Imprimir acórdão
Processo n.º 426/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em Conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., recorrente nos autos em apreço, interpôs o presente recurso da decisão de pronúncia proferida pelo juiz de instrução criminal de Ponte da Barca que, na sequência de acusação contra o mesmo deduzida pelo Ministério Público, o pronunciou pela prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º e 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal e um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
2. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada LTC.
3. Em sede de exame preliminar foi proferida decisão a rejeitar o conhecimento do objeto do recurso na parte respeitante àquelas normas, no essencial com a seguinte fundamentação:
«6.(…) o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
7.No requerimento de recurso, o recorrente identificou da seguinte forma as normas cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciadas: as “normas dos n.ºs 2 e 4, principalmente, do artigo 302.º do Código de Processo Penal implicitamente aplicadas, necessariamente, no rito do debate instrutório”.
8.A decisão recorrida pronunciou o arguido pelos crimes que lhe eram imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público no âmbito de uma decisão instrutória que, todavia, não procedeu a qualquer interpretação dos preceitos legais em referência. Em vão se procurará em todo o texto que incorpora a decisão instrutória em referência a alusão aos preceitos legais constantes dos n.ºs 2 e 4 do artigo 302.º do CPP.
9.Pretende o recorrente que a aplicação daqueles preceitos resulta implícita e «necessariamente, no rito do debate instrutório então recém-realizado», ferindo o mesmo da nulidade por si arguida (pelo requerimento de fls. 330), no seguimento da realização da audiência do referido debate, nulidade que acarreta também a nulidade da decisão instrutória do mesmo dependente, por inconstitucionalidade material da interpretação aplicada dos n.ºs 2 e 4 do artigo 302.º do CPP. Mais sustenta que a decisão instrutória, ao afirmar, em sede de saneamento do processo, que «Não há nulidades ou outras questões prévias que tenham sido suscitadas ou daa quais cumpra conhecer», aplicou como «válidas, como se não nulas porque não inconstitucionais, qualquer das duas normas jusprocessuais neste processo especificamente pré-arguidas de nulas ipsojure porque materialmente inconstitucionais».
10.Todavia, não é possível extrair da formulação (tabelar) usada na decisão recorrida em sede de saneamento do processo qualquer outro entendimento que não se reconduza à simples afirmação decorrente do seu sentido literal, ou seja, o registo de que não tinham sido suscitadas, nem se verificavam, nulidades ou questões prévias de que cumprisse conhecer. Independentemente da conformidade daquela afirmação com o que resultava dos autos (o que não cabe aqui apreciar), certo é que a decisão recorrida não conheceu de nenhuma nulidade, designadamente a nulidade decorrente da interpretação dada ao disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 302.º do CPP no âmbito da condução do debate instrutório.
11.E sendo assim, inevitável será concluir que a decisão recorrida não aplicou, efetivamente, os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pelo recorrente, não se cumprindo, pois, este requisito legal para a admissão do recurso.
12.Termos em que, independentemente da falta de verificação ainda de outros pressupostos de conhecimento do recurso de inconstitucionalidade interposto, na falta do preenchimento do requisito processual em causa, não é possível conhecer do recurso».
5. Não concordando com aquela decisão, na parte em que indeferiu o conhecimento do objeto do recurso, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, sustentando a reclamação essencialmente nos seguintes fundamentos:
“11. Visto o que antecede, forçoso será concluir, se bem se julga, que o direito processual fundamental controvertido foi in casu grosseiramente, deliberada e conscientemente, violado pela, ipso facto, não de todo meritíssima Juíza de instrução a quo, ao - contra essa garantia de valor constitucional assente, inclusive, no ordenamento português - aplicar na audiência de debate instrutório oportunamente realizada, implícita mas inequivocamente, o rito preceituado no artigo 302º, designadamente nos respetivos n.º 2 e n.º 4, do Código de Processo Penal,
12. ou seja: dúvidas nenhumas subsistirão de que o Recorrente - advogado in casu autodefendente - em causa foi vítima, em sede de debate instrutório, de uma práxis judicial materialmente inconstitucional. Questão colaça, bem distinta, no entanto, é a de saber se nesse transe judiciário ocorreu, ou não, uma concomitante inconstitucionalidade normativa, conforme alegado no requerimento de interposição do presente recurso e até antes e, entretanto, contestado na sumária Decisão preliminar sub judicio. Isto, portanto, o que cabe agora aqui apreciar, já de seguida.
13. Nos termos do disposto no artigo 307.º, n.º 1, do Código citado, o despacho de (não) pronúncia pode ser fundamentado «por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas (...) no requerimento de abertura da instrução», impondo o n.º 1 do artigo seguinte que o seu autor, se «tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena», pronuncie este «pelos factos respetivos», não sem antes, como manda o n.º 3 deste mesmo artigo, «começar por decidir das nulidades (…) de que +possa conhecer». Ora,
14. face a estas coordenadas legislativas, o que é que foi feito constar da decisão instrutória sob exame nesta sede por alegada inconstitucionalidade normativa, o que é que nesse ato judicial foi decidido? Foi decidido, a final, «pronunciar o Arguido pela prática de um crime de injúria agravada», porque, entre ouros motivos, «inexiste matéria factual alegada em sede de requerimento de instrução, o qual apenas contém conclusões técnico-jurídicas» (in 3.2.2), depois de (in 2) se declarar que «Não há nulidades (…) das quais cumpra conhecer», estando embora atestado ab initio (in 1) que «requereu o Arguido a sua auto-representação em juízo prescindindo da presença de Defensor / tendo o Tribunal concluído pela sua inadmissibilidade legal». Ou seja,
15. a alegação, em sede.de facto, deduzida no requerimento da instrução (in II.4) de que, verbi gratia, o próprio Conselho Superior da Magistratura não vislumbrou no caso ofensa alguma ao Assistente na censurada peça do Arguido visando determinada «Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação do Porto» foi tida por “inexistente”, somente porque o próprio Arguido foi impedido de intervir no debate, mais concreta e precisamente, proibido de aí no legítimo uso da palavra pela sua humana pessoa! - formular «as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre as questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória»,
16. isto, incontrovertivelmente, porque o ritual ditado pelos comandos retrógrados do n.º 2 e, sobretudo, do n.º 4 do sindicado artigo 302.º do Código de Processo Penal - absurda, aberrantemente, contra, nunca será de mais repeti-1o, a garantia jus-internacional, supranacional e constitucional portuguesa da autodefesa judiciária do acusado em processo penal - não admite seja ao arguido em Portugal concedido o basilar direito pleno à palavra. Perante isto, esta notória falácia, falência, do Estado de direito democrático nacional, a declaração preambular na mesma decisão instrutória de que «não há nulidades a conhecer» revela, irreversivelmente, a (re)aplicação nestes autos das normas jusprocessuais penais apontadas segundo a pré-arguida dimensão inconstitucional que, irredutivelmente, as torna normas nulas ipso jure. Pois sobre isto,
17. precisamente, que se diz na Decisão Sumária sob reclamação? Que, em súmula nada descaracterizadora, «a decisão recorrida não aplicou, efetivamente, os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pelo recorrente», porquanto «não conheceu de nenhuma nulidade, designadamente a nulidade da interpretação dada ao disposto nos n.ºs. 2 e 4 do artigo 302.º do CPP, no âmbito da conclusão do debate instrutório», visto que no se encontra «em todo o texto que incorpora a decisão instrutória em referência a alusão aos princípios legais constantes dos n.ºs. 2 e 4 do artigo 302.º do código de Processo Penal». Este,
18. portanto, o singelo argumento encadeado que cumpre fulcralmente analisar no presente ato impugnativo. Desde logo, a fazer notar que – conforme se alcança já do sumário, exempli gratia, do Acórdão n.º 388/87, de 22-07-1987 desse Tribunal Constitucional: cfr. I-b) - os recursos desta espécie são admissíveis desde que as normas questionadas «hajam sido efetivamente “aplicadas” pela decisão recorrida, ainda que de modo, implícito, em termos de constituírem a sua mesma ratio decidendi, e não um qualquer seu obiter dictum» (sublinhado desta citação),
19. para de pronto se resolver, em três tempos, a questão-de-direito constitucional suscitada: primo - nada, absolutamente nada, em todo o texto que incorpora a decisão instrutória em referência permite inferir que o sentido da mesma se teria mantido caso o advogado “acusado” tivesse sido autorizado a defender-se pro se, em ordem a expor categoricamente ao Tribunal as razões de jure et de facto que lhe assistem, pelo que não pode tal ato judicial, em absoluto, deixar de integrar como ratio decidendi, inclusivamente, a razão por que tal autorização, decidida e decisivamente, lhe não foi concedida; e,
20. quanto a esta: secundo - tal razão recte, desrazão – assenta, única e exclusivamente, insofismavelmente, na acrítica obediência judicial ao, não obstante inválido, comando conjugado dos n.ºs. 2 e 4 do artigo 302.º do CPP, que expressamente excluem o arguido, muito embora sendo nisso o principal interessado, do elenco dos sujeitos processuais a quem o juiz de instrução «concede a palavra»,
21. donde: tertio – resulta completamente inconcebível que a Juíza de instrução a quo - confrontada naquela audiência, demais a mais, com a declaração do Arguido que este reiteraria na representação que no mesmo dia, 19 de Abril transato, enviou ao Tribunal por correio eletrónico, escrito que, por via de dúvidas, vai reproduzido no anexo Doc. A – possa ter dado seguimento ao preceituado debate instrutório sem proceder, ainda que só mentalmente, implicitamente, portanto, a um exame diagnóstico de conformidade constitucional, necessariamente, daquelas duas normas cuja nulidade por causa de inconstitucionalidade flagrante este tão veementemente deste sempre ali apontou. À bons entendeurs, mais palavras para quê?”.
6. Notificado da reclamação, o Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência da mesma por verificação do fundamento da decisão reclamada.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Nos presentes autos foi proferida decisão, em sede de apreciação liminar, que rejeitou o conhecimento do objeto do recurso com fundamento em falta de aplicação da noma questionada na decisão recorrida.
Na reclamação ora apresentada o recorrente, discordando da decisão proferida de não conhecimento do recurso, insiste na invocação da aplicação implícita, pela decisão recorrida, das normas impugnadas.
Na decisão reclamada são explanados os fundamentos da rejeição do recurso. Ali se indicam as razões pelas quais se entendeu que o pedido de apreciação de constitucionalidade formulado no recurso se reporta a uma interpretação dos preceitos legais indicados (artigo 302.º, n.os 2 e 4 Código de Processo Penal) que não foi aplicada (nem expressa nem implicitamente) na decisão recorrida. O invocado na reclamação não infirma a razão do decidido na decisão reclamada.
E sendo assim, confirma-se a falta de verificação do requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade indicado na decisão reclamada, que deve, pois, ser confirmada.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 28 de março de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral.