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Processo nº 381/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. Na execução movida por CRÉDITO PREDIAL PORTUGUÊS, S.A., contra JOÃO ADRIANO CAMACHO DA CRUZ e MIRALDINA COMES CANDEIAS CRUZ no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Setúbal, o Estado Português veio reclamar a quantia de 50 353$00, relativa ao I.R.S. de 1996, invocando privilégio imobiliário geral sobre o imóvel que foi penhorado na mesma execução, por haver sido dado em hipoteca, devidamente registada, para garantia do crédito exequendo. O crédito foi considerado reconhecido, por não ter sido impugnado. Ao proceder à graduação de créditos, o Tribunal, invocando a jurisprudência constante dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2000 e 354/2000,
'relativos aos privilégios creditórios das contribuições para a segurança social', decidiu afastar, por inconstitucionalidade, a aplicação da 'norma constante do art. 104º do C.I.R.S., interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C. Civil'. Consequentemente, graduou o crédito do Estado a seguir ao do exequente. Em seu entender, os argumentos em que se baseou o julgamento de inconstitucionalidade proferido no acórdão citado em primeiro lugar, que transcreve na parte que considerou relevante, 'podem ser aplicados, mutatis mutandis, igualmente ao privilégio imobiliário geral contido no art. 104º do C.I.R.S. – não só o crédito em causa está sujeito ao princípio da confidencialidade tributária, impossibilitando os particulares de averiguar se as entidades com quem contratam são devedoras ao Estado, como a sua amplitude, sem qualquer necessidade de conexão entre o imóvel onerado e a garantia,
‘implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico’. Para além de igualmente não se encontrar qualquer razão para esta desproporcionada lesão, na tutela dos interesses do Estado e no destino dos impostos que deixou de receber, pois dispõe dos mais variados meios para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros'.
2. Desta sentença recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. O recurso foi admitido.
3. Apenas o Ministério Público apresentou alegações, nas quais se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada. Após salientar que está em causa no presente recurso a norma na interpretação perfilhada pela decisão recorrida, 'o que (...) tornará menos adequada a prolação de ‘decisão interpretativa’, nos termos consentidos pelo artigo 80º, n.º 3, da Lei n.º 28/82', o Ministério Público veio sustentar procederem as razões que determinaram os juízos de inconstitucionalidade proferidos nos acórdãos 160/00, 354/00 e 261/00, nos seguintes termos:
'Comparando os regimes constantes do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 e do artigo 104º do CIRS, verifica-se que:
· títular do privilégio creditório em causa é – não a previdência – mas o próprio Estado, visando os créditos por ele garantidos a satisfação de necessidades ligadas ao sistema fiscal (e não aos fins da segurança social):
· o privilégio creditório outorgado à Fazenda Pública apenas abarca os créditos do IRS (e respectivos juros de mora, nos termos do artigo 734º do Código Civil) relativos aos últimos três anos (enquanto, no caso da Previdência tal privilégio era concedido independentemente da data da constituição do crédito);
· tal privilégio incide sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou acto equivalente (enquanto o privilégio concedido à Previdência onera todos os imóveis existentes no património das entidades devedoras à data da instauração da execução). Consideramos, porém, que tais circunstâncias diferenciadoras não são susceptíveis de pôr em causa o juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão n.º 160/2000. Quanto à natureza dos débitos tutelados (reforçadamente) através dos privilégios creditórios em causa, importa notar que as finalidades do sistema de segurança social são identicamente objecto de tutela constitucional (artigo 63º da Constituição da República Portuguesa) – o que não impediu o Tribunal Constitucional, nos acórdãos referidos, de considerar que tais finalidades não podem postergar o princípio da confiança. Ou seja: o facto de, no caso dos autos, os créditos tutelados através do direito real de garantia previsto no artigo 104º do CIRS terem como finalidade a realização dos fins previstos no artigo 103º da Constituição da República Portuguesa não deverá conduzir à conclusão de que, na sua realização, é lícito postergar o princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, aniquilando injustificadamente direitos adquiridos e registados pelos cidadãos. E as restantes diferenças de regime – que traduzam uma (ligeiramente) menor
'agressividade' do crédito privilegiado para com tais direitos de terceiros
(expressa na limitação temporal do privilégio e na sua incidência sobre os bens existentes no património do devedor apenas na data da penhora) – não alteram, a nosso ver, em termos bastantes, as razões e motivos que ditaram o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo acórdão n.º 160/00.' E concluiu nestes termos:
'1º O privilégio imobiliário geral conferido à Fazenda Pública pelo artigo 104º do CIRS – interpretado em termos de conferir àquela um direito real de garantia, dotado de sequela e prevalência, nos termos do artigo 751 do Código Civil, sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora à data da penhora ou acto equivalente, garantindo os créditos de IRS referentes aos três últimos anos – oponível, independentemente de registo, a quem adquira e registe hipoteca sobre os mesmos bens, viola, em termos intoleráveis, o princípio da confiança,
ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
2º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa constante da decisão recorrida.'
4. É o seguinte o texto do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (na versão aplicável, anterior à que resultou do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, e correspondente ao actual artigo 111º): Artigo 104º
(Privilégios creditórios) Para pagamento do IRS relativo aos últimos três anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente. O objecto deste recurso é, então, a norma constante deste artigo 104º na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral por ela concedido à Fazenda Nacional prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil. No seu acórdão n.º 160/00, este Tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
'5. - É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos 2º do Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 pretendeu dar alguma preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748º do Código Civil. No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos. Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751º, designadamente a hipoteca – que é o caso dos autos. Não se questiona que face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas – como é o caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º –, se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da ´’par conditio creditorum’ (como se concluiu no do já citado acórdão 688/98), nem, tão pouco, que se atribua um regime procedimental específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cfr. acórdãos 51/99 publicado no Diário da República, IIª série, de 05/04/99, e 281/99, inédito).
6. - A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não pode, no entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio imobiliário geral.
Com efeito, o princípio da protecção da confiança,
ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e 625/98, publicados no Diário da República, II Série, de
26 de Dezembro de 1990 e 18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág. 333; Isabel Pereira Mendes, 'Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial' in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; Paula Costa e Silva, 'Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente', in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, 1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).
Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece. Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico. Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80. A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República.'
5. Pesem embora as diferenças de regime existentes entre o privilégio concedido pelas normas objecto de julgamento neste acórdão nº 160/00 e aquele que o artigo
104º confere à Fazenda Pública, procedem, também aqui, as razões que levaram
àquele julgamento de inconstitucionalidade. Com efeito, em ambos os casos a lei garante com um privilégio imobiliário geral
(portanto, onerando todos os imóveis do património do devedor, e não sujeito a registo) um crédito, desprovido de qualquer conexão com aqueles imóveis, no caso da segurança social, não necessariamente com eles relacionado, no caso presente
(diferentemente do que se verifica com os privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos 743º e 744º do Código Civil), de que é titular uma entidade pública, que visa 'permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas' (acórdão nº 160/00); em ambos os casos a norma que o prevê foi interpretada no sentido de tal privilégio ser dotado de preferência sobre direitos reais de garantia, da titularidade de terceiros, sobre os bens onerados; e em ambos os casos são atingidos terceiros a quem não é acessível o conhecimento, nem da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo segredo fiscal, nem da oneração pelo privilégio, devido à inexistência de registo. Estas semelhanças justificam que se siga, também neste caso, o juízo de inconstitucionalidade, por se mostrar violado, nos mesmos termos, o princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
6. Na verdade, as referidas diferenças de regime não são suficientes para afastar esta conclusão.
É exacto, como afirma o Ministério Público nas suas alegações, que o privilégio conferido à Fazenda Pública pela norma agora em apreciação é menos 'agressivo', pois que apenas beneficia os créditos constituídos nos últimos três anos, e só incide sobre os imóveis existentes no património do devedor à data da penhora. Igualmente exacto é que a Fazenda Pública não goza da hipoteca legal que é conferida à Segurança Social, que a pode registar, como se observou no acórdão nº 160/00. Todavia, e em primeiro lugar, não se vê que aquela limitação temporal seja apta a inverter o juízo de inconstitucionalidade, pois que, não tomando em consideração nenhuma relação de valores entre o crédito de imposto e o crédito do exequente, pode conduzir ao mesmo resultado a que levaria a inexistência de limite. Em segundo lugar, não há grande diferença, dentro da tramitação normal da execução, entre o momento da sua instauração e o da penhora; e a que existe não
é relevante para o efeito. Finalmente, não é a circunstância de a lei não ter curado de proteger o crédito de imposto com uma hipoteca legal que há-de justificar o sacrifício dos terceiros nos termos em que a norma em crise os afecta. Assim, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 2º da Constituição, a norma constante do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do C. Civil; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que respeita à questão de constitucionalidade. Lisboa, 5 de Março de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Artur Maurício Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa (vencido, nos termos da declaração junta) José Manuel Cardoso da Costa DECLARAÇÃO DE VOTO
1. - Votei no sentido da não inconstitucionalidade.
A situação dos autos não é, a meu ver, subsumível ao enquadramento jurídico que foi dado, nomeadamente, no acórdão nº 160/2000 (de que, aliás, fui relator).
Não apenas porque o titular do privilégio creditório é diferente. No caso, é o próprio Estado que, por essa via, procura assegurar os seus créditos, tendo em vista os fins prosseguidos pelo sistema fiscal que, actualmente – e ao menos directamente – nada têm a ver com os fins que a segurança social se pressupõe alcançar.
Mas também porque a limitação temporal outorgada no privilégio da Fazenda apenas incide sobre os créditos do IRS relativos aos
últimos três anos, o que, no tocante à Segurança Social não sucede.
Em terceiro lugar, o privilégio incide, no caso vertente, sobre os bens existentes no património do sujeito passivo apenas à data da penhora ou acto equivalente, enquanto o privilégio das dívidas à segurança social incidia sobre todos os imóveis existentes no património das entidades devedoras à época da instauração da execução, o que está longe de ser indiferente ou inócuo e se revela mais 'agressivo'.
Assim, ao invés do regime previsto no Código Civil para os privilégios imobiliários, os débitos de segurança social mostravam-se garantidos ilimitadamente e nada tinham a ver com a coisa-garante.
Em quarto lugar, e contrariamente ao que sucede com a Fazenda Pública, a Segurança Social usufrui de uma garantia adicional, criada para defesa dos créditos devidos pelos contribuintes das caixas de previdência, qual seja a hipoteca legal, bastando-lhe proceder ao seu registo, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, para logo se assegurar a efectividade dos seus créditos, com frustração das expectativas de terceiros.
Finalmente, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares é um imposto sobre o rendimento, e se é certo que o texto constitucional, ao privilegiar o carácter globalizante da tributação do rendimento, não definiu, de modo esgotante, o seu modelo, não menos exacto é que neste imposto visa-se alcançar a inclusão, na sua incidência, de todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho.
2. - Vem-se considerando lesada a protecção da confiança sempre que, para seguir o acórdão nº 287/90 deste Tribunal (publicado no Diário da República, I Série, de 20 de Fevereiro de 1991), 'a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deve contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor da sua vida'.
Torna-se, indispensável, no entanto, que a afectação dos direitos ou das expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos seja de proporção 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa', de modo a ser idónea a afectar 'aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito', como igualmente este Tribunal se exprimiu, no acórdão nº 634/98, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Março de 1999, sendo certo que a tutela postulante desse mínimo de certeza não implica a desprotecção de outros valores com dignidade constitucional, como se frisa no acórdão nº 626/98, publicado no mesmo jornal oficial, I Série, de 18 de Março de 1999.
Se a existência de um privilégio imobiliário geral pode recortar-se como 'solução anómala na geometria dos conceitos' (no dizer de Mário Júlio de Almeida Costa, ob. cit., pág. 900), o certo é que a inaplicabilidade da norma do artigo 751º do Código Civil – que só abrange, insiste-se, os privilégios imobiliários especiais – apela para a observância do disposto no artigo 749º do mesmo diploma que, menos 'agressivamente', se limita a atribuir uma preferência creditícia, a incidir genericamente sobre (todos) os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora. Situação esta muito diferente da contemplada nos acórdãos em que a decisão recorrida se apoia, relativa às dívidas da segurança social, deixando intocado o princípio da confiança que nesses arestos se considerou atingido.
Ora, surpreende-se, no caso sub judice, uma concretização jurídico-normativa de um interesse público, finalisticamente orientado para a realização dos fins do Estado ao providenciar o seu próprio financiamento.
Não é esse o caso das dívidas à segurança social nem se lhe impõe uma filosofia de solidariedade económica e social como a que, nos processos falimentares e de recuperação de empresas, justifica uma 'participação no sacrifício comum', sublinhada e enaltecida no ponto 6 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 132/93 de 23 de Abril, diploma que aprovou, no seu artigo 1º, o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, que as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro, não controvertem.
É que a norma do artigo 104º do CIRS – hoje artigo 111º
–, tem a virtualidade de relevar na graduação de créditos, não como garantia real mas como simples preferência, mero direito de prioridade que, na execução do património debitório, se coloca prevalecentemente em relação aos credores comuns (cfr., entre outros, M. J. Almeida e Costa, ob. cit., pág. 825; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil-Reais, Coimbra, 4ª ed., 1987, pág. 489. Neste sentido parece também pronunciar-se, no específico âmbito do artigo 104º, André Salgado de Matos, Código do Imposto de Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) Anotado, Lisboa, 1999, pág. 497).
Assim, uma interpretação constitucionalmente conforme leva a concluir que a decisão recorrida recusou aplicar um sentido que se não mostra ofensivo do princípio acolhido no artigo 2º da Lei Fundamental. Alberto Tavares da Costa