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Proc. nº 920/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M... instaurou, no Tribunal Cível de Lisboa, acção declarativa comum, com processo sumário, contra a Caixa Auxiliar dos Estivadores do Porto de Lisboa e Centro de Portugal, Associação Mutualista. O autor pediu que a ré fosse condenada a reconhecer o seu direito de receber pensão de velhice, bem como o montante de 245.250$00, acrescido de juros, referente às mensalidades em falta.
A ré, na contestação, sustentou a incompetência absoluta do Tribunal Cível, considerando materialmente competente para a acção o Tribunal do Trabalho, nos termos do disposto no artigo 64º, alínea i), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
O juiz do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, no despacho saneador de 4 de Novembro de 1996, julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal, por considerar organicamente inconstitucional a norma contida no artigo 119º do Decreto-Lei nº 72/90, de 3 de Março (norma que atribui competência aos tribunais comuns para dirimir os litígios verificados entre as associações mutualistas e os seus beneficiários). Em consequência, absolveu a ré da instância.
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade do despacho saneador, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 119º do Decreto-Lei nº 72/90, de 3 de Março.
O recorrente apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
1º - A norma constante do artigo 119º do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/90, de 3 de Março, se interpretada no sentido de que os 'tribunais cíveis', quando estejam em causa litígios entre tais entidades qualificadas como 'instituições de previdência' nos termos e para os efeitos da alínea i) do artigo 64º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro - e os respectivos beneficiários (e respeitantes a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutários de umas e outros), é organicamente inconstitucional, por preterição do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição, já que - com tal interpretação - a referida norma inova em sede de repartição de competências entre a jurisdição civil e laboral, tal como resulta das leis de organização judiciária vigentes.
2º - A qualificação jurídica da ré como 'instituição de previdência', por respeitar exclusivamente à interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, está excluída do âmbito do presente recurso, levado ser feita pelo tribunal 'a quo', precedendo necessariamente o julgamento acerca da constitucionalidade do citado artigo 119º.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, proferindo-se
- nos termos do nº 3 do artigo 80º da Lei nº 28/82 - decisão interpretativa, em consonância com o teor das conclusões anteriores.'
Por seu turno, a recorrida contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade orgânica da norma 'desaplicada' pelo juiz do Tribunal Cível de Lisboa.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. O tribunal a quo recusou a aplicação da norma contida no artigo
119º do Código das Associações Mutualistas, em virtude de a considerar organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição. Tal norma estabelece a competência dos tribunais comuns para dirimir os litígios verificados entre as associações mutualistas e os respectivos beneficiários.
A questão da inconstitucionalidade orgânica de uma norma que define competências dos tribunais para dirimir certa categoria de litígios, por esta ser inovadora, isto é, por alterar as competências legalmente definidas, exige, desde logo, uma apreciação sobre se a norma em crise tem tal sentido e alcance. Ora, o artigo 119º do Código das Associações Mutualistas é susceptível de ser interpretado no sentido de os ?tribunais comuns? a que se refere serem os tribunais de trabalho.
Na verdade, antes da publicação da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro
(Lei Orgânica dos Tribunais), entretanto revogada e substituída pela Lei nº
38/87, de 23 de Dezembro, e depois alterada pelas Leis nºs 52/88, de 4 de Maio, 24/90, de 4 de Agosto, 24/92, de 20 de Agosto, 44/96, de 3 de Setembro, e 33-A/96, de 26 de Agosto, ?tribunal comum? significava tribunal judicial (tribunal civil), por oposição a tribunal especial (categoria a que então pertenciam os tribunais de trabalho).
Porém, com a publicação da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, os tribunais de trabalho, anteriormente integrados no Ministério do Trabalho, passaram a estar integrados no Ministério da Justiça (cf. artigo 85º da referida Lei), passando assim a ser tribunais judiciais - ?tribunais comuns?.
Nesse sentido, escreveu-se o seguinte no Acórdão nº 271/92:
A partir da publicação da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, se a dicotomia tribunais comuns/tribunais especiais continuou a fazer sentido, os tribunais do trabalho, enquanto tribunais judiciais que passaram a ser, deixaram de integrar a categoria dos tribunais especiais, para passarem a pertencer à dos tribunais comuns.
5. Interpretado desta forma (no sentido de atribuir competência aos tribunais de trabalho para dirimir os litígios entre as associações mutualistas, tidas como instituições de previdência, e os respectivos beneficiários), o artigo 119º do Código das Associações Mutualistas não introduz qualquer modificação nas regras de competência material dos tribunais.
Com efeito, tal preceito, assim interpretado, consagra a solução já constante da Lei Orgânica dos Tribunais, nomeadamente do artigo 64º, alínea i), dessa lei, segundo a qual os tribunais de trabalho são os competentes para, em matéria cível, conhecer das questões que oponham as instituições de previdência aos seus beneficiários, quando essas questões ?respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros?.
Com esta interpretação, a norma contida no artigo 119º do Código das Associações Mutualistas não viola, pois, o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, mesmo quando se proceda à qualificação jurídica de tais associações como ?instituições de previdência?.
6. Em conclusão do anteriormente exposto, já que a norma em causa permite uma interpretação conforme à Constituição, o Tribunal Constitucional decide fixar o sentido da norma (o artigo 119º do Código das Associações Mutualistas) que é compatível com a Constituição e mandar aplicá-la no processo com essa interpretação (cf. artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, e Acórdãos nºs 163/95, 198/95 e 609/95).
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: Julgar não inconstitucional o artigo 119º do Código das Associações Mutualistas
- que dispõe que ?as questões que se levantem entre as associações mutualistas e os seus associados ou entre estas e os respectivos agrupamentos são da competência dos tribunais comuns, nos termos do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social? - no sentido segundo o qual, uma vez que as associações mutualistas sejam qualificadas como instituições de previdência, são competentes para o conhecimento das questões nele referidas os tribunais do trabalho; Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser reformada, aplicando no processo o referido artigo 119º com a interpretação que se deixa indicada.
Lisboa, 2 de Junho de 1998 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo MOta Pinto Luis Nunes de Almeida