Imprimir acórdão
Procº nº 68/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Tendo o C... instaurado no Tribunal de comarca daquela cidade e contra a CT..., S.A., execução com vista a ser pago da quantia de Esc.
380.772$00, o Juiz do 3º Juízo Cível daquele Tribunal, por despacho de 6 de Julho de 1998, considerando que a certidão de dívida emanada daquele Centro não constituía título executivo, «rejeitou» a execução.
Para alcançar uma tal decisão, recusou-se a aplicar o Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, de 22 de Março, por isso que entendeu que tal diploma enfermava de inconstitucionalidade, 'na medida em que a sua matéria é de natureza legislativa, é da competência da Assembleia e do Governo da República e não se contém em qualquer interesse específico regional'.
É do assim decidido que, pelo Ministério Público, vem interposto o presente recurso, estribado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, tendo o seu representante junto do Tribunal Constitucional rematado a sua alegação do seguinte modo:-
'1º - Por força do estabelecido, nomeadamente, na Lei de Bases da Saúde, constitui matéria de interesse específico regional a referente à organização e funcionamento dos serviços de saúde, nela se compreendendo o estabelecimento da disciplina procedimental adequada para a cobrança das obrigações decorrentes da prestação de cuidados de saúde, por esta se mostrar funcionalmente conexionada com a eficácia e financiamento de tais serviços regionalizados.
2º - As competências regulamentares dos Governos regionais estão circunscritas à estrita execução dos diploma legislativos regionais, não podendo, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, um decreto regulamentar regional decidir, em termos inovatórios, sobre a extensão à região de disciplina instituída no ordenamento nacional, mediante decreto-lei, comportando a criação de um título executivo administrativo.
3º - Termos em que deverá, embora por fundamento parcialmente diverso, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
Cumpre decidir.
II
1. Muito embora na decisão recorrida se tivesse recusado a aplicação de todo o Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, o que é certo é que, no caso em apreciação, estava unicamente em causa a dedução de uma determinada pretensão executiva baseada numa certidão emitida pelo Centro Hospitalar do Funchal e relativa a gastos ocorridos pela assistência que prestou no atendimento e internamento de um determinado cidadão, que foi vítima de um acidente de viação.
Ora, e independentemente de se saber - até porque isso não se inclui nos poderes cognitivos deste Tribunal - se o documento a fls. 4 constituiria uma verdadeira «certidão de dívida», foi precisamente por se ter entendido que, na situação em apreço, existindo tal certidão, a ela não deveria ser conferida força executiva, que não foi dado seguimento à execução.
Significa isso que, em rectas contas, a recusa de aplicação normativa operada pela decisão em causa incidiu, e tão só, sob o preceituado no artº 1º do Decreto Regulamentar Regional nº 6/92/M.
Isto posto, passemos à apreciação do problema.
2. A Lei de Bases da Saúde,(Lei nº 48/90, de 24 de Agosto), veio a prescrever que a política de saúde tem âmbito nacional, obedecendo a determinadas directrizes (cfr. Base II) e que nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira ela é definida e executada pelos órgãos do governo próprio, em obediência aos princípios estabelecidos pela Constituição e por aquela mesma Lei, Regiões essas que devem publicar regulamentação própria em matéria de organização, funcionamento e regionalização dos serviços de saúde (cfr. Base VII).
Por outro lado, aquando da edição do diploma em que se insere a norma sub iudicio, estatuía-se na alínea c) do artigo 229º da Constituição que competia às Regiões Autónomas [d]esenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as bases do serviço nacional de saúde [cfr. alínea f) do nº 1 do artigo 168º da Lei Fundamental e também a alínea e) do nº 1 do artº 29º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho;], pelo que, no tocante a esta matéria, tendo em conta o prescrito na referida Base VII da Lei nº 48/90
[tenha-se, também, em conta o disposto nos artigos 1º, 3º, alínea a), e 4º do Decreto-Lei nº 391/80, de 23 de Setembro], nem sequer se coloca o problema, discutido na doutrina, de saber se seria lícito ao órgão parlamentar, nessa mesma matéria, cometer em exclusivo ao Governo o desenvolvimento das «bases» do Serviço Nacional de Saúde (cfr., sobre o tema, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 855, e Acórdão deste Tribunal nº 257/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º volume, 707 a
724).
Anote-se, ainda, que, de acordo com o artº 30º, alínea m), do citado Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, é considerada de interesse específico dessa Região a matéria atinente à saúde.
Foi, pois, de harmonia com estes parâmetros que a Assembleia Legislativa Regional da Madeira editou o Decreto Legislativo Regional nº
21/91/M, de 7 de Agosto (Estatuto do Sistema de Saúde da Região Autónoma da Madeira), vindo-se a estabelecer, nos seus artigos 17º, nº 1, e 21º, nº 1, que
[o] financiamento do Serviço Regional de Saúde é assegurado pelo Orçamento da Região Autónoma da Madeira e pelas receitas cobradas nos serviços e estabelecimentos, nos termos da lei (cfr., na sequência, o nº 1 do artº 13º do Decreto Regulamentar Regional nº 27/92/M, de 24 de Setembro) e que [o] Governo Regional efectuará, em decretos regulamentares regionais, a aplicação deste Estatuto, tendo em conta as adaptações impostas pelo condicionalismo próprio da Região Autónoma da Madeira.
3. A decisão sub specie ancorou-se, para chegar ao juízo de inconstitucionalidade, na falta de interesse específico da Região Autónoma da Madeira para a edição de uma norma que viesse a conferir parata executio às certidões de dívida às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Regional de Saúde daquela Região. Na verdade, o Decreto Regulamentar Regional nº
6/93/M, de 22 de Março, é composto de apenas dois artigos, dispondo o 2º a sua entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, enquanto que o 1º prescreve que [é] aplicado à cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira o disposto no Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro.
Tendo em conta o que ficou assinalado no precedente número - e se se partir do princípio de que uma norma com aquele alcance, conquanto se ligue, de forma directa e imediata e de um ponto de vista estrutural, com a área do processo civil (já que vem conferir força executiva a determinados documentos emitidos pelos serviços regionais de saúde), não deixa, no prisma da função que efectivamente desempenha, de se encontrar, para se utilizarem as palavras do recorrente, 'ligada à organização do serviço regional de saúde, já que o respectivo financiamento está naturalmente conexionado com a cobrança efectiva e em tempo útil dos cuidados de saúde prestados', - então poder-se-á concluir, por uma banda, que a respectiva edição não só se integra numa matéria está legalmente cometida ao poder normativo regional e, por outra, que a regulação que intenta emitir versa, nos termos indicados, sobre uma matéria que apresenta, na Região, uma especial pecularidade, atenta, designadamente, a especial configuração com que nela se apresenta o Serviço Regional de Saúde, justificando, assim, um tratamento diverso.
Mas, para além destas considerações, o que, decisivamente, se não pode passar em claro é que o diploma em crise, em direitas contas, mais não fez do que «alargar» o regime de cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde da República (cujos estatutos foram aprovados pelo Decreto-Lei nº 11/93, de 25 de Janeiro) àquelas instituições e serviços públicos que fazem parte do Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, motivo pelo qual, numa perspectiva mais apurada, nem sequer se poderá dizer que tal diploma veio a proceder à instituição de um procedimento especial destinado àquela cobrança atentas determinadas especificidades que ocorreriam com a matéria em causa na dita Região, ou a limitar-se a reproduzir normas constates de lei da República não fundamentadas no interesse específico regional (cfr., sobre o problema, o Acórdão deste Tribunal nº 333/86, publicado nos cit. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º. volume, 83 a 92).
Vale isto por dizer que, em abstracto, não se levantariam obstáculos a que o poder legiferante da Região Autónoma da Madeira viesse a emitir normação como a que se contém no artº 1º do Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, tendo em atenção a «devolução» autorizada pela Lei de Bases da Saúde.
4. Ponto é, porém, que se saiba, ponderada a competência que o Diploma Básico confere aos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, se o
órgão emitente da normação em causa está dotado de poderes para tanto.
Ora, neste particular, na versão da Constituição decorrente da 2ª Revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, era, pelo artigo
234º, nº 1, deferida competência exclusiva às Assembleia Legislativas Regionais para o exercício das atribuições referidas na alínea c) do nº 1 do artigo 229º da Lei Fundamental, pelo que, quanto a essa matéria, aos Governos Regionais apenas ficava cometida competência para regulamentar a legislação regional.
Aqui chegados, uma outra questão deveria ser enfrentada.
Consistia ela, justamente, em saber se a criação de um título executivo - desde logo com a inerente consequência de quem estiver dele munido poder deixar, em caso de litígio, de recorrer à acção de condenação ou, se se quiser, a uma acção em que, jurisdicionalmente, é reconhecida a existência do crédito e a sua exequibilidade - era perspectivável como algo inserível num poder meramente regulamentar, nomeadamente, do que se estipulou no Decreto Legislativo Regional nº 21/91/M e que foi, noutros aspectos, objecto de regulamentação por meio do Decreto regulamentar Regional nº 27/92/M, de 24 de Setembro.
No entanto, viu-se já que o intento do que se consagra no artº 1º do Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M foi, ao fim e ao resto, «estender» à Região Autónoma da Madeira o regime que se veio a prescrever para a República, quanto à cobrança de dívidas das instituições e serviços públicos de saúde, por intermédio do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
Nesta postura, a consagração daquela «extensão» não pode, de um lado, ser vislumbrada como inserível nos poderes de um Governo Regional e, de outro, como uma mera regulamentação dependente de um prévio diploma legislativo regional, e isto sem que se torne necessário entrar na dilucidação da questão a que acima se fez referência.
Daí que se deva concluir, embora por fundamentos diversos dos utilizados na decisão sob censura, que o recurso não merece provimento.
III
Em face do exposto, o Tribunal decide:- a. Julgar inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 234º, nº 1 e 229º, nº 1, alínea c), da versão da Constituição decorrente da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, a norma constante do artº 1º do Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, de 22 de Março e, em consequência, b. Negar provimento ao recurso. Lisboa, 18 de Maio de 1999 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida