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Proc. nº 222/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A... foi acusado e pronunciado em 1/9/94 pela prática de um crime de ofensas corporais negligentes, crime previsto no artigo 148º, nº 1, do Código Penal de 1982, na redacção anterior à revisão introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, ao qual correspondia a pena de prisão até seis meses e multa até cinquenta dias.
Por despacho de 23 de Setembro de 1997, proferido no 9º Juízo Criminal de Lisboa, foi declarado prescrito o procedimento criminal, em virtude de se ter considerado decorrido o prazo de dois anos, previsto no artigo 117º, nº 1, alínea d) do Código Penal de 1982, sem que tivesse ocorrido qualquer causa susceptível de interromper ou suspender o decurso do prazo prescricional, nos termos dos artigos 119º e 120º do Código Penal. Determinou-se, em consequência, o arquivamento dos autos. Desse despacho interpôs recurso o assistente, J..., invocando a interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal antes de
12/12/95, momento da notificação para as primeiras declarações do arguido na fase do inquérito. O fundamento da solução propugnada foi a interpretação
'forçosamente actualista', após 1987, do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, segundo a qual tal norma passaria a referir à constituição de arguido e à fase do inquérito (artigo 57º do Código de Processo Penal) o momento da interrupção da prescrição que o legislador de 82 referira à instrução preparatória, durante a vigência do Código de Processo Penal de 1929.
Na contra-motivação do recurso, o arguido sustentou que a interpretação proposta violaria os artigos 120º, nº 1, alínea a), e 2º, nº 1, do Código Penal, bem como o artigo 9º, nº 2, do Código Civil, 'por não ter a interpretação proposta o mínimo suporte na literalidade do texto legal', e sustentou, ainda, que a referida interpretação violaria o art. 29º, nº 1 e nº 3, e art. 32º, n º 1 e nº 4, da C.R.P. na sua redacção de 1992.
2. No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Janeiro de
1998, que se pronunciou sobre o recurso interposto pelo assistente, foi decidido que o prazo prescricional do procedimento criminal não prescrevera com fundamento em que:
1. Dever-se-ia realizar uma interpretação extensiva do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, afirmando-se que tal 'não é proibido pelo artigo 4º do Código de Processo Penal - com fundamento na identidade de razão no sentido de que a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório e a realização deste tem efeito interruptivo do prazo de prescrição do procedimento criminal'. Esta interpretação impor-se-ia pela obrigatoriedade da constituição de arguido 'logo que, correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, sendo certo que se trata de acto processual donde se alcança o estatuto de arguido passando a ser sujeito de direitos e obrigações enunciadas no artigo 61º do Código de Processo Penal' e por o Ministério Público também proferir actos decisórios nos termos do artigo
97º do Código de Processo Penal;
2. O artigo 11º, alínea a), do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, que aprovou o Código Penal revisto, circunscreveria o campo de aplicação da alínea a) do nº 1 do artigo 120º do Código Penal de 1982, na sua versão originária, enquanto referido à instrução preparatória, ao período de vigência do Código de Processo Penal de 1929. Dizia-se que em tal diploma se estabelecia que, nos processos instaurados até 31 de Dezembro de 1987, a prescrição do procedimento criminal era interrompida com a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou para interrogatório do agente como arguido na instrução preparatória. Isto significaria que 'o legislador reproduziu a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 120º do Cód. Penal de 1982, versão originária, reportando-a ao período de vigência do Cód. Proc. Penal de 1929' e que 'a norma do art. 11º al. (a) do Dec-Lei nº 48/95 de 15 de Março reforça a interpretação extensiva ou actualista da al. a) do nº 1 do art. 120 do Cód. Penal de 1982 para o tempo de vigência do Cód. de Proc. Penal de 1987'.
3. Deste acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70º, nºs 1, alíneas b) e f) e 2º da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento em que o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982, sujeito à interpretação extensiva propugnada no acórdão citado, seria inconstitucional por violar os artigos 29º, nºs 1 e 2, e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Nas contra-alegações apresentadas pelo Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, foi suscitada a questão prévia do não conhecimento do recurso por a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo de modo adequado, com fundamento em que tal questão não fora levada às conclusões da peça processual referida. E, subsidiariamente, o Ministério Público junto do Tribunal veio a entender que o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal violaria o artigo 29º, nº 4, da Constituição.
Nas contra-alegações do recorrido, foi, igualmente, suscitada a questão prévia de inadmissibilidade do recurso por a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo.
O recorrente respondeu à questão prévia, invocando que suscitara a questão de constitucionalidade antes de esgotado o poder de decisão do Tribunal recorrido na contra-motivação do recurso. Alicerçou a sua posição no entendimento da ausência de uma expressa exigência de invocação formalizada de inconstitucionalidade ao ponto de se impor que a questão suscitada o seja em sede de conclusões. Por outro lado, o recorrente argumentou que o facto de o Tribunal recorrido não ter tratado da questão não é, por si, impeditivo do conhecimento da mesma pelo Tribunal Constitucional, pois tal seria uma incompreensível 'limitação do direito ao recurso', no caso de o Tribunal recorrido ter aplicado efectivamente a norma.
II Fundamentação A A questão normativa objecto do recurso de constitucionalidade
4. É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição 'a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste' é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
5. Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo 120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.
B A questão prévia do não conhecimento do recurso por não suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo
6. Na contra-motivação apresentada, a fls. 269, o recorrente refere-se expressamente à violação pelo artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982, dos artigos 29º, nºs 1 e 3, e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição. Assim, só é questionável o modo como foi colocada perante o tribunal de recurso a questão de constitucionalidade, e nunca, em absoluto, a sua não suscitação. Porém, quanto ao modo de suscitação, deve concluir-se que a questão de constitucionalidade foi suscitada explicitamente, sendo o argumento de uma violação das 'preocupações garantísticas da Constituição' conjuntamente com a referência aos preceitos constitucionais um dos fundamentos da contra-motivação do recurso. Por outro lado, a exigência legal de levar às conclusões das alegações de recurso as questões suscitadas (artigo 690º do Código de Processo Civil) não poderá entender-se num sentido excessivamente formalístico bastando que tais questões surjam como conclusões do recurso, num sentido lógico. Poderá, portanto, dizer-se que a questão de constitucionalidade, enquanto argumento central da contra-motivação do recurso, tem que ser entendida como uma conclusão do recurso e que, por isso, reclamaria, necessariamente, uma decisão pelo tribunal de recurso, aceitando-a ou rejeitando-a. O facto de o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação não ter considerado explicitamente tal questão não impede que a aplicação do Direito que realizou não tivesse implicado, necessariamente, uma resposta negativa à questão de constitucionalidade. A falta de problematização da questão de constitucionalidade no texto do acórdão não obsta a uma verdadeira decisão dessa mesma questão (sobre os poderes de interpretação do Tribunal Constitucional quanto ao sentido das decisões recorridas, cf., entre outros, o Acórdão nº
184/90, D.R., II Série, de 21 de Maio de 1996). Deste modo, deve o Tribunal conhecer a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, não considerando procedente a questão prévia suscitada tanto pelo Ministério Público como pelo outro recorrido.
Por outro lado, o facto de o recorrente invocar a alínea f) do artigo 70º (recurso de legalidade) da Lei do Tribunal Constitucional não tem, neste caso, qualquer cabimento por não se divisar qualquer questão de legalidade tal como a que é contemplada nessa mesma alínea do artigo 70º.
C A eventual inconstitucionalidade do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982, por violação dos artigos 29º, nºs 1 e 4 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição
7. O problema de constitucionalidade que o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 coloca, suscita, de imediato, as duas dimensões seguintes:
Em primeiro lugar, a que resulta da dúvida sobre se a interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982, após a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, com referência ao momento da constituição de arguido em processo penal, corresponde a uma interpretação extensiva ou a uma analogia da referida norma quanto à interrupção da prescrição do procedimento criminal. Em segundo lugar, a que se conexiona com a compatibilização de tais processos interpretativos com a Constituição, no instituto da interrupção da prescrição.
Com efeito, a análise das questões referidas impõe-se porque a matéria da prescrição do procedimento criminal é habitualmente sujeita pela doutrina aos vários crivos limitativos da interpretação jurídica e aplicação da lei no tempo vigentes no Direito Penal por imposição constitucional (sobre a natureza do instituto da prescrição em geral e as suas relações com o princípio da legalidade, cf. Eduardo Correia, 'Actos processuais que interrompem a prescrição', Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 94, p. 353, e ano
108, p. 361 e ss.; Figueiredo Dias, Consequências jurídicas do crime, 1993, p.
698 e ss.). A sujeição da prescrição às decorrências do princípio da legalidade tem sido problematizada em função da sua qualificação como instituto de Direito Penal substantivo ou adjectivo, persistindo a primeira qualificação. Mas, independentemente do tratamento das relações entre a prescrição e o princípio da legalidade num plano classificatório, uma construção dogmática implantada nos fundamentos específicos da prescrição independentemente da sua natureza penal ou processual penal justifica o instituto por razões de necessidade da pena em conjugação com uma lógica de controlo do poder punitivo do Estado (cf. Fernanda Palma, 'Princípio da aplicação retroactiva da lei (penal) mais favorável e alteração de prazos prescricionais no direito de mera ordenação social', em Revista Fisco, nº 34, 1991). Com efeito, não é só a desnecessidade da pena que o decurso do tempo implica, quando o facto já foi assimilado ou esquecido pela sociedade, mas também uma responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto (cf. acerca desta dimensão de uma garantia de objectividade como inerente à legalidade e à proibição de retroactividade, Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2ª ed., p.95 e ss.) Na interrupção da prescrição, repercute-se aquela fundamentação, na medida em que o recomeço da contagem do prazo prescricional se justifica por ter havido uma actuação dos órgãos titulares do poder punitivo, ilustrativa objectivamente de uma efectiva possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto.
A prescrição é, com efeito, um instituto que revela uma lógica de relação punitiva pela qual é reclamado do Estado, titular do poder de punir, uma actuação célere e eficaz na definição e aplicação do Direito ao caso concreto. A interrupção da prescrição explica-se pela demonstração da capacidade e vontade de, justificadamente, actuar os meios conducentes ao exercício ou continuidade no exercício de acção penal, não podendo, assim, ser bastante qualquer actividade investigatória não reveladora daquela capacidade para interromper a prescrição.
8. Apesar de a proibição da analogia quanto à matéria da prescrição não estar, de modo literal, incluída na proibição da analogia quanto às normas incriminadoras e ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie, a proibição da analogia em matéria prescricional, nomeadamente quanto às causas de interrupção da prescrição, está sem dúvida justificada pelo referido controlo do poder punitivo do Estado através do Direito que criou, de modo que sem a verificação de factos previstos em lei penal (objecto de reserva de lei e inerente controlo democrático) como indiciadores de uma efectiva e sustentada vontade e capacidade punitiva do próprio Estado não será possível estabelecer causas interruptivas da prescrição.
Assim, mesmo que a garantia da previsibilidade para os reais ou hipotéticos agentes dos crimes dos prazos prescricionais não baste para justificar a proibição da analogia, ela será imposta pelo menos pela segurança democrática, relativamente ao controlo do exercício do poder punitivo, o qual não pode ser exercido sem limites objectivos democraticamente estipulados. Pelo menos neste sentido, a proibição da analogia das normas relativas à prescrição partilha dos fundamentos da proibição da analogia relativamente aos fundamentos da incriminação e insere-se no objecto de reserva relativamente à definição de crimes e penas, prevista no artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição.
9. Ter-se-á procedido a uma verdadeira integração de lacunas por analogia na aplicação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal? Ao retirar-se daquele preceito uma dimensão normativa não constante explicitamente do seu elemento literal - a de que a interrupção da prescrição (que já não podia ocorrer com a notificação para a instrução preparatória por a instrução preparatória ter deixado de figurar no sistema) seria determinada pelo primeiro interrogatório do arguido no inquérito, de acordo com o sistema instituído pelo Código de Processo Penal de 1987 - estar-se-ia a preencher uma 'lacuna de regulamentação'? Em certos termos, perguntar-se-á se, após a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, que suprimiu o sistema em que se inseria a instrução preparatória, terá correspondido à vontade legislativa uma substituição daquela pelo primeiro interrogatório do arguido no inquérito, sustentada ainda pelo elemento literal da primitiva redacção do artigo 120º, nº
1, alínea a), do Código Penal.
A resposta a esta questão será, sem dúvida, positiva, se aceitarmos como válida uma interpretação actualista do referido preceito, segundo a qual a vontade legislativa subjacente à não alteração do conteúdo do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, após a supressão da instrução preparatória pelo Código de Processo Penal de 1987, consistiria nessa compatibilização daquele preceito com o sistema do Código de Processo Penal de 1987. A manutenção do artigo 120º, nº 1, alínea a), teria tido, segundo esta interpretação, o sentido de revelar uma intenção legislativa de substituição da notificação do arguido para a instrução preparatória pela notificação para o primeiro interrogatório no inquérito. Tal intenção não seria, no entanto, dedutível da letra do artigo 120º, nº 1, alínea a), por si só, mas apenas da conjugação desta letra com o sentido da situação gerada pela não articulação da reforma processual penal com o preceituado no Código Penal. O sentido da letra da norma penal seria então determinado pelo significado da própria inércia legislativa. Como tal raciocínio resultaria de uma interpretação da inércia legislativa quanto à reformulação do artigo 120º, nº 1, alínea a), ele conduziria a uma interpretação actualista do seu texto. Seria, no entanto, ainda o texto da lei - o texto mantido - que conduzia à identificação do critério correspondente fornecido pelo Código de Processo Penal de 1987.
É este, pois, um quadro de entendimento da invocada interpretação actualista.
10. Impõe-se, então, saber se a referida interpretação actualista do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982, não corresponde, na realidade, a uma encapotada analogia, pela qual se estaria a colmatar uma
'lacuna de regulamentação' gerada pela reforma do Processo Penal. A citada interpretação actualista, que converte a referência contida no artigo
120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 ao conteúdo de normas do Código Processual Penal de 1929 no conteúdo mais próximo ou semelhante no novo sistema processual penal, ultrapassa, na verdade, uma mera determinação do sentido actual das palavras. Uma determinação do sentido actual das palavras pode acontecer, por exemplo, quando se verifica uma evolução no campo abrangido por um conceito, por se virem a integrar nele realidades anteriormente não pensáveis, como, por exemplo, ao integrar-se no conceito de arma, primitivamente pensado para meios mecânicos, as armas químicas (cf., sobre este exemplo, Arthur Kaufmann, Analogie und Natur der Sache, 1982, p. 70). A actualização do sentido do texto que agora se analisa implica, diferentemente, uma conversão dos conceitos integrantes do campo normativo primitivo em conceitos de um sistema diverso. Essa diversidade dos sistemas abrange o sentido e função das fases processuais, revelando-se, desde logo, no facto de a direcção do inquérito caber ao Ministério Público que formula a acusação, enquanto a direcção da instrução preparatória pertencia ao juiz de instrução. Por outro lado, a constituição de arguido, que no sistema antigo não se verificava num momento formalmente estabelecido nem tinha uma dimensão garantística, detém neste sistema essa dimensão, podendo ser decorrente de um acto de vontade do próprio agente (artigo
59º, nº 2, do Código de Processo Penal). A conversão operada pela interpretação realizada não é, deste modo, uma conversão necessária ou a única alternativa em face da manutenção do texto legal. Com efeito, há quem discuta se a transposição da instrução preparatória para o inquérito abrangerá todos os actos do inquérito ou apenas os de natureza instrutória levados a cabo nessa fase em que intervenha um juiz, ou ainda, se a dimensão garantística da constituição de arguido que se instaurou em 1987 poderia acarretar, em todos os casos, a interrupção da prescrição, estando-lhe sempre associado um momento processual revelador da expressão de vontade punitiva do Estado.
Perante as dificuldades a que obstaria uma conversão natural de um sistema no outro, é necessário concluir que os raciocínios analógicos que permitiram ao intérprete, no acórdão recorrido, manter a aplicação do artigo
120º, nº 1, alínea a), através de uma interpretação actualista partem de opções sobre a compatibilização do Código Penal com o Código de Processo Penal que não são livremente disponíveis pelo intérprete, mas que pela sua repercussão em direitos fundamentais são objecto necessário de reserva de lei [artigos 164º, alíneas b) e c), da Constituição].
Deste modo, conclui-se que o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na dimensão normativa que realiza a conversão da notificação para a instrução preparatória na notificação para o primeiro interrogatório do arguido no inquérito, embora não tenha que ser necessariamente qualificado como uma norma criada por analogia, no sentido clássico da distinção entre analogia e interpretação, é pelo menos o resultado de uma interpretação actualista da lei baseada em raciocínios analógicos, que implicam opções constitutivas de um regime, as quais pertencem à reserva de lei da Assembleia da República prevista nos artigos 164º, alíneas b) e c) da Constituição.
Poder-se-á, assim, concluir para quem perfilhe a concepção dogmática mais clássica sobre a interpretação e analogia que estaremos necessariamente perante um resultado interpretativo que ultrapassa o sentido possível das palavras e que, por isso, já não tem fundamento no pensamento legislativo.
Mesmo que assim não se entenda, admitindo-se que seja discutível que se tenha procedido a uma integração de lacunas por analogia, na medida em que há um critério jurídico que o intérprete retirou ainda do texto legal através da sua conversão na linguagem do novo sistema processual penal, pelo menos sempre concluirá que há uma colisão entre as possibilidades interpretativas utilizadas no caso e as autorizadas ao intérprete pela reserva de lei, violando-se o artigo
29º, nºs 1 e 3 [entre nós com a concretização qualificada do artigo 164º, alíneas b) e c), da Constituição]. Em suma, para esta última linha de pensamento, a interpretação realizada do artigo 120º, nº 1, alínea a), independentemente da sua qualificação enquanto espécie de interpretação, confere ao referido artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 uma dimensão normativa que pressupõe uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas, pelo intérprete, com implicação na configuração das consequências do crime, tarefa da competência da Assembleia da República [artigo 164º, nº 1, alíneas b) e c)] e que, por isso, também não está contida na intenção legislativa.
11. Adoptado este entendimento, por qualquer das vias enunciadas, pode o Tribunal deixar de enfrentar as questões da qualificação como interpretação extensiva ou analogia do sentido normativo sub judicio do artigo
120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 e, consequentemente, não terá que referir-se à questão de uma eventual proibição constitucional da interpretação extensiva no Direito Penal. Com efeito, nem é consensual na doutrina a validade construtiva do conceito de interpretação extensiva, como conceito limítrofe da analogia (cf. Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, 1984, p. 308 e ss.) nem muito menos há consenso na doutrina portuguesa sobre a não proibição constitucional de tal figura no Direito Penal (cf., entre outros, com opiniões divergentes entre si, Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, I, 1992, p. 64; Sousa e Brito, Lei Penal na Constituição, em Estudos sobre a Constituição, 2º vol., 1978, p. 253; Teresa Beleza, Direito Penal, 2ª ed., 1985, p. 491 e ss.; e Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Geral, 1994, p. 94 e ss.).
12. Por outro lado, o argumento de uma eventual contradição entre a norma sub judicio e o artigo 29º, nº 4, da Constituição não procede. Não se verifica, no caso, um verdadeiro problema de retroactividade e de aplicação das leis no tempo. Com efeito, o fundamento da decisão recorrida não é a norma prevista no artigo 121º, nº 1, alínea a), do Código Penal, após a Revisão de 1995, mas antes a referida interpretação actualista do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982. O critério jurídico da decisão não foi, assim, reportado ao novo texto da lei penal, introduzido somente após a prática dos factos, mas sim à norma já vigente, interpretada actualisticamente. Desta sorte, não só a interpretação actualista não era em si mesma uma aplicação retroactiva do Direito Penal porque pressupunha, pelo apoio literal em que se ancorava, que o sentido objectivo da lei já era determinável antes da prática dos factos, como também é indiscutível que a dimensão normativa sub judicio resultava de vários arestos proferidos antes da prática dos factos (assim constava dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Março de 1991, de 13 de Março de 1991, de
11 de Novembro de 1992; e do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 1992, referidos na decisão recorrida a fls. 292, verso).
Por tudo isto, a violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição não se verifica.
13. Finalmente, a invocada violação do artigo 32º, nº 4, da Constituição pelo artigo 120º, nº 1, alínea a), na dimensão normativa conferida pela citada interpretação actualista, na medida em que tal interpretação normativa remeteria para todo um sistema de direcção do inquérito pelo Ministério Público inconstitucional, refere uma questão já amplamente debatida neste Tribunal. O Tribunal Constitucional, porém, nunca considerou tal regime instituído pelo Código de Processo Penal de 1987 inconstitucional (cf., entre outros, o Acórdão nº 7/87, D.R., I Série, de 9 de Fevereiro de 1987). Seguir-se-á também aqui essa jurisprudência, pelo que não procede o argumento de que a interpretação actualista do artigo 120º, nº 1, alínea a), remete para um regime inconstitucional. Por essa razão não se afirmará a violação do artigo
32º, nº 4, da Constituição.
III Decisão
14. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, interpretado no sentido de que a interrupção do prazo prescricional se verifica a partir da notificação para as primeiras declarações do arguido na fase do inquérito, por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição, concedendo, consequentemente, provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 7 de Abril de
1999 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa [vencido, quanto à questão do conhecimento do recurso, por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal. Não podendo agora expor alargadamente o fundamento deste meu entendimento, direi apenas, a esse respeito, que a argumentação que em contrário se desenvolve nos nºs. 4 e 5 do acórdão não é de molde, a meu ver, a pôr em crise a conclusão (que é a minha) de que, ao cabo e ao certo, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade 'normativa' - tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nºs 682/95 e 221/95, os quais, ainda segundo o meu modo de ver, não são
'estruturalmente' diferentes do ora em apreço ].