propriedade privada, de anúncios de natureza comercial tem direta e muito marcante incidência “externa”, que extravasa da esfera dominial do respetivo titular. Pela natureza do efeito útil pretendido, ela contende necessariamente com o espaço público, cuja gestão e disciplina compete à edilidade exercitar. Justifica-se, assim, que a atividade publicitária seja relativamente proibida (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 558/98), ficando sujeita a um licenciamento prévio pelas câmaras municipais, “para salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental” (artigo 1.º da Lei n.º 97/88 de 17 de agosto, alterada pela Lei n.º 23/2000, de 23 de agosto).
De forma alguma este regime pode ser perspetivado como um obstáculo jurídico arbitrário, como uma intervenção abusivamente limitadora do jus utendi de um bem privado, com o único fito de obter receitas. Independentemente da posição adotada quanto a saber se a iniciativa publicitária corresponde ou não ao gozo de uma faculdade contida no direito de propriedade privada, não sofre dúvida de que tal regime se encontra objetivamente legitimado pela tutela de reais interesses públicos, cuja preservação é condição indispensável da “qualidade ambiental das povoações e da vida urbana”, nos termos constitucionalmente exigidos (alínea e) do artigo 66.º da CRP).
12. Mas a conexão privado-público, que se estabelece por força da afixação e inscrição de mensagens de publicidade em prédios privados, não deve representar-se apenas segundo um “modelo de limites”, traduzindo a ideia simples de que ao privado cumpre respeitar as restrições que advêm da intangibilidade de interesses públicos.
Se assim fosse, poderia ter cabimento a orientação que valora diferentemente a taxa devida pela concessão da licença, como ato administrativo praticado em dado momento temporal, das sucessivas renovações dessa taxa, das prestações periodicamente reiteradas, em função da manutenção, ao longo do tempo, da publicidade. Poderia sustentar-se, deste ponto de vista, que é apenas a colocação da publicidade que requer, como contrapartida, a atividade administrativa prévia de verificação da observância dos deveres negativos do obrigado tributário, os quais dão conteúdo aos critérios de licenciamento enunciados no artigo 4.º da Lei n.º 97/88. Uma vez prestado, esse serviço público não se renova, pelo que não se divisa a existência de qualquer contrapartida específica para a remuneração periódica da mera permanência do reclamo (assim, o Acórdão n.º 437/2003; cfr. ainda o Acórdão n.º 166/2008, onde se salienta que, estando em causa – como acontece nos presentes autos – a renovação da licença e não o licenciamento ex novo, «mais reforça a ausência de correspectividade/sinalagmaticidade entre a taxa devida e o serviço a prestar pelo município, na medida em que a publicidade em causa já se encontra devidamente afixada no imóvel pertencente à recorrida, não se vislumbrando que serviços concretos poderia aquele município ser forçado a praticar, por força da mera renovação da licença»).
Afigura-se-nos que esta orientação, para além de se apoiar numa compreensão restritiva do conceito de taxa, denegatória da autonomia da modalidade consistente na remoção de um obstáculo jurídico, é excessivamente redutora do conteúdo da relação estabelecida entre o anunciante e a administração local. Não está em causa apenas o interesse de integridade dos valores, ambientais, urbanísticos e outros, que poderiam ser afetados por causa da atividade publicitária, interesse esse acautelado através da intervenção administrativa de fiscalização do cumprimento dos deveres específicos de omissão enumerados no artigo 4.º da Lei n.º 97/88. A emissão da licença, o mesmo é dizer, o levantamento do obstáculo jurídico (que já vimos não ser arbitrário) dá origem a uma relação com o obrigado tributário distinta da que intercede com a generalidade dos administrados, no quadro da qual a entidade emitente assume uma particular obrigação – a duradoura obrigação de suportar (pati) uma atividade que, embora respeitando aqueles deveres, interfere permanentemente com a conformação de um bem público. Com o licenciamento, alteram-se as posições jurídicas recíprocas de administração e administrado, ficando aquela onerada, enquanto a situação persistir, com uma obrigação até aí inexistente. Inversamente, o anunciante ganha título para uma ativa e particular fruição, em termos comunicacionais, do espaço ambiental, necessária à realização da utilidade individual procurada, a qual não se confunde com o gozo passivo desse espaço, ao alcance da generalidade dos cidadãos (cfr., todavia, o Acórdão n.º 437/2003). Em exclusivo proveito próprio, um sujeito privado – o anunciante – introduz, através da atividade publicitária, mudanças qualitativas na perceção e no gozo do espaço público por parte de todos os que nele se movem, “moldando-o”, em função do seu interesse. A constituição da obrigação passiva de se conformar com essa influência modeladora é justamente a contrapartida específica que dá causa ao pagamento da taxa, estruturando, em termos bilaterais, a relação estabelecida com o obrigado tributário.
Findo o prazo para o qual tinha sido concedida a remoção da proibição do exercício da atividade publicitária, torna-se necessário proceder à reavaliação da situação, do ponto de vista da permanência das condições legais de licenciamento, o que justifica a cobrança de uma nova prestação tributária. Essa reavaliação é um pressuposto da continuidade da fruição, por um novo período, das utilidades propiciadas por tal atividade, no que o particular se mostra interessado. Não faz sentido, atenta essa relação causal, distinguir o licenciamento da sua renovação, ou a contrapartida devida pelo período inicial das que são exigíveis pelos períodos de renovação da licença.
Assim como, noutra dimensão problemática, não há razões para considerar a taxa de publicidade consumida por anteriores quantias devidas para a realização de outros trâmites de que eventualmente depende a utilização de edifícios privados para fins publicitários. Já defendida na doutrina (cfr. P. PITTA e CUNHA/J. XAVIER DE BASTO/A. LOBO XAVIER, “Os conceitos de taxa e imposto a propósito de licenças municipais”, Fisco, ano 5 (1993), 3 s., 6-7), esta tese ignora a especificidade da contrapartida outorgada ao anunciante, inconfundível com qualquer outra e autónoma em relação a causas de prestação com ela eventualmente cumuláveis.»
Para a decisão do presente recurso, cumpre salientar, além da já assinalada superação da noção restritiva de taxa, o reconhecimento expresso no Acórdão n.º 177/2010 da «intervenção administrativa de fiscalização do cumprimento de deveres específicos» ordenada à garantia de «integridade dos valores ambientais, urbanísticos e outros», e, sobretudo, a importância dada à relação jurídica criada pela licença: “uma relação com o obrigado tributário distinta da que intercede com a generalidade dos administrados, no quadro da qual a entidade emitente assume uma particular obrigação – a duradoura obrigação de suportar (pati) uma atividade que, embora respeitando aqueles deveres, interfere permanentemente com a conformação de um bem público”. Em vez do que designou de «modelo de limites», o Tribunal aplicou um «modelo relacional» que coloca no centro a relação jurídica - isto é, os direitos e deveres recíprocos de quem licencia e de quem é licenciado – que se prolonga no tempo.
Para o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, este último aspeto, considerado de per si, não relevaria no caso ora sub iudicio, porquanto “o obrigado ao pagamento da disputada taxa não beneficia da remoção de qualquer obstáculo jurídico ao exercício da atividade em causa, somente podendo a imposição da mesma fundar-se na ocupação do domínio público e aproveitamento de bens de utilização pública. Casuisticamente, o Ac. 177/2010 versou situação referente a taxa por emissão, camarária, de licença para afixação ou inscrição de publicidade em propriedade privada, quando é certo que, para explorar os visados postos de abastecimento de combustíveis, a impugnante teve de obter licença junto de entidade oficial, com nenhuma ligação ao Município de Sintra; que, aliás, nem justifica a liquidação da mesma com esse fundamento específico“.
16. Tal conclusão afigura-se demasiado apressada.
Com efeito – e abstraindo agora dos aspetos conexionados com a «fiscalização do cumprimento de deveres específicos», considerados autonomamente – a verdade é que a licença de exploração de postos de combustíveis, enquanto ato administrativo de execução continuada (ou de eficácia duradoura), também não esgota os seus efeitos num só momento, através de um ato ou facto isolado. Bem pelo contrário, constitui uma relação jurídica duradoura no quadro da qual o licenciado adquire o direito de exercer uma atividade que, mesmo cumprindo os deveres específicos impostos pela legislação e regulamentação técnica aplicável, interfere permanentemente com a conformação de bens públicos, como o ambiente (ar, águas e solos), o urbanismo, o ordenamento do território e a gestão do tráfego. Ou seja, também no caso em apreço se verifica que, no quadro das licenças de exploração dos postos de abastecimento da recorrida inicial, ora recorrente, o Município de Sintra, apesar de não ter sido a entidade emitente das mesmas, fica duradouramente obrigado a suportar atividades que interferem permanentemente com a conformação de bens públicos que tem por atribuição proteger. O mesmo é dizer, que, embora assente na licença de exploração, a remoção do obstáculo jurídico ao comportamento do particular – desde logo, a proibição de poluir – é permanente e não pode deixar de ser imputada ao próprio Município, uma vez que compete hoje à Câmara Municipal de Sintra licenciar a exploração de postos de abastecimento de combustíveis como os da ora recorrente (cfr. o artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro).
Mas há ainda outros aspetos que importa considerar.
Em primeiro lugar, a circunstância de, mesmo em relação aos postos cuja exploração foi licenciada pela Administração central ao abrigo de legislação anterior, serem afetados os bens «segurança» e «qualidade ambiental» do Município de Sintra e dos seus munícipes, e mais em geral, todo do «espaço público municipal» pela prossecução do interesse económico particular do titular da licença. Este impõe – e ao abrigo da licença tem o direito de impor – àquele Município a obrigação de suportar atividades que interferem permanentemente com a conformação de bens públicos. Aliás, em comparação com aquilo que se passa com a inscrição e afixação de mensagens de publicidade em prédios privados, essa interferência e utilização do espaço público é muitíssimo mais gravosa e intrusiva.
Depois, há que retirar todas as consequências da ocorrida transferência de competências. Não se justifica distinguir, para efeitos de taxação referente aos condicionamentos do tráfego e acessibilidades e aos impactes ambientais negativos nos recursos naturais – ou seja, relativamente à obrigação do município de suportar atividades que interferem permanentemente com aqueles bens – entre a emissão de licenças de exploração ou suas renovações pela Administração central e a emissão de licenças de exploração ou suas renovações pela câmara municipal. Com efeito, tanto num caso, como no outro, as atividades licenciadas projetam-se da mesma forma e de modo negativo sobre o espaço público municipal.
Em terceiro lugar, cumpre ter presente que as taxas a impor com referência ao licenciamento propriamente dito – por exemplo, apreciação dos pedidos de aprovação dos projetos de construção e de alteração ou as vistorias que antecedem a emissão das licenças – estão previstas no artigo 22.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, que, no tocante aos respetivos montantes remete, na parte que aqui interessa, para regulamento municipal (cfr. o n.º 2 do citado artigo 22.º). Acresce que as licenças em causa se limitam a verificar que, no momento em que são emitidas, se encontram cumpridos todos os requisitos técnicos. Tais licenças e, por conseguinte, as taxas fixadas com referência às mesmas, pura e simplesmente não tomam em consideração os aludidos condicionamentos e impactes negativos no espaço público municipal. Nem o podiam fazer, uma vez que a disciplina jurídica em causa – na tradição que já vem do regime de 1937 - é uniforme para todo o processo de licenciamento de postos de combustíveis, com abstração da entidade competente para a emissão das licenças, se as câmaras municipais, se a Administração central. Esta última distinção competencial é, como referido anteriormente, uma consequência da operacionalização em 2002 da política de descentralização vertida na Lei n.º 159/99, de 14 de setembro.
Finalmente, há que ter em conta a longa duração da licença de exploração de postos de abastecimento de combustível: em regra, 20 anos (cfr. o artigo 15.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro; cfr também supra o n.º 13). Durante todo o período da licença, pode ser exercida a atividade licenciada, que, recorde-se, impacta negativamente em bens públicos. Ou seja, a remoção do obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares – e não parece poder questionar-se, à luz dos interesses públicos a tutelar, a legitimidade de tal regime de licenciamento – não opera instantaneamente, mas permanece durante todo o período de vigência da licença.
Considerando conjuntamente todos estes aspetos, a interrogação que se pode formular é a de saber se um município, obrigado a suportar permanentemente no seu espaço público interferências decorrentes de uma atividade económica sujeita a procedimentos públicos de licenciamento previstos em legislação especial e igualmente aplicável à Administração municipal e à Administração central, que, todavia, não considera nem faz relevar tais impactes negativos para efeitos de fixação das taxas aplicáveis, pode, por sua iniciativa, e em ordem à prossecução das suas atribuições nos domínios afetados pela atividade licenciada, tributá-la, tomando como referência as licenças previamente atribuídas. Noutros termos: será que a «remoção do obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares» a que se refere o artigo 3.º do RGTAL, como pressuposto das taxas, é necessariamente específico de uma dada taxa, ou pode ser comum e, por conseguinte, valer para outras taxas conexionadas com dimensões da atividade licenciada não consideradas na fixação da taxa que remove o obstáculo jurídico em causa?
O caso sub iudicio exemplifica bem a importância da questão: será compatível com o princípio da autonomia das autarquias locais admitir que estas não possam impor taxas sobre atividades que interferem de forma relevante com bens jurídicos que lhes cabe tutelar apenas porque na legislação especial respeitante ao licenciamento da mesma atividade se consideram exigências diferentes e muito relevantes do ponto de vista técnico, mas que ignoram por completo a aludida dimensão de interferência permanente com bens públicos municipais?
No Acórdão n.º 177/2010 este Tribunal entendeu que “a constituição da obrigação passiva de se conformar com essa influência modeladora é justamente a contrapartida específica que dá causa ao pagamento da taxa, estruturando, em termos bilaterais, a relação estabelecida com o obrigado tributário”. Mas, como mencionado pelo Tribunal Central administrativo Sul, também aí se considerou que “findo o prazo para o qual tinha sido concedida a remoção da proibição do exercício da atividade publicitária, torna-se necessário proceder à reavaliação da situação, do ponto de vista da permanência das condições legais de licenciamento, o que justifica a cobrança de uma nova prestação tributária. Essa reavaliação é um pressuposto da continuidade da fruição, por um novo período, das utilidades propiciadas por tal atividade, no que o particular se mostra interessado. Não faz sentido, atenta essa relação causal, distinguir o licenciamento da sua renovação, ou a contrapartida devida pelo período inicial das que são exigíveis pelos períodos de renovação da licença. Assim como, noutra dimensão problemática, não há razões para considerar a taxa de publicidade consumida por anteriores quantias devidas para a realização de outros trâmites de que eventualmente depende a utilização de edifícios privados para fins publicitários“.
Ora, a grande diferença no caso sujeito é que a taxa a aplicar nos termos do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 pressupõe já o benefício da remoção do obstáculo jurídico, isto é, a licença de exploração de postos de abastecimento de combustíveis. O que aquela taxa vem valorar é, no quadro de tal licenciamento, aspetos ainda nele não considerados, uma vez que o licenciamento em causa é determinado por lei especial que não tem de tomar em linha de consideração a especificidade dos interesses municipais. Será que, por ser assim, fica a taxa do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, desprovida de uma estrutura bilateral?
A resposta deve ser negativa, uma vez que o licenciamento dos postos de abastecimento de combustíveis nos termos do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, removendo embora um obstáculo jurídico, não toma – e, em rigor, nem pode tomar, atento o princípio da autonomia das autarquias locais - em consideração a obrigação passiva do Município de Sintra de se conformar com a influência modeladora da atividade licenciada. E este deve ser o aspeto decisivo: existe um comportamento sujeito a licenciamento que constitui aquele Município numa dada obrigação de suportar impactes negativos da atividade licenciada que pura e simplesmente não são considerados na licença. E a taxa em causa é a contrapartida específica de tal obrigação passiva. Não ocorre dupla tributação, uma vez que a mesma obrigação pura e simplesmente não é considerada nas taxas a pagar por ocasião da emissão ou renovação da licença. Também aqui deve valer a ideia de que as taxas do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro não consomem a taxa do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, uma vez que se reportam a contrapartidas diferentes.
Deste modo, se se tiver em conta não cada ato administrativo de licenciamento individualmente considerado, mas as relações jurídicas constituídas pelos mesmos, nada impede que o mesmo ato – rectius a relação jurídica por ele constituída - possa funcionar, em momentos distintos e relativamente a diferentes entidades públicas, como pressuposto da exigência de prestações pecuniárias coativas a título de taxas.
Assim, também com base em tal perspetiva se pode considerar a taxa prevista no artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 legítima à luz do artigo 3.º do RGTAL, ficando do mesmo modo afastado o juízo de inconstitucionalidade emitido pelo tribunal recorrido.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional, quando aplicável a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada, o artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008 no Diário da República, II Série, de 31 de outubro de 2008, e mantido em vigor, sem qualquer atualização, no ano de 2009, por deliberação da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, conforme o n.º 1 do Aviso n.º 5156/2009, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de março de 2009; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 1 de abril de 2014. – Pedro Machete – Ana Guerra Martins (voto a decisão, essencialmente, pelas razões constantes da declaração de voto aposta ao Acórdão nº 24/2009, no qual fiquei vencida. Não considero necessária a fundamentação dos pontos 15 e 16 para subscrever a decisão de não inconstitucionalidade da norma em apreço nos presentes autos). – Fernando Vaz Ventura – Maria de Fátima Mata-Mouros – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Maria José Rangel de Mesquita – Vencido nos termos de declaração em anexo. João Caupers – Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração que junto) – José da Cunha Barbosa (votei vencido pelas razões e fundamentos explicitados no acórdão fundamento (Ac. 24/2009), designadamente por entender que, face ao circunstancialismo do caso ‘sub judice’, inexiste contra prestação específica individualizável (sinalagma)). – Carlos Fernandes Cadilha (vencido nos termos da declaração de voto do Exmº. Conselheiro Lino Ribeiro) – Lino Rodrigues Ribeiro (com voto de vencido) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido na presente decisão por entender que o artigo 70.º, n.º 1, 1.1. da Tabela de Taxas e Outras receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008 no Diário da República, II Série, de 31 de outubro de 2008, mantido em vigor, sem atualização, no ano de 2009, por deliberação da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, conforme o n.º 1 do Aviso n.º 5156/2009, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de março de 2009, se encontra afetado de inconstitucionalidade, quando interpretado no sentido da sua aplicação a posto de abastecimento totalmente instalado em terreno privado.
Tenho para mim – tal como se considerou no acórdão fundamento – o Acórdão n.º 24/2009 – que não se encontra qualquer contrapartida (suficientemente) específica – que possa constituir razão de ser da taxa cobrada, não parecendo que uma vaga competência de fiscalização genérica destinada a verificar um ainda mais vago impacto ambiental ou urbanístico possa consubstanciar a bilateralidade que distingue a taxa do imposto.
Subscrevo por inteiro a afirmação, feita no acórdão fundamento, de que «o único elemento suscetível de ser erigido em pressuposto de facto do tributo é, afinal, a existência de um posto de abastecimento de combustíveis líquidos».
E, assim sendo, a disposição em causa, quando interpretada no sentido da sua aplicação a posto de abastecimento totalmente instalado em terreno privado, constitui um verdadeiro imposto, invadindo a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, especificamente a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República.
E, considerando, como considero, que passa também por aí a fronteira do Estado de direito, não posso subscrever um entendimento que se me afigura contribuir para a sua diluição.
João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida. Não vejo qual seja o fundamento constitucional que permite (ou impõe) o alargamento da noção de taxa municipal que, em revisão de anterior jurisprudência constante, o Tribunal a partir de agora adota.
Na argumentação do presente acórdão, a ideia segundo a qual o conceito (alargado) de taxa será o constitucionalmente devido radica numa premissa essencial: ao município que decide taxar foram devolvidas pela lei competências especiais no domínio de proteção de certos bens públicos (no caso, o ambiente) que vão muito para além das competências gerais de polícia administrativa que cabem por via de regra aos entes locais. Por causa desses deveres especiais de proteção, impendentes sobre o município por atribuição do legislador, aquele detém poderes e deveres constantes de fiscalização das ações de privados que contendem com a proteção desses bens. Ao município [que decide taxar] não cabe por isso provar que a ação de fiscalização foi pontualmente exercida, enquanto concreta contrapartida de certo “benefício” concedido ao particular. Como a competência de fiscalização para proteção especial de bens como o ambiente, ao dever ser municipalmente exercida em termos específicos e constantes, torna legítima a presunção do seu cumprimento continuado, deve entender-se que a noção legal de “prestação concreta de um serviço público municipal” se encontra, através da atribuição por lei das competências de fiscalização, em si mesma perfeita. Além disso, diz-se, a existência desses deveres constantes tem ainda como consequência a necessária revisão do conceito legal de “remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”. Este conceito, ainda por causa da atribuição legal, deve ser visto não segundo a “teoria dos limites” mas de acordo com uma perspetiva de “relação”: a remoção de obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares não se esgota com o ato do licenciamento (qualquer que seja a entidade competente para o praticar) mas perdura, enquanto categoria legal, enquanto durar a relação licenciada.
Subjacente a esta construção, toda ela assente nas consequências decorrentes da atribuição pela lei ao município de deveres especiais de proteção de um certo bem público (o relevante para a resolução do caso), está porém a tese segundo a qual, por causa dessa atribuição, o bem público em causa se tornou um bem público municipal e não estadual. É isto que legitima que nas funções de autogoverno do município se inscreva ainda a decisão de emitir normas que fixam tributos. Simplesmente, não vejo qual seja o fundamento constitucional que faz ligar à atribuição legal esta determinantíssima consequência. Os confins do autogoverno municipal estão constitucionalmente fixados, e consubstanciam-se na prossecução dos interesses próprios das populações respetivas. Perante esses confins, parece-me difícil sustentar que a atribuição legal ao município de deveres especiais de proteção de um certo bem jurídico seja condição necessária e suficiente para que, após essa atribuição e por causa dela, o ente municipal se torne o único responsável (na aceção constitucional do termo) pela proteção desse bem perante as suas próprias populações, ao ponto de se dispensar a intervenção do Estado e da sua lei na decisão de tributar. Sobretudo quando está em causa (como acontece no caso dos autos) uma afetação da propriedade privada, esta leitura do âmbito do autogoverno municipal parece-me excessivamente alargada, porque sem fundamento constitucional que a sustente.
Maria Lúcia Amaral.
VOTO DE VENCIDO
Votei vencido a decisão constante do presente Acórdão, seguindo a orientação do Acórdão da 3ª Secção nº 24/2009, quanto à questão da constitucionalidade da norma dos pontos 1 e 1.1. do artigo 70º da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008.
Em nossa opinião, o tributo imposto nessa norma não constitui uma contrapartida de um serviço público susceptível de especificação, individualização, proporcionalidade e exigibilidade, características que decorrem do carácter sinalagmático das taxas.
Segundo os ensinamentos da doutrina fiscal, acolhidos no nº 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária, o critério que diferencia a taxa dos demais tributos (impostos e contribuições financeiras) assenta na existência de um vínculo sinalagmático bilateral: à taxa corresponde uma contraprestação específica da parte do Estado ou de outra pessoa colectiva pública ou dotada de poderes públicos. Com tantas vezes a jurisprudência constitucional tem assinalado, o que caracteriza a taxa é o facto de os indivíduos uti singuli receberem uma prestação pública ou fruírem de uma utilidade ou vantagem proporcionada pela entidade pública mediante o pagamento de uma retribuição cujo montante é autoritariamente fixado pelo legislador ou pela Administração.
Na medida em que tem carácter sinalagmático – isto é, pressupõe benefícios e encargos específicos para os dois sujeitos da relação jurídico-tributária – a taxa tem origem numa causa específica e individualizada, diversamente do que sucede com os impostos e contribuições financeiras que assentam numa causa genérica e não individualizada. Como refere Cardoso da Costa, «as taxas são preços autoritariamente estabelecidos pagos pela utilização individual de bens semi-públicos» e «têm a sua contrapartida numa actividade do Estado especialmente dirigida ao respectivo interessado» (Cfr. Curso de Direito Fiscal, 2ª ed. Almedina, Coimbra, 1972, pág. 11).
A contrapartida específica atribuída aos particulares com a cobrança da taxa é pois uma contrapartida individualizada que se exprime em utilidades directamente proporcionadas ao onerado com a taxa. O Estado (ou um ente público que tenha recebido do Estado o poder tributário de fixar taxas) proporciona “utilidades individualizadas” a certos e determinados cidadãos pelas quais cobra um preço público autoritariamente fixado. Os tipos de situações em que se verifica a contrapartida individualizada na utilidade ou nas utilidades proporcionadas estão enunciados no nº 2 do artigo 4º da LGT: (i) prestação concreta de um serviço público; (ii) utilização de um bem do domínio público; (iii) remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.
Nas três modalidades de contrapartidas, a prestação de utilidades, porque é individualizada, confere aos particulares onerados com taxa o direito de exigir que a entidade pública actue de forma a proporcionar-lhes aquelas utilidades. Diferentemente do que ocorre com os impostos, em que o sujeito passivo se encontra numa situação de “sujeição”, na relação jurídica subjacente à taxa, dada a real sinalagmaticidade das prestações, o sujeito passivo pode exigir da entidade pública o cumprimento da “prestação devida”, e em caso de incumprimento, pode recusar-se a pagar ou solicitar uma indemnização por lesão de um interesse legalmente protegido.
Ora, no caso apreciado no Acórdão, o município cobra uma taxa anual aos proprietários ou entidades exploradoras de equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos sem lhes atribuir qualquer contraprestação individualizada (a utilização do bem de domínio público, a prestação do serviço público ou o levantamento da proibição à acção do particular). As finalidades públicas enunciadas no ponto 1.1. do artigo 70º da Tabela – condicionamentos no plano do tráfego e acessibilidades, impacto ambiental negativo da actividade nos recursos naturais (ar, águas e solos) e actividade de fiscalização desenvolvida pelos serviços municipais – não se traduzem em condutas administrativas de que resulte para os exploradores daqueles equipamentos utilidades individualizadas e exigíveis como contrapartida do pagamento da taxa.
A tese que fez vencimento considera que a fixação da taxa tem por contrapartida, por um lado, as acções de fiscalização que, por imperativo legal, os municípios estão obrigados a realizar de forma “permanente e específica”, e por outro, a remoção da “proibição de poluir” e/ou a “obrigação de suportar” impactos negativos da exploração de postos de abastecimento de combustível.
Simplesmente, não se pode dizer que a alegada taxa anual seja contrapartida individualizada das acções de fiscalização, da remoção da proibição de poluir ou da obrigação de suportar uma actividade poluidora.
O Acórdão acaba por reconhecer que as acções de fiscalização e vigilância não são utilidades individualizadas, ou seja, utilidades fruídas directamente pelos exploradores dos postos de combustíveis como contrapartida da taxa, uma vez que não dá como certo que elas ocorram, baseando-se apenas numa “presunção suficientemente forte” de que irão ocorrer. Ora, a prestação administrativa de um serviço público, como contrapartida da taxa, não pode constituir um dever cuja realização seja deixada ao puro alvedrio das entidade públicas. Sob pena de se descaracterizar o conceito de taxa, enfraquecendo o sinalagma e, nele, a exigibilidade, a conexão específica entre as utilidades proporcionadas e o particular onerado com ela, exige a vinculação a uma “prestação concreta” e não uma mera presunção da existência de eventual prestação. Se o policiamento se traduzir em inspecções e vistorias periódicas aos postos de abastecimento de combustível, como se impõe no artigo 19º do Decreto-Lei nº 267/2002, de 26 de Novembro (alterado pelo Decreto-Lei nº 195/2008, de 6 de Outubro), aí sim, a taxa prevista no artigo 22º desse diploma é devida como contrapartida de uma serviço concreto prestado aos proprietários desses estabelecimentos. Mas em relação às hipotéticas acções de fiscalização, de conteúdo desconhecido e aleatório, falta uma conexão suficientemente forte entre as obrigações recíprocas que corresponda a especificidade e exigibilidade por parte dos proprietários daqueles equipamentos.
Após a concessão da licença de exploração das instalações de abastecimento de combustíveis ficam removidos os obstáculos jurídicos ao respectivo funcionamento. O procedimento administrativo tendente à concessão da licença já integra uma “avaliação de impacto ambiental” e “relatórios de segurança” que acautelam os eventuais impactos ambientais negativos e previnem acidentes graves (artigo 11º do Decreto-Lei nº 267/02). A licença de exploração e as vistorias efectuadas no âmbito desse procedimento, pelas quais se pagam taxas, habilita o funcionamento dos postos de abastecimento e levantam todos os obstáculos jurídicos, ambientais e de segurança, ao exercício da respectiva actividade. A concessão da licença de exploração pressupõe assim que o posto de abastecimento está em condições de funcionar sem causar impactos negativos no ambiente e na segurança de pessoas e bens. E após a concessão de licença, as inspecções periódicas e as medidas cautelares (artigos 19º e 20º do Decreto-lei nº 267/2002), pelas quais também se cobram taxas, continuam a remover os obstáculos de ordem ambiental e de segurança que a lei impõe ao funcionamento desse tipo de instalações.
Neste contexto, não se pode considerar que as instalações de abastecimento de combustível constituam por si mesmo fonte permanente de poluição pela qual a entidade exploradora tenha que pagar uma nova taxa ambiental. A licença de exploração já garante que não há impactos negativos no ambiente (ar, água, solo), pois em caso contrário não teria sido concedida ou seria cancelada. Não está demonstrado que o funcionamento normal de um posto de abastecimento de combustível implique emissões poluentes do ar, água e solo. Se forem cumpridas as regras técnicas previstas na Portaria nº 131/2002, de 9 de Fevereiro, quanto à instalação dos reservatórios, recuperação de vapores e sistemas de tratamento de águas residuais, o que é certificado pela licença de exploração, em princípio, está assegurada a inexistência de impactos ambientais negativos e a segurança das pessoas e bens. È por isso que os “aspectos ainda não considerados” no licenciamento, a que se refere o Acórdão que obteve vencimento, e que a taxa anual visa cobrir, continuam a ser meramente presumidos, insusceptíveis de individualização primacial de utilidades privadas. Cumpridas as regras técnicas previstas naquela Portaria, o que se deve presumir é que o funcionamento do posto de abastecimento não é fonte de poluição e por isso mesmo não se justifica a cobrança de uma taxa como contrapartida da passibilidade de poluir. Ora, para que o tributo seja qualificado com taxa, não basta a mera possibilidade de existência de uma actividade administrativa ou da prestação do serviço, exigindo-se antes que o serviço ou actividade sejam efectivamente prestados.
Ainda que se admita, como decorre do Acórdão nº 177/2010, que pode ser imposta uma taxa pela remoção do limite jurídico, sem que essa remoção possibilite a utilização de um bem semipúblico, o que parece enfraquecer o sinalagma inerente ao conceito de taxa, mesmo assim não se pode aceitar que a taxa tenha como causa a remoção de um “obstáculo real” ao funcionamento do posto de combustível, pois não há certeza de que, cumpridas todas as normas técnicas, ele seja fonte permanente de poluição. A noção jurídica de taxa, já ampliada por aquele Acórdão, sofre agora uma nova ampliação ao admitir-se a criação de taxas pela remoção de um “obstáculo presumido”.
Lino Rodrigues Ribeiro