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Proc. nº 344/94
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, L... intentou, em 26 de Abril de 1983, acção com processo ordinário contra M..., pedindo que seja reconhecido o seu direito a metade das quantias depositadas em certas instituições de crédito, em nome de J..., pai da ré, condenando-se a ré a entregar à autora a parte de tais quantias que já tenha recebido. Fundamentou o seu pedido no facto de ter vivido maritalmente com J..., sendo as quantias depositadas provenientes de economias comuns.
Após sucessivos adiamentos, realizou-se em 3 de Maio de 1990 a audiência de julgamento (fls. 313). Não compareceu o mandatário da autora, que justificou a falta através de telegrama enviado ao tribunal. Foi apesar disso determinada a realização da audiência, por, nos termos do artigo 651º, nº 1, do Código de Processo Civil, não ser admitido novo adiamento, excepto em caso de impossibilidade de constituição do colectivo.
O Juiz Presidente do Círculo de Portimão, por sentença de 29 de Maio de 1990 (fls. 327), julgou improcedente o pedido formulado pela autora, dele absolvendo a ré.
2. Em requerimento de 20 de Junho de 1990, L... interpôs recurso de agravo e de apelação: recurso de agravo, do despacho de 3 de Maio de 1990, que determinou a realização da audiência de julgamento sem que o seu mandatário estivesse presente; recurso de apelação, da decisão final proferida em 29 de Maio de 1990, que lhe foi desfavorável. No requerimento de interposição dos recursos, a recorrente informou que só através da notificação da sentença de 29 de Maio de 1990 tomou conhecimento do despacho do Juiz que determinou a realização da audiência de julgamento.
O Tribunal da Relação de Évora decidiu não tomar conhecimento dos recursos, por extemporaneidade na sua interposição (acórdão de 4 de Novembro de
1993, fls. 396, tendo sido corrigida por despacho de fls. 399 a data nele aposta inicialmente). O tribunal justificou assim a sua decisão:
'O artigo 685º, nº 2, do CPC determina que o prazo para recurso de despacho oral reproduzido no processo corre do dia em que foi proferido, se a parte esteve presente ou for notificada para assistir ao acto. Na segunda hipótese, que a lei equipara à presença da parte, o legislador estabelece para a parte que estava notificada mas que não esteve presente, o
ónus de se informar do que aconteceu nesse acto.
É o que resulta do contraste entre o nº 2 e o nº 1 desse artigo, posto aliás em evidência pela parte final do nº 2, ao dizer que se a parte não esteve presente, o prazo corre desde a notificação. Na verdade, se a parte foi avisada de que ia ter lugar um acto judicial para o qual foi convocada, teria de partir do princípio, não só de que tal acto ia ter lugar, como aí poderiam ser proferidos despachos dos quais podia resultar alguma decisão desfavorável. Para a lei, tudo se passa, na hipótese do nº 2, como se a parte estivesse presente, daí não ser necessário informá-la do que ali se passou com uma notificação (posterior). A lei presume, sem admissão de prova em contrário e porque entendeu que avisado antecipadamente do acto, o mandatário se deve informar do que ali suceder, que este teve conhecimento dos despachos proferidos na audiência para a qual foi convocado.'
3. L... agravou deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas suas alegações, invocou a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil:
'Será exigível à parte que «adivinhe» que o julgamento não foi adiado, e que tenha que interpôr recurso daquela decisão a contar da data em que o mandatário faltou? Daí que se entenda, repete-se, que a disposição do artº 685º, nº 2 do C.P.C. só deva ser aplicável aos casos em que a parte deva prever a possibilidade de uma decisão oral a proferir no acto da diligência ou do julgamento. Questiona-se, aliás, a constitucionalidade da referida disposição do artº 685º, nº 2, do C.P.C., na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, ou seja, no sentido de que a mesma é aplicável a todos os casos em que haja decisões orais proferidas em diligências nas quais não era previsível, nem exigível à parte que tais decisões fossem proferidas. O artº 20º, nº 1 da Constituição da República a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos. Colocar as partes perante a incerteza e a insegurança que resulta da interpretação consubstanciada no acórdão recorrido põe em causa o acesso ao direito e aos tribunais consagrado na referida disposição constitucional. Assim, também como fundamento deste recurso, arguida fica a inconstitucionalidade material do artº 685º, nº 2, do C.P.C., na invocada interpretação, e por violação do artº 20º, nº 1, da Constituição da República.'
O Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo, confirmando inteiramente o acórdão da Relação de Évora e desatendendo a argumentação da recorrente a propósito da alegada inconstitucionalidade do artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil (acórdão de 23 de Junho de 1994, fls. 422). Na óptica do Supremo Tribunal,
'[...] o sentido dado a tal preceito [artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil], nada tem a ver com o direito fundamental consagrado no artº 20º, nº 1 da Constituição: o direito da agravante ao «acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos» não é violado com o facto de a lei ordinária ficcionar a presença em actos judiciais da parte devidamente notificada para o mesmo. A parte sabe que a lei dá igual tratamento à parte presente no acto e à que, notificada devidamente para o mesmo, não comparece. Se sabe que a lei a considera presente no acto, o que tem a fazer, para defesa dos seus interesses, será ou diligenciar para estar efectivamente presente (através de mandatário judicial constituído ou substabelecido) ou, na oportunidade imediata, informar-se do que se passou no acto.'
4. Inconformada, veio a recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo que seja apreciada
'a constitucionalidade do artº 685º, nº 2, do C.P.C., na interpretação de que aquela norma é aplicável a todos os casos em que haja decisões orais proferidas em diligências em que não era previsível, nem exigível à parte, que previsse que as mesmas fossem proferidas. A inconstitucionalidade foi invocada nas alegações de agravo, e emerge da violação do disposto no artº 20º, nº 1, da Constituição da República.'
Em alegações, a recorrente reiterou a sua argumentação, chamando a atenção para o facto de que a interpretação dada no acórdão recorrido ao artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil deixa a parte 'totalmente à mercê de decisões
«surpresa» proferidas em diligências orais, sobretudo quando [...] não seja previsível que as mesmas sejam proferidas'. Sustentou que 'impor à parte, sempre que há uma diligência oral a que ela não comparece, que tenha que ir ver o que foi exarado em acta, constitui ónus insuportável e incomportável com o consagrado no art. 20º nº 1 da C.R.' e que 'é evidente a «violência» da «ficção» objecto do nº 2 do art. 685º do C.P.C.'. A recorrida concluiu assim as suas alegações:
'[...] m) O direito ao «acesso ao direito e aos tribunais» para defesa dos direitos da Recorrente não é violado com o facto a lei ordinária ficcionar a sua presença em actos judiciais da parte devidamente notificada para o mesmo. n) Assim, o sentido dado ao citado preceito do Código de Processo Civil nada tem a ver com o direito fundamental consagrado no artº 20º, nº 1 da Constituição da República, e por isso, não existe a alegada inconstitucionalidade do mesmo.'
II
5. O objecto do presente recurso é a norma do artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil (versão de 1961, neste ponto inalterada pelo Código de Processo Civil revisto), cujo teor é o seguinte:
'2. Tratando-se de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo, o prazo [para interposição de recurso] corre do dia em que foram proferidos, se a parte esteve presente ou foi notificada para assistir ao acto; no caso contrário, o prazo corre nos termos do nº 1'.
A recorrente considera que a norma em causa viola o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Como o Tribunal Constitucional disse no acórdão nº 271/95 (publicado no Diário da República, II Série, nº 167, de 21 de Julho de 1995, p. 8370 ss), e tem reafirmado em jurisprudência constante, quanto à caracterização da garantia de acesso ao direito e aos tribunais:
'Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo, baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal. Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual «a proibição da indefesa», que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, p. 82 e 83). Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras.'
À luz do sentido genérico assim atribuído ao direito fundamental de acesso aos tribunais, que implica a 'proibição da indefesa', a norma questionada pela recorrente, na interpretação que lhe foi dada na decisão impugnada, não sofre de qualquer vício de inconstitucionalidade.
A solução consagrada no nº 2 do artigo 685º do Código de Processo Civil não constitui limitação ou restrição do direito de interpor recurso. A norma fixa tão somente o momento a partir do qual se conta o prazo de oito dias
[na versão actual, de dez dias] para interposição do recurso de decisões proferidas oralmente: a data em que foram proferidas, desde que as decisões estejam reproduzidas no processo e desde que a parte tenha estado presente ou tenha sido notificada para assistir ao acto.
É clara a preocupação da lei no sentido de imprimir celeridade ao andamento do processo. O interesse constitucional na celeridade na administração da justiça é hoje claramente assumido no artigo 20º, nºs 4 e 5 da Lei Fundamental. A Constituição sublinha a necessidade de assegurar tutela 'em prazo razoável' e impõe ao legislador a tarefa de construir modelos de 'procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade'.
A norma do artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil assenta numa presunção de conhecimento de decisões, desde que a parte ou o seu mandatário tenham sido devidamente notificados para a diligência processual no
âmbito da qual os despachos ou sentenças foram oralmente proferidos. Ou, mais propriamente, a disposição estabelece um ónus para as partes de se informarem sobre o conteúdo de certas decisões.
É o interesse público que aqui sobreleva, a necessidade de não atrasar o prosseguimento dos autos com o decurso dos prazos de notificação às partes das decisões proferidas oralmente, em diligências em que estiveram presentes
(ficando desde logo cientes do seu conteúdo) ou para as quais foram notificadas
(tendo nesse caso o ónus de se informar sobre o respectivo conteúdo). A mesma presunção de conhecimento é adoptada pela lei processual civil no caso das notificações dos mandatários judiciais por via postal. De acordo com o artigo 254º, nº 2, do Código de Processo Civil, tais notificações consideram-se feitas no dia em que foi assinado o aviso de recepção – independentemente de quem assine o aviso, uma vez que a carta é dirigida para a morada indicada no processo pelo mandatário. E nem por isso se pode afirmar que a presunção de que o mandatário foi efectivamente informado do conteúdo da notificação restringe o direito de acesso à justiça, pois supõe-se, razoavelmente, que, dirigida a notificação para o escritório do mandatário, ela chegou de facto ao seu conhecimento. A este respeito, ponderou o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 13/99 (ainda inédito)
'[...] a regulamentação jurídica da notificação dos actos processuais mediante via postal procura articular flexibilidade e simplificação com a garantia da efectiva comunicação: o sistema, como se observa no preâmbulo do Decreto-Lei nº
329-A/95, em termos aqui inteiramente convocáveis, só operará validamente se e na medida em que o destinatário do acto não alegue nem demonstre que não chegou a ter conhecimento do acto por facto que lhe não seja imputável.'
7. No caso em apreço não existe qualquer 'violência', como sustenta a recorrente, nem sequer uma 'decisão surpresa'. A exigência de que as decisões proferidas oralmente estejam reproduzidas no processo – pressuposto de aplicação do regime do artigo 685º, nº 2, do Código de Processo Civil – acautela suficientemente o conhecimento do conteúdo dos actos, de modo que a parte possa exercer o contraditório, maxime, o direito de interpor recurso. Apenas se exige
à parte faltosa que seja diligente, suprindo a sua ausência no acto processual para o qual se encontrava devidamente notificada.
Tal como afirmou o Tribunal da Relação de Évora no acórdão de 4 de Novembro de 1993 que, nestes autos, rejeitou o recurso interposto por L..., com fundamento em extemporaneidade:
'Não é apenas o Tribunal que tem que colaborar com a parte, mas também esta parte, através do seu mandatário, tem de colaborar com o Tribunal, informando-se do conteúdo do acto judicial para o qual foi convocada. E se o advogado não pode estar presente no acto, isso não o desculpa de, depois disso, não se ter podido informar sobre o que ocorrera na audiência.'
8. Conclui-se, assim, que não há na solução legal em apreciação qualquer situação de 'indefesa' do cidadão quanto a uma tutela jurisdicional efectiva. Embora tendo como objectivo acelerar a marcha processual, a norma do artigo
685º, nº 2, do Código de Processo Civil contém as exigências suficientes para que a parte não fique desprovida de meios que lhe permitam exercer o seu direito de recorrer de decisões proferidas oralmente. Em primeiro lugar, porque o prazo de interposição do recurso só começa a correr a partir do dia em que a decisão foi proferida, se a parte tiver sido notificada para assistir ao acto processual; em segundo lugar, porque é pressuposto de aplicação do regime a possibilidade do conhecimento das decisões através da consulta dos autos.
Independentemente da natureza que se atribua ao direito da parte à notificação, a norma em apreço não é desconforme com o princípio constitucional do acesso ao direito, pois que, existindo mandatário judicial – como acontece no caso dos autos – a sua notificação para a audiência de julgamento preenche o direito da parte à notificação e assegura-lhe o exercício do contraditório
(neste sentido, o já citado acórdão nº 271/95).
III
9. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 685º do Código de Processo Civil, por considerar não existir violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa; b. Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, no que se refere à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Abril de 1999- Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa