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Proc. nº 693/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Nestes autos vindos do 10º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, em que é recorrente a Companhia de Seguros M..., SA, e recorrido o Hospital de S..., elaborou o Relator sucinta exposição escrita do seu parecer ao abrigo do nº 1 do art. 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), na redacção anterior à entrada em vigor da Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, onde concluía, em síntese, não dever conhecer-se do objecto do recurso por a recorrente não ter suscitado, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
2 - Em resposta veio a recorrente - depois de suscitar e defender a aplicação imediata ao presente recurso das alterações introduzidas à LTC pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, com a consequência de valer a sua resposta à Exposição do Relator como a reclamação para a conferência a que se refere a redacção actual do nº 3 do art. 78º-A daquela lei - contestar a conclusão de que não teria suscitada, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade dos artigos
2º, nº 2, alínea a) e 4º, nº 1, do Decreto-Lei 194/92, de 8 de Setembro, atendo-se para tanto, em síntese, à seguinte fundamentação: a) por um lado alega não ser verdade, como se conclui na Exposição do Relator, que não tenha sido suscitada na petição de embargos, ainda que implicitamente através da referência aos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 760/95 e
761/95, a questão da inconstitucionalidade das normas supra referidas; b) ao que acresce, no seu entender, que mesmo que assim não se entenda o recurso continua a ser admissível, na medida em que a recorrente invocou a questão da inconstitucionalidade no pedido de reforma da sentença, o que corresponde a uma forma processual e atempadamente adequada de invocar a inconstitucionalidade, uma vez que o regime da reforma da sentença previsto nos artigos 669º e seguintes do novo Código de Processo Civil permite ainda ao juiz modificar do ponto de vista substancial - e não meramente processual - o que ditou na sentença, pelo que, dessa forma, o poder jurisdicional do juiz a quo não se esgotou na sentença, mas na reforma da mesma. Nestes termos, tendo a questão da inconstitucionalidade sido suscitada ainda antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal, entende a recorrente que o foi, de acordo com o que é a própria jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, tempestivamente. Antecipando desde já a conclusão que de seguida se procurará fundamentar entende o Tribunal que o relato feito na Exposição não se mostra minimamente beliscado pela resposta apresentada pela recorrente e antes sintetizada nos seus termos essenciais. Vejamos porquê.
3 - Quanto à questão prévia suscitada pela recorrente, no sentido da possibilidade de aplicação imediata da lei nova, entende o Tribunal que essa aplicação imediata não implica, como a recorrente parece sugerir, a transformação ex lege de uma sucinta exposição escrita do parecer do Relator na decisão sumária a que se refere hoje o nº 1 do art. 78º-A, na redacção da Lei
13-A/98, de 26 de Fevereiro, desde logo, porque essa exposição não é uma decisão. Saliente-se, contudo, que desta interpretação não resulta, pelo contrário, qualquer diminuição das garantias de defesa da recorrente, uma vez que a decisão final sobre a admissibilidade do recurso será assim decidida não em conferência - como poderia ser, se se admitisse a solução proposta pela recorrente - mas pelo pleno da secção.
4 - Quanto à questão de saber se a inconstitucionalidade dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º, nº 1, do Decreto-Lei 194/92, de 8 de Setembro, foi eficazmente suscitada na petição de embargos, é manifesto, pela simples leitura do art. 38º da petição de embargos - única parte daquela peça processual onde a recorrente pretende fazer suportar a tese de que suscitou a questão de constitucionalidade daqueles preceitos - que o não foi. Constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita, de forma processualmente adequada, durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver. Assim, quem pretenda suscitar a questão de constitucionalidade de uma norma jurídica durante o processo, de forma a poder depois, em sede de recurso, suscitar essa mesma questão perante o Tribunal Constitucional, tem o ónus de o fazer de uma forma clara e perceptível
(nesse sentido, entre muitos outros, os acórdãos nºs 269/94, 102/95 e 595/96 in Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994, II Série, de 17 de Junho de 1995 e II Série, de 22 de Julho de 1996, respectivamente). A este propósito escreveu-se no acórdão do nº 560/94 (in Colectânea de Acórdãos do tribunal Constitucional, 29º vol., pp. 101), 'Bem se compreende que assim seja, pois que, se o
tribunal recorrido não for confrontado com a questão da constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo. A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de inconstitucionalidade não é pois contrariamente ao que dizem os recorrentes -, uma mera questão de forma secundária. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeira julgamento) de tal questão.' No caso concreto, o recorrente limita-se a referir, no art. 38º da petição de embargos - para sustentar a tese que procura nesse ponto demonstrar, no sentido de que '... a alegação, em embargos de executado, pela seguradora, da inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do seu segurado, veio lançar o ónus da prova da verificação desses pressupostos sobre a entidade exequente, face ao disposto no art. 342º nº 1 do CC ...' - que ' este tem sido o entendimento unânime da Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores sempre que apreciam a força probatória das certidões de dívida hospitalar (cfr. ainda Ac. nº 760/95, Do Tribunal
Constitucional de 20.12.95, in DR II série, nº 28 de 2.2.96 e Ac. nº 761/95, do mesmo Tribunal, também de 20.12.95, ibidem).' Ora, como resulta evidente da transcrição feita do art. 38º da petição de embargos, na realidade do que se trata ali não é da suscitação, ainda que de forma pouco clara ou dificilmente perceptível - e só por si tal já obstaria, como se referiu antes, ao conhecimento do recurso -, da inconstitucionalidade dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º, nº 1, do Decreto-Lei 194/92, de 8 de Setembro, ou de qualquer outra norma, mas da não suscitação pura e simples de qualquer problema de constitucionalidade. A referência que o recorrente faz nesse artigo da petição de embargos a duas decisões do Tribunal Constitucional não surge, na linha do raciocínio que o próprio recorrente está nessa altura a desenvolver, na sequência e como suporte de uma eventual tese no sentido da inconstitucionalidade dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º, nº 1, do Decreto-Lei
194/92, de 8 de Setembro - aliás, dificilmente se percebe como poderia sê-lo, uma vez que nessas decisões este Tribunal se pronunciou exactamente no sentido da não inconstitucionalidade daqueles preceitos - mas como suporte da tese de que '... a alegação, em embargos de executado, pela seguradora, da inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do seu segurado, veio lançar o ónus da prova da verificação desses pressupostos
sobre a entidade exequente, face ao disposto no art. 342º nº 1 do CC...' (art.
37º da petição de embargos). Em suma: é manifestamente improcedente a alegação de que a questão da constitucionalidade dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º, nº 1, do Decreto-Lei
194/92, de 8 de Setembro, já havia sido suscitada, de forma processualmente adequada, na petição de embargos, designadamente no seu artigo 38º.
5 - E também não procede a alegação de que a suscitação da questão da inconstitucionalidade feita no pedido de reforma da sentença, ainda se pode, no caso, considerar feita durante o processo, para efeitos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC. É certo que na sequência das alterações legislativas introduzidas ao Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 329º-A/95, de 12 de Dezembro, se alargaram os termos da possibilidade de reforma da sentença, permitindo-se hoje inclusivamente, se verificados determinados pressupostos, a alteração da própria decisão de mérito. Só que, e é isto que o recorrente parece esquecer, a possibilidade de reforma da sentença por parte do tribunal a quo depende da verificação dos respectivos pressupostos do instituto que, como decidiu, aliás, o próprio tribunal recorrido, no caso manifestamente não se verificam.
Nos termos do nº 2 do art. 669º do Código de Processo Civil só é possível a reforma da sentença, designadamente em termos de permitir a alteração da decisão de mérito, quando (A) tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; ou, (B) constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração. Ora, é manifesto que nada disto se verifica no caso que é objecto dos autos. A eventual aplicação de uma norma inconstitucional não configura (ressalvada alguma hipótese anómala e excepcional, como seja a da inexistência jurídica da norma) uma situação de manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos. Aliás, tal será tanto mais evidente quando, como é o caso dos autos, o Tribunal Constitucional, sempre que chamado a pronunciar-se sobre a questão da constitucionalidade das normas alegadamente inconstitucionais, se tenha pronunciado no sentido da sua não inconstitucionalidade (nesse sentido, por exemplo, os próprios acórdãos nºs 760/95, de 20 de Dezembro de 1995, e 761/95, da mesma data, in Diário da República II série, de 2 de Fevereiro de 1996, que o recorrente cita na petição de embargos). E, não se verificando os pressupostos de que depende a possibilidade de reforma da sentença, designadamente quanto à decisão de mérito, vale a regra do nº 1 do art. 666º do Código de Processo Civil, segundo a qual, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. E, tendo a questão da constitucionalidade dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º, nº 1, do Decreto-Lei 194/92, de 8 de Setembro, apenas sido suscitada já depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, ela não foi, de acordo com o que é desde há muito jurisprudência assente neste tribunal, e que o recorrente nas suas alegações de recurso demonstra conhecer nos seus aspectos essenciais, suscitada durante o processo para efeitos da al. b) do nº 1 do art.
70º da LTC.
6 - Assim, pelo essencial das razões constantes da exposição do relator de fls.
37 e 38 a que a recorrida não apresentou qualquer resposta dentro do prazo legal, e que a resposta da recorrente, como se procurou demonstrar, em nada abala, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por a recorrente não ter suscitado, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 3 de Junho d 1998 José de Sousa e Brito Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa