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Proc. n.º 548/97
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório:
1. R... interpôs recurso contencioso de anulação, no Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, do despacho do Presidente do Conselho de Administração do INFARMED que determinou a não renovação da autorização de abertura de posto de medicamentos de Arzadubre (concelho de Coimbra) e ordenou o encerramento do mesmo. Por despacho de 18 de Junho de 1996, o juiz do referido Tribunal Administrativo julgou deserto o recurso por falta de apresentação de alegações finais, 'atento o disposto no art. 690º, n.º 2 do C.P.Civil, aplicável ‘ex vi’ do art. 67º, §
único do R.S.T.A.'
2. Inconformada, a recorrente intentou recurso para o Supremo Tribunal Administrativo que, por Acórdão de 27 de Maio de 1997, o julgou improcedente.
3. Ainda inconformada, trouxe a recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, concluindo assim nas suas alegações:
'a. O art. 67º do Regulamento do S.T.A. sofre de inconstitucionalidade material, por ofensa do princípio constitucional da igualdade (arts. 13º e 266º/2 da CRP). b. Na realidade, não há razão material justificativa para na prática se libertar umas das partes - o recorrido - do ónus de alegar e fulminar a outra - o recorrente - com a deserção do recurso por falta da sua alegação. c. A Administração não deve, no processo de recurso contencioso, gracioso ou em geral na suas relações com os particulares receber um tratamento mais favorável do que estes - a tal se opondo, além dos citados artigos da CRP, o CPA, art. 5º, e o art. 3º-A do CPC, aplicável por força do disposto no art. 1º da LPTA. d. A equiparação do recurso contencioso, no qual o recorrente «já alegou» de facto e de direito na petição, ao recurso jurisdicional (recurso da decisão de um tribunal para o tribunal superior) é em si um atentado ao princípio da igualdade, pois submete ao mesmo regime realidades desiguais e que por isso reclamam um tratamento desigual - no processo civil se o recorrente não alegar o tribunal superior fica absolutamente impossibilitado de apreciar o recurso, só aí havendo justificação para a deserção cominada pelo art. 690º. e. O acórdão recorrido aplicou lei inconstitucional, ficando com ela conivente na violação do princípio da igualdade.' Por sua vez, o Presidente do Conselho de Administração do INFARMED concluiu desta forma as suas alegações:
'1ª - O douto Acórdão recorrido fez correcta interpretação e aplicação do artigo
67º do RESTA e do regime constante dos arts. 292º e 690º do CPC. Na verdade,
2ª - É totalmente improcedente a alegada inconstitucionalidade do art. 67º do RESTA por violação do princípio da igualdade.
É que,
3ª - A diferença de tratamento entre o recorrente e a autoridade recorrida no que concerne à falta de apresentação de alegações encontra-se justificada pela concepção objectivista do recurso contencioso como recurso feito a um acto e não como processo de partes.'
4. Corridos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir. II. Fundamentos:
5. Objecto do presente recurso de constitucionalidade é a norma do § único do artigo 67º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, enquanto determina, por remissão para os artigos 292º e 690º do Código de Processo Civil, que na falta de alegações do recorrente o recurso é julgado deserto. O recorrente sustenta que o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, é violado pelo facto de apenas uma das partes no recurso - o recorrente – estar sujeita à deserção do recurso por falta da sua alegação.
É a seguinte a redacção do artigo 67º do Regulamento do STA:
'Artigo 67º
(Vista para alegações) O relator, logo que se encontre nos autos a resposta referida no artigo 62º ou haja decorrido o prazo em que deveria ter sido apresentada, mandará dar vista para alegações, primeiro ao advogado do recorrente e depois ao do arguido, se o houver, e em seguida irão os autos com vista ao Ministério Público.
§ único. À alegação e à sua falta é aplicável o disposto nos artigos 292º e 690º do Código de Processo Civil.' Por sua vez, e para o que para o caso releva, era a seguinte a redacção das disposições do Código de Processo Civil referidas neste § único, antes da reforma da legislação processual civil operada pelos Decretos-Leis n.ºs
329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro (hoje correspondente à redacção dos artigos 291º, n.º 2, e 690º, n.ºs 1 e 3):
'Artigo 292º
(Deserção dos recursos)
1. Os recursos são julgados desertos (...) pela falta de alegação do recorrente.
(...) Artigo 690º
(Ónus de alegar e formular conclusões)
1. O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2. Na falta de alegação, o recurso é logo julgado deserto.
(...)' A transcrita redacção do artigo 690º (e, mesmo, a do actual) louva-se na que o Decreto n.º 38387, de 8 de Agosto de 1951, deu ao correspondente artigo do Código de Processo Civil de 1939.
É, assim, ainda inteiramente pertinente a lição de Alberto dos Reis, lembrando
(no seu Código de Processo Civil anotado, vol. V, Coimbra Ed., Coimbra, 1984, pp. 352 e ss.) que no Código de Processo Civil de 1876 se discutia se o conhecimento do recurso dependia da produção de alegações e que tal questão foi resolvida, no sentido afirmativo, pelo Decreto n.º 2, de 15 de Setembro de 1892, solução que se manteve até à primeira versão do Projecto de Código de Processo Civil elaborado pelo Autor (artigo 679º). Na segunda versão, porém, o correspondente artigo (622º), determinava que o recorrente minutasse o recurso e concluísse a minuta com a indicação resumida dos fundamentos por que pedia a alteração ou anulação da sentença ou despacho, sob pena de o tribunal não conhecer do recurso. Na Comissão Revisora discutiram-se, a este propósito, dois pontos: se devia ser obrigatória a minuta, sob pena de não conhecimento do recurso, e se deviam exigir-se conclusões, acabando o texto final por estabelecer que o tribunal superior não conheceria do recurso na falta de alegação e que a falta de conclusões na alegação seria suprida a convite do juiz, sob pena de não conhecimento do recurso. Dando conta do espírito da norma, escrevia o ilustre Processualista:
'... o artigo teve em vista obrigar o recorrente a submeter expressamente à consideração do tribunal superior as razões da sua discordância para com o julgado, ou melhor, os fundamentos por que o recorrente acha que a decisão deve ser anulada ou alterada, para que o tribunal tome conhecimento delas e as aprecie.' (pág. 357).
6. Pretende o recorrente que recorrente e recorrido ficam, assim, em posição de desigualdade:
'o recorrido pode deixar de produzir alegações sem sofrer com a sua inacção nenhuma espécie de consequência processual enquanto idêntica atitude por parte do recorrente leva a que o processo ‘morra’, deixando o Tribunal, pura e simplesmente, de apreciar a sua pretensão.' Evidentemente que uma tal desigualdade é ela própria resultante da diferente posição que as partes, recorrente e recorrido, assumem no recurso: nenhum sentido faria dar por findo o recurso se o recorrido não produzisse alegações. Num certo sentido, aliás, pode dizer-se que a possibilidade de o recorrido ver proferida uma decisão em que não foram ouvidas as suas razões (porque deixou de cumprir o ónus de produzir alegações) encontra contrapartida no encerramento do processo, caso o recorrente não cumpra o ónus de alegar. Porque em ambos os casos se trata de 'imperativos do próprio interesse', de ónus jurídicos, segue-se que as consequências da não produção de alegações são, ao menos potencialmente, desvantajosas para quem as omite. O que não podem é, evidentemente, ser as mesmas consequências, porque a posição das partes no processo não é idêntica. A alegada desigualdade revela-se, pois, fundada de forma bastante – e, dir-se-á mesmo, necessária, na diferente posição que recorrente e recorrido assumem no recurso.
7. Sustenta, porém, o recorrente que uma tal desigualdade, que 'existe no próprio processo civil', é de natureza diferente da que ocorre no contencioso administrativo:
'aquilo de que o artigo 690º trata é bem diferente do que é regulado no artigo
67º do Reg. S.T.A.
É que, enquanto no C.P.C. se cura das consequências da falta de alegação de recurso jurisdicional (da decisão de um Tribunal para outro tribunal), o Reg. S.T.A., ocupa-se da alegação ‘soit disant’ final do recurso contencioso.' E adiante concretiza a diferença:
'Com efeito, a peça que em processo civil antecede as alegações a que alude o art. 690º é um simples requerimento (não fundamentado) de recurso. Lógico é que, se o recorrente não apresentar a sua alegação, o tribunal ‘ad quem’ fica absolutamente impedido de conhecer as suas razões contra a decisão impugnada. Ao contrário, no contencioso administrativo necessariamente que o recorrente já expôs todos os fundamentos demonstrativos da ilegalidade da acto recorrido pois, por via do artigo 36º, n.º 1, al. D) da LPTA, teve de, logo na petição, de:
‘Expor com clareza os factos e as razões de direito que fundamentam o recurso, indicando precisamente os preceitos ou princípios de direito que considere infringidos.’' Note-se, todavia, que, segundo o artigo 690º, n.º 4 (na actual redacção) do Código de Processo Civil, a mera ausência de conclusões – que não de alegações – também pode bastar para que se não conheça do recurso, se o recorrente não der resposta ao convite do relator – ou dos juízes adjuntos – para apresentar conclusões, as completar ou esclarecer. Bem se vê, assim, que o que funda o ónus de apresentar alegações e de incluir nestas conclusões não é apenas a circunstância de, na falta de alegações ou conclusões, o tribunal de recurso ficar impossibilitado de conhecer as razões do recorrente. É, sobretudo, o intuito de, por um lado, sujeitar as partes a uma disciplina processual que leve ao decaimento de acções irrelevantes ou só emotivamente iniciadas e, de, por outro lado, delimitar os poderes de conhecimento e, consequentemente, de decisão, dos tribunais: vejam-se os n.ºs 2 (primeiro §) e 3 do artigo 684º do CPC (antes e depois da última reforma processual civil) e o novo artigo 684º-A do CPC. O n.º 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil permite mesmo o estreitamento do objecto do recurso após as alegações, designadamente, aquando da produção das conclusões a convite do relator, e o próprio Acórdão recorrido reconhece a possibilidade de as conclusões das alegações poderem 'ir além do peticionado se da instrução do processo resultarem elementos atendíveis que o recorrente não pudesse inicialmente conhecer.' O que, de todo o modo, resulta com clareza é que, mesmo que o Tribunal já possa conhecer em momento anterior as razões do recorrente contra a decisão impugnada,
é nas alegações, e, mais precipuamente, nas suas conclusões, que se delimita o objecto do recurso, quer em processo civil, quer no recurso contencioso de anulação. Não pode, assim, afirmar-se qualquer diferença essencial, para o efeito cominatório da falta de alegações, entre o recurso em processo civil e o recurso contencioso de anulação, resultante do facto de o recorrente já ter exposto na petição de recurso os fundamentos pelos quais impugna a legalidade da acto recorrido. Ora, a recorrente foi notificada para produzir alegações finais no prazo de 20 dias. E, ao omiti-las, inviabilizou tanto o conhecimento da sua pretensão e a definição do objecto do recurso como se, tendo produzido alegações, tivesse enjeitado o convite do relator para juntar conclusões: não de facto, mas sim de direito. III. Decisão:
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade do artigo 67º, § único do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida. Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa