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Processo n.º 199/99
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. L..., detido em Espanha em 13 de Maio de 1997 e presente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa no dia 22 de Setembro de 1998, requereu no Tribunal Judicial de Aveiro a sua imediata restituição à liberdade, invocando encontrar-se privado de liberdade em regime de prisão preventiva 'sem que tenha sido proferida decisão instrutória há mais de 20 (vinte meses)', significando 'que se encontra preso ilegalmente desde o dia 18/12/98'. No respectivo requerimento, o arguido preso defendeu ainda que 'conforme dispõe o artigo 217º do diploma acima citado
[Código de Processo Penal] ao arguido poderá ser imposta uma outra medida de coacção não privativa da liberdade', concluindo que 'independentemente de o arguido estar em excesso de prisão preventiva e como tal dever ser restituído à liberdade, não se verificam os perigos mencionados no artigo 204º do CPP, aliás, tal circunstância não impõe, de per si, a fixação da medida de coacção máxima, uma vez que, a Lei tem outros mecanismos capazes de acautelar aqueles perigos.' Pelo despacho proferido a fls. 11 e verso dos autos foi indeferido o requerimento, escrevendo-se, como fundamentação, entre o mais, que 'atento o disposto no art.º 215º, n.º 1, b) e n.º 3 do CPP, estando o arguido preso preventivamente em Portugal apenas desde o dia 22/09/98, não se encontra ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva previsto na aludida disposição legal'. Inconformado, interpôs L... recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, em cuja motivação suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo
215º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal, 'interpretado com o sentido de que o tempo de prisão preventiva sofrida no estrangeiro e ao abrigo de um processo de extradição, não se contabiliza para os efeitos previstos nesse preceito' (pois 'esta interpretação colide com o estatuído nos artigos 13º, 14º e 28º, n.º 4 e 32º da CRP'), por um lado, e das normas dos artigos 3º e 229º do mesmo Código de Processo Penal, 'quando se entenda não aplicar o regime previsto no artigo 215º, por violação das disposições constitucionais citadas no número anterior', por outro. Terminou pedindo que, revogando-se o despacho recorrido, se substitua o mesmo por outro que contabilize a prisão por si sofrida em Espanha, para efeitos de aplicação do artigo 215º do Código de Processo Penal. Por Acórdão de 17 de Fevereiro de 1999, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, nele se podendo ler, no que tange à questão de constitucionalidade, que
'[...]a interpretação dada às normas que se citaram e nomeadamente a interpretação dos artigos 3º, 215º e 229º, do CPP, com o sentido de que o tempo de detenção (e não o de prisão preventiva) sofrido no estrangeiro e ao abrigo de um processo de extradição não se contabiliza para os efeitos previstos no referido artigo 215º, não colide com o disposto nos artigos 13º, 14º, 28º, n.º 4 e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, como vimos, nos termos do artigo 22º, da Convenção Europeia da Extradição, ‘a lei da Parte requerida (neste caso a lei de Espanha) é a única aplicável ao processo de extradição, bem como à detenção provisória’'.
2. De novo inconformado, interpôs L... recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 3º, 215º, n.ºs 1, 2 e 3 e 229º, todos do Código de Processo Penal, por, em seu entender, ser 'mister que o tempo de prisão sofrida, pelo recorrente, num processo de extradição noutro país, se contabilize para efeitos de contagem de prisão preventiva no processo que solicitou a extradição do arguido.' O recorrente apresentou alegações junto deste Tribunal, que concluiu do seguinte modo:
'1. O recorrente foi preso preventivamente em Espanha no dia 13 de Maio de 1997 a pedido dos presentes autos, tendo sido entregue às autoridades portuguesas no dia 22 de Setembro de 1998.
2. Nestes momento o recorrente está preso há mais de 20 meses sem que tenha havido decisão instrutória.
3. Do artigo 82º do Cód. Penal não se pode retirar a conclusão de que a detenção sofrida no estrangeiro apenas se imputa à pena de prisão pela qual o extraditado vier a ser condenado.
4. Com efeito, conforme resulta claro do Capítulo II do Cód. Penal, este, apenas se refere a ‘PENAS’, sendo certo que a regulamentação do regime da prisão preventiva vem prevista no Cód. Proc. Penal, não tendo aquele Código que se pronunciar sobre esta matéria.
5. As normas reguladoras da extradição constituem um instrumento colocado ao dispor de um outro Estado para obrigar a presença de um arguido no Estado requerente e aqui vir a ser submetido a um julgamento ou ao cumprimento de uma pena.
6. O artigo 215º do CPP, constitui uma garantia do cidadão no sentido de não poder estar preso mais que determinado período de tempo sem que tenha conhecimento formal da acusação que sobre si impende, da decisão de um juiz sobre a pertinência da acusação ou da decisão definitiva sobre o seu caso.
7. O regime da extradição naturalmente também visa definir o estatuto pessoal do extraditando enquanto esta situação em concreto se resolve.
8. Tal circunstancialismo em nada colide com o previsto no artigo 215º do CPP.
9. O cidadão que aguarda a sua extradição para o nosso país tem, também ele, o direito, constitucionalmente garantido de, dentro de determinado prazo, os previstos no artigo 215º do CPP, ver deduzida a acusação, a decisão instrutória e a decisão definitiva.
10. A não ser assim poder-se-ia cair na aberração jurídica de um cidadão estar indefinidamente preso preventivamente num país estrangeiro sem saber qual a acusação que impende contra si e porventura com mais tempo de prisão que a pena cominada para o crime de que é suspeito.
11. De todo o modo seja qual for o entendimento o Cód. Proc. Penal aplicar-se-ia sempre subsidiariamente ao instituto da extradição, conforme artigos 3º e 229º.
12. De facto não existe preceito no regime da extradição que regule essas situações.
13. Acresce ainda que o artigo 29º do D.L. 437/75 de 16/8, referindo que a detenção do extraditando não estava sujeito aos limites da prisão preventiva previstos na Lei processual comum foi intencionalmente revogado pelo Legislador, o que é bem revelador da nossa tese.
14. Por último o Meretissimo Juiz de 1ª Instância reapreciou a prisão preventiva do recorrente enquanto este estava preso em Espanha, sendo tal circunstância a demonstração de que também o juiz do processo entendia que o recorrente estava preso preventivamente à ordem dos presentes autos.
15. 0 artigo 215º n.º 1, 2 e 3 do CPP, foi interpretado com o sentido de que o tempo de prisão preventiva sofrida no estrangeiro e ao abrigo de um processo de extradição, não se contabiliza para os efeitos previstos nesse preceito. Esta interpretação colide com o estatuído nos artigos 13º, 14º, 28º, n.º 4 e
32º, n.º 1 da CRP, sendo assim inconstitucional.
16. Aliás, também é inconstitucional a interpretação dada aos artigos 3º e 229º do CPP, quando se entenda não aplicar o regime previsto no artigo 215º, por violação das disposições constitucionais citadas no número anterior.' O Ministério Público, contra-alegando, pugnou pela improcedência do recurso, concluindo:
'1º São processos perfeitamente diferenciados e autónomos o de extradição – regido pela lei da parte requerida, segundo o direito internacional convencional em vigor – e o processo penal, instaurado contra o arguido perante a jurisdição nacional e destinado a apurar da responsabilidade criminal pelo ilícito que lhe
é imputado.
2º Os prazos de duração máxima da prisão preventiva. estabelecidos no artigo 215º do Código de Processo Penal, são prazos ordenadores do processo penal que corre perante a jurisdição nacional, sendo regido pela lei portuguesa, não podendo os mesmos ser transpostos para o âmbito de um procedimento que, pelo direito internacional convencional, é regido pela lei estrangeira.
3º A consequente e radical heterogeneidade entre as figuras da detenção para extradição e da prisão preventiva - decorrente da autonomia dos processos de extradição e do subsequente processo penal - impede que os períodos de uma e outra se possam adicionar de modo a completar os prazos de duração máxima das medidas de coacção, estabelecidos naquele artigo 215º.
4º Termos em que - por esta solução não violar nenhum preceito ou principio da Lei Fundamental - deverá improceder o presente recurso.'. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70ºda Lei do Tribunal Constitucional e tem como objecto a apreciação da constitucionalidade dos artigos 3º, 215º e 229º do Código de Processo Penal.
É a seguinte a redacção das disposições questionadas:
'Artigo 3º
(Aplicação subsidiária) As disposições deste Código são subsidiariamente aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos processos de natureza penal regulados em lei especial. Artigo 215º
(Prazos de duração máxima da prisão preventiva)
1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: a) Seis meses sem que tenha sido deduzida acusação; b) Dez meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória; c) Dezoito meses sem que tenha havido condenação em primeira instância; d) Dois anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para oito meses, um ano, dois anos e trinta meses, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos, ou por crime: a) Previsto nos artigos 299.º; 312.º, n.º 1; 315.º, n.º 2; 318.º, n.º 1; 319.º;
326.º; 331.º; ou 333.º, n.º 1, do Código Penal; b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos; c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respectiva passagem; d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio; e) De branqueamento de capitais, bens ou produtos provenientes do crime; f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito; g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para doze meses, dezasseis meses, três anos e quatro anos, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos n.ºs 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial. Artigo 229.º
(Prevalência dos acordos e convenções internacionais) As rogatórias, a extradição, a delegação do procedimento penal, os efeitos das sentenças penais estrangeiras e as restantes relações com as autoridades estrangeiras relativas à administração da justiça penal são reguladas pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições deste livro.' Está, porém, apenas em causa a interpretação destas normas segundo a qual para a contagem dos prazos máximos de duração da prisão preventiva não deve considerar-se o tempo de detenção provisória para efeitos de extradição sofrida no estrangeiro pelo arguido que foi extraditado para Portugal. Para a detenção provisória sofrida em processos de extradição a correr em Portugal, tal solução encontrava-se expressamente prevista no artigo 29º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, que preceituava que 'a detenção do extraditando não está sujeita aos limites do prazo da prisão preventiva previstos na lei de processo penal.' No Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro
(que revogou o diploma anteriormente citado), não se encontra disposição semelhante, mas, de todo o modo, no presente caso, o que se questiona é a relevância do tempo de detenção provisória para extradição sofrida no estrangeiro, para os prazos máximos de duração da prisão preventiva. Trata-se, pois, no presente recurso, de apreciar a conformidade constitucional da não aplicação das disposições que estabelecem estes prazos também ao tempo de detenção provisória para extradição sofrido no estrangeiro, somado ao tempo de prisão preventiva aplicada no processo penal. Com este alcance, tal questão de constitucionalidade não foi ainda objecto de decisão por este Tribunal (cfr. o Acórdão n.º 524/98, inédito, onde, nesta parte, não se tomou conhecimento do recurso). Como disposições que seriam violadas pela interpretação destas normas impugnadas, o recorrente invoca os artigos 13º, 14º, 28º, n.º 4 e 32º, n.º 1 da Constituição.
4. A argumentação no sentido da inconstitucionalidade apresentada pelo recorrente desconsidera a diferença existente entre o processo de extradição, que decorre sob jurisdição do estado requerido – e, portanto, subtraído ao controlo e à soberania do estado português – e o processo penal, que se lhe seguirá, para concluir que os prazos de duração máxima da prisão preventivas têm em conta a situação do arguido sem atender à possibilidade de efectiva instrução do processo no estado requerente. Ora, não só tais processos são regidos por leis diversas e têm finalidades diferentes – não tendo, aliás, que se seguir ao processo de extradição apenas um processo penal –, como esses prazos são estabelecidos também em consideração do dever (e da possibilidade) de promoção do andamento do processo.
É o que se passa a demonstrar.
5. Nos termos do artigo 22º da Convenção Europeia sobre Extradição de 28 de Abril de 1977 (aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/89), 'a lei da parte requerida é a única aplicável ao processo de extradição, bem como à detenção provisória.' O processo de extradição e a medida de detenção provisória prevista no artigo 16º da Convenção fogem, pois, à jurisdição e à soberania do estado requerente, sendo, antes, regidos pela lei da parte requerida. O processo de extradição é, na verdade, destinado a actuar princípios de cooperação judiciária internacional, relativamente à entrega de pessoas perseguidas em resultado de uma infracção ou procuradas pelas autoridades judiciárias da Parte requerente para o cumprimento de uma pena ou medida de segurança (assim, o artigo 1º da Convenção referida). Na ordem jurídica portuguesa, esses princípios de cooperação judiciária internacional são concretizados, designadamente, pelo Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro (v. Manuel António Lopes Rocha/Teresa Alves Martins, Cooperação judiciária internacional em matéria penal. Comentários, Lisboa, 1992; v., mais recentemente, a Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 40/98, de 5 de Setembro de 1998). O processo penal, diversamente, segue-se à extradição, mas é regido pela lei da parte requerente, e tem como finalidade o apuramento, na ordem jurídica dessa parte, da responsabilidade criminal do arguido (note-se, aliás, que a um processo de extradição podem seguir-se vários processos penais, e não apenas um, não sendo legítima a identificação do primeiro com qualquer dos processos penais). Tais processos são também regulados por diplomas diversos – o primeiro, entre nós, pelo referido Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro; o segundo, pelo Código de Processo Penal. Ora, como bem nota o Ex.mº Procurador Geral Adjunto em funções neste Tribunal, da mesma forma que são diferentes os processos a cujas finalidades estão colimadas as medidas detentivas cujos limites estão em questão, existe também uma diferença de finalidades e de regime (desde logo, por estarem sujeitas a jurisdições diversas) entre tais medidas – isto é, a detenção provisória aplicada a um extraditando, nos termos do artigo 53º e segs. do Decreto-
-Lei n.º 43/91 (e do artigo 16º da Convenção Europeia de Extradição) e a prisão preventiva, prevista no artigo 202º do Código de Processo Penal.
É certo que em ambos os casos estamos perante medidas que prevêem uma privação de liberdade, com vista a assegurar finalidades relacionadas com os processos em curso. Todavia, estes processos são, como se disse, distintos nas suas finalidades, pelo que, enquanto a prisão preventiva constitui uma medida de coacção, decretada no âmbito de um processo penal, nas condições gerais previstas no artigo 204º do Código de Processo Penal (e nos termos das disposições dos artigos 191º a 195º e 202º do mesmo Código), a detenção provisória para extradição visa assegurar a possibilidade de efectiva execução da decisão de extradição, tendo lugar no âmbito do respectivo processo, a correr no Estado requerido, que não promove o processo penal, com pressupostos e com um regime diverso da prisão preventiva. Assim, por exemplo, as razões justificativas da medida de coacção processual penal que é a prisão preventiva não incluem apenas o risco de fuga do arguido
(ou, para a extradição, da pessoa reclamada), mas igualmente a salvaguarda contra o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo (e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova) ou o 'perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.'
6. Além de tal diversidade funcional, não só entre o processo de extradição e o processo penal, como também, em consequência de tal diversidade, entre as medidas detentivas previstas no âmbito desses processos, pode igualmente concluir-se pela diversidade de regime jurídico dessas medidas de privação da liberdade, desde logo, por estarem sujeitas a jurisdições diversas. Assim, resulta já do que se disse que também a ponderação subjacente ao estabelecimento de limites para a prisão preventiva não pode transpor-se sem mais para a previsão de limites à duração da detenção provisória para efeitos de extradição. É que aquela prisão ocorre no âmbito de um processo penal e os limites à sua duração têm, portanto, o sentido de defender o arguido (em particular, o seu direito à liberdade), tendo em consideração que lhe está a ser aplicada uma medida detentiva num processo penal, e a consequente (não só possível, como necessária) celeridade no andamento desse processo penal– com uma acusação, uma decisão instrutória ou uma eventual condenação –, dirigido pelas autoridades portuguesas e visando o apuramento da responsabilidade criminal do arguido. Diversamente, os limites – bem como já os pressupostos – da medida de detenção provisória aplicada ao extraditando visam tutelar igualmente o seu direito à liberdade, mas relativamente à decisão do processo de extradição, a correr em país diverso daquele onde será promovido o processo penal e antecedendo este. A heterogeneidade entre a detenção provisória para extradição e a prisão preventiva já foi, aliás, posta em relevo por este Tribunal. Conforme se escreveu no Acórdão deste Tribunal n.º 228/97 (publicado no Diário da República, n.º 147, de 28 de Junho de 1997; no mesmo sentido, o Acórdão n.º 505/97, inédito), a propósito da inexistência de discriminação arbitrária entre os pressupostos e os limites da detenção provisória para extradição e a prisão preventiva,
'não existe qualquer discriminação não só porque as situações não são verdadeiramente comparáveis como também porque a detenção provisória ou não solicitada para efeitos de extradição não é susceptível de ser comparada no que aos respectivos prazos respeita com a prisão preventiva para efeitos penais.
É um facto inegável existir em ambos os casos uma privação da liberdade: porém, as finalidades que tal privação visa realizar em cada um dos casos são substancialmente diversas. Assim, na extradição - englobando aqui, quer os casos em que há um pedido prévio de detenção provisória quer os casos de detenção antecipada não solicitada - esta detenção destina-se unicamente a permitir tomar uma decisão sobre a extradição por forma a que esta seja garantidamente efectivada. Pelo seu lado, a prisão preventiva em processo penal visa diferentes fins: garantir a presença do arguido durante o procedimento penal, quando haja fundado receio de fuga, evitar o perigo de perturbação da instrução do processo caso o arguido se mantivesse em liberdade, receio fundado de perturbação da ordem ou da tranquilidade pública ou da continuação da actividade criminosa, em razão da natureza do crime ou da personalidade do delinquente. Acresce que na detenção provisória ou não solicitada com vista à extradição os prazos são muito mais exíguos do que no processo comum de extradição. Neste, formulado o pedido de extradição e após a audiência do extraditando, a oposição ao pedido só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição. A detenção deve cessar se a decisão da Relação não for proferida dentro de 65 dias após a data em que foi efectivada, podendo este prazo ser prorrogado por mais 25 dias se não for admissível medida de coacção não detentiva e prevendo-se, em caso de recurso da decisão da Relação, que a prisão subsista por mais 80 dias a contar da data de interposição, cessando se até lá não houver decisão do recurso, nos termos do artigo 54º do Decreto-Lei nº 43/91. Diferentemente, nos casos em que é possível verificar-se a prisão preventiva, os prazos são de 6, 10, 18 meses até dois anos, podendo ser elevados para maiores períodos relativamente a certos crimes e agravados até 12, 16 meses, 3 e 4 anos em casos de procedimentos de excepcional complexidade. Tratando-se, pois, de situações de recorte processual diverso e visando diferentes finalidades, bem se compreende que o legislador tenha fixado relativamente a cada um dos casos diferentes limites, sem que isso constitua qualquer discriminação e muito menos uma discriminação arbitrária.' E mais à frente:
' (...) o legislador regulamentou os pressupostos, as condições, a duração e as respectivas garantias da detenção por forma a realizar a finalidade que a mesma pretende alcançar com o mínimo de constrangimentos e procurando realizar o máximo de garantias do visado pela detenção. Designadamente, estabeleceu prazos de detenção sensivelmente mais reduzidos do que aqueles que se aplicam à prisão preventiva.' Sendo, pois, diversas as finalidades e o regime das medidas detentivas em causa e dos respectivos limites (aliás, mais exíguos para a detenção provisória para extradição), compreende-se que não se some o tempo de detenção provisória para extradição ao tempo de prisão preventiva – nem existe um limite comum de duração a ambas as medidas detentivas, nem a detenção provisória para extradição se confunde com a prisão preventiva. Aliás, como é entendimento comum e resulta do artigo 217º, n.º 1 do Código de Processo Penal (segundo o qual 'o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo' – itálico aditado), os prazos máximos de duração da prisão preventiva impõem-se apenas para a prisão preventiva à ordem do processo no qual ela foi aplicada. Bem pode, assim, mesmo depois de esgotados tais prazos máximos, ao arguido continuar a ser aplicada uma medida de coacção de prisão preventiva ordenada noutro processo, ultrapassando o tempo total de detenção o prazo máximo imposto à prisão preventiva em cada processo. E, do mesmo modo, por igualdade (ou até maioria) de razão, haverá de entender-se que não é obrigatório somar a prisão preventiva decretada no âmbito de outro processo, de natureza penal, que se segue à extradição (podendo, aliás, como também se observou, seguir-se vários processos penais ao processo de extradição), à detenção provisória para efeitos de extradição.
7. Mesmo, todavia, quem não acompanhe uma argumentação baseada na diversidade de regime e de finalidades do processo penal e do processo de extradição, ainda assim não será conduzido a contar o tempo de detenção provisória para extradição para efeito dos limites à duração da prisão preventiva, equiparando as medidas detentivas aplicadas nesses processos.
É que, mesmo nos casos em que a extradição é pedida para promoção de um único processo penal, o processo de extradição – e, designadamente, a sua regularidade e celeridade – escapa ao controlo do estado requerente, sendo antes controlado por uma jurisdição estrangeira (a do estado requerido). A responsabilidade pela eventual ultrapassagem dos prazos de detenção provisória para extradição
(detenção que no presente caso durou mais de um ano) não pode, pois, caber ao estado requerente, mas sim ao estado estrangeiro cuja jurisdição aplicou tal medida detentiva, e à qual competia conduzir o processo de extradição. A situação do extraditando detido provisoriamente para assegurar a efectiva execução da decisão do processo de extradição promovido no estrangeiro é, portanto, diversa da do arguido ao qual foi aplicada uma medida de prisão preventiva em Portugal. Pelo que não se pode considerar que exista qualquer violação do princípio da igualdade no facto de não se 'somar' o tempo de detenção para execução da extradição, sofrido no estrangeiro, ao tempo de prisão preventiva sofrido em Portugal, para efeito de ultrapassagem dos limites máximos
à duração desta – sendo certo, aliás, que é por as pessoas em questão não se terem apresentado à justiça que existe necessidade de promover o processo de extradição, sendo, pois, tais pessoas a dar ainda causa a tal processo. Nem sequer cabe argumentar com uma desigualdade resultante da imputação da detenção provisória na pena privativa de liberdade sofrida pelo extraditado (nos termos do artigo 13º do citado Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro). Na verdade, do mesmo modo que o sentido e a determinação da duração da pena privativa de liberdade se distingue do sentido e da determinação dos limites à duração da prisão preventiva, também o problema posto por tal imputação se distingue do dos autos. Trata-se, naquele caso, de descontar no tempo de pena privativa de liberdade a cumprir a duração da privação de liberdade sofrida no estrangeiro. Para isso, deve tomar-se em conta todo o tempo de privação da liberdade sofrido, quer em detenção provisória para extradição, quer em prisão preventiva. Diversamente, para a contagem dos prazos máximos de duração da prisão preventiva, o tempo de privação da liberdade do arguido há-de relevar tomando em consideração a finalidade da aplicação dessa medida, e, designadamente, a possibilidade de andamento do processo, na jurisdição que o promove – variando o prazo máximo de duração nas suas várias fases, designadamente, consoante a complexidade do processo (vejam-se os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 215º), e suspendendo-se nos casos do artigo 216º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Justamente por estas diferenças, o citado artigo 13º do Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro não menciona qualquer imputação ou desconto do tempo de detenção provisória para efeitos de duração máxima da prisão preventiva. Acresce que, como consequência da submissão da medida de detenção provisória a uma jurisdição estrangeira e da ausência do arguido no estado requerente, durante tal processo de extradição a própria instrução do processo penal pode tornar-se difícil, ou mesmo impossível. Ora, uma solução que obrigasse a imputar na duração de prisão preventiva o tempo de detenção para extradição no estrangeiro poderia significar, no limite, que, caso esta detenção se tivesse já prolongado (por responsabilidade do estado requerido, repete-se) para além do prazo máximo de prisão preventiva admitido em Portugal, esta medida de coacção não poderia sequer ser aplicada. Assim, no presente caso, em que o recorrente foi detido em Espanha em 13 de Maio de 1997 e entregue às autoridades portuguesas no dia 22 de Setembro de 1998 – tendo a detenção provisória durado, portanto, mais de 16 meses –, segundo tal posição o arguido já não poderia sequer ser preso preventivamente em Portugal, perdendo o processo de extradição efeito útil, com evidente prejuízo das finalidades processuais penais que a aplicação daquela medida de coacção, subordinada a um princípio de necessidade, visa assegurar.
8. Também não se pode dizer que as normas em causa violem a disposição constitucional que prevê que 'a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei' (artigo 28º, n.º 4 da Constituição). É que, como se salientou, quer nas suas finalidades, quer, decisivamente, na sua sujeição a regimes e jurisdições diversos, a detenção provisória para extradição distingue-se da prisão preventiva. Assim, a própria ratio da imposição, constitucional e legal, de prazos máximos de duração da prisão preventiva não obriga à 'soma' do tempo da privação de liberdade aplicada num estado estrangeiro, para assegurar a extradição. Na determinação de tais prazos máximos de prisão preventiva não é, na verdade, exclusivamente relevante a perspectiva do extraditando/arguido, que sofre, primeiro no país requerido e depois em Portugal, uma privação da liberdade, mas antes igualmente a possibilidade de promoção do andamento do processo. Tal prazo máximo de duração da prisão preventiva pressupõe, pois, que tenha sido decretada tal medida num processo submetido à jurisdição e à direcção das autoridades portuguesas, no qual, assim, fosse a estas possível a instrução. Tais prazos variam, aliás, com a gravidade do crime e a complexidade do processo: designadamente, são elevados para os crimes previstos no n.º 2 do artigo 215º, ou quando o procedimento nesses casos se revelar de excepcional complexidade
(devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime), ou quando exista recurso para o Tribunal Constitucional. Tal forma de determinação desses prazos máximos de duração da prisão preventiva
– bem como a sua suspensão, nos termos do artigo 216º, n.º 1, do Código de Processo Penal, designadamente, em caso de doença do arguido que imponha internamento hospitalar, 'se a presença daquele for indispensável à continuação das investigações' (alínea b) desse artigo) – patenteia, pois, que a sua imposição, sendo dirigida à tutela do direito do arguido à liberdade, não deixa de ter em conta as próprias finalidades da aplicação da medida de coacção, designadamente, garantir a presença no julgamento, evitar a continuação da actividade criminosa e possibilitar a instrução do processo. Tais finalidades poderiam ser comprometidas se no tempo máximo de duração da prisão preventiva houvesse que descontar-se o tempo de detenção provisória no estrangeiro, num processo fora do controlo da jurisdição do estado requerente e durante o qual a própria instrução do processo penal pode ter sido inviável. Nada há, pois, na própria razão que levou o legislador constitucional a prever a existência de prazos máximos de duração da prisão preventiva, que obrigue a somar ao tempo de prisão preventiva sofrido a duração de medidas de detenção de que o arguido foi objecto num país estrangeiro, anteriormente ao processo penal. Nem se vê, aliás, como possa tal interpretação violar o artigo 32º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual o processo criminal assegurará ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Desde logo, as garantias de defesa no processo criminal promovido em Portugal não resultam enfraquecidas pelo facto de não se considerar a duração da medida detentiva aplicada fora da jurisdição das autoridades portuguesas para o prazo de duração máxima da prisão preventiva. Aliás, tal medida – aplicada por um estado estrangeiro antes de a prisão preventiva ter sido decretada (e podendo não o vir a ser) – não tem sequer o seu lugar no mesmo processo em que esta prisão preventiva ocorre, e para cujas finalidades é aplicada. Pode, pois, concluir-se que a interpretação das normas em causa, que não concede relevância, na contagem dos prazos máximos de duração da prisão preventiva, ao tempo de detenção provisória para extradição sofrida no estrangeiro, não viola, nem os artigos 13º, nem o artigo 28º, n.º 4, nem o artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
À conclusão de inexistência de inconstitucionalidade nas normas em apreço seria, aliás, também conduzido no presente caso quem, perfilhando o essencial das considerações antes expendidas, entenda, todavia, retirar das disposições constitucionais (por exemplo, do proémio do artigo 27º, n.º 3 da Constituição, que remete para a lei a determinação dos termos e condições da privação da liberdade) um princípio geral segundo o qual o tempo de detenção para assegurar finalidades penais não pode ultrapassar limites razoáveis, ou ser desproporcionado em face da consecução dessas finalidades. Na verdade, desde logo, nesta perspectiva não estaria já simplesmente em causa a ultrapassagem dos prazos previstos na lei portuguesa para a prisão preventiva, devido à antecedente aplicação num processo de extradição, por uma jurisdição estrangeira, de uma medida detentiva, mas sim uma exigência de proporcionalidade do tempo de privação de liberdade em relação à efectivação da responsabilidade penal. E na ponderação desta proporcionalidade não pode deixar de ser tomado em conta, nem o facto de o estado português não poder assegurar um tempo de detenção provisória menor ou a celeridade do processo de extradição a correr perante jurisdições estrangeiras, nem a eventual necessidade de – designadamente, para assegurar as finalidades do processo penal – aplicar em Portugal ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva. Pelo que só verdadeiramente em casos extremos – de que o presente não é exemplo –poderia eventualmente, ainda nessa perspectiva, considerar-se violado tal princípio.
9. Por último, saliente-se que a interpretação das normas em questão, que recusa a 'soma' da duração da detenção provisória para efeitos de extradição com a da prisão preventiva, também não viola o artigo 14º da Constituição, que se limita a garantir aos cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no estrangeiro a protecção do Estado para o exercício dos direitos, sem que, porém, nada imponha constitucionalmente que nessa protecção se inclua uma 'soma' da duração de medidas detentivas diversas, sofridas pelo arguido visando funções diferentes e ordenadas em processos distintos. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 3º, 215º
e 229º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual na
contagem dos prazos máximos de duração da prisão preventiva não é de
considerar o tempo de detenção provisória para extradição sofrida no
estrangeiro pelo arguido que foi extraditado para Portugal;
em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade;
condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 12 de Maio de 1999 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (votei a favor da decisão constante do presente Acórdão pelas razões expendidas nos pontos 7 e 8 da fundamentação, nomeadamente por entender que na prisão preventiva, critério a concretizar em termos semelhantes aos propugnados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, se encontra, para casos deste tipo, o parâmetro decisivo do juízo de constitucionalidade). Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta). Declaração de voto
Votei vencido, pois que entendo que a interpretação do bloco normativo em causa, segundo a qual o tempo de detenção sofrida no país estrangeiro no âmbito de um processo de extradição solicitado por um órgão judiciário português e com vista a um determinado processo criminal em curso perante o mesmo, viola as disposições combinadas dos artigos 27º, números 1 e 3, alínea b), e 28º da Constituição.
Na verdade, está em causa, de todo o modo, uma privação da liberdade sem ser em consequência de sentença judicial condenatória e que ocorreu no seguimento de um pedido de extradição formulado por uma autoridade judiciária portuguesa e tendo em atenção um dado processo criminal, sendo que, sem tal pedido, seguramente a detenção sofrida no país requerido e para efeitos de extradição não teria ocorrido.
Ora, não tomar em conta o tempo dessa privação da liberdade em país estrangeiro no processo de extradição, para efeitos de prisão preventiva, isso pode acarretar, de harmonia com a tese seguida no aresto de que esta declaração faz parte, a que se chegue a situações em que se concluirá que não relevará aquele tempo quando a detenção seja de tal modo dilatada que, inclusivamente, atinja o limite máximo da pena abstracta correspondente ao ilícito a que se reporta o processo crime em que foi solicitada a extradição. Nessas situações, tenho para mim que, de todo em todo, seria ainda admissível sujeitar o arguido à medida de coacção de prisão preventiva.
A isso acresce que não vislumbro como se coaduna que o tempo de detenção sofrida no estrangeiro no processo de extradição seja tido em atenção para efeitos de contagem da pena que ao arguido venha a ser aplicada, e já o não seja para efeitos de contagem do tempo da prisão preventiva, quando é certo que o tempo a esta correspondente é tido em conta quanto ao cumprimento da pena.
Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Conselheiro Bravo Serra) José Manuel Cardoso da Costa