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Proc. nº 370/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A P..., LDA., com sede na Rua Tierno Galvan, ..., em Lisboa, veio impugnar, nos termos do nº 2 do art. 111º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (Código do IRC) e do nº 2 do art. 151º do Código de Processo Tributário, a autoliquidação do imposto sobre o rendimento do exercício de 1993 com fundamento em erro resultante de erróneo apuramento da matéria colectável, após ter ocorrido o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada na respectiva Repartição de Finanças. A impugnante havia preenchido o impresso de auto-liquidação do IRC em consonância com a doutrina estabelecida pela Administração Fiscal e reclamara graciosamente.
Nessa impugnação alegou que havia acrescido à matéria colectável a importância respeitante à derrama liquidada com o IRC por obediência ao Despacho de 13 de Fevereiro de 1990 (Proc. nº 85/90), o qual não aceitou que a mesma derrama fosse considerada como custo de exercício, para efeitos fiscais, dado que, com a alteração, introduzida pelo Decreto-Lei nº
470-B/88, de 10 de Dezembro, ao art. 5º da Lei nº 1/87, de 1 de Junho (Lei das Finanças Fiscais), deixara de ser um imposto dependente - como sucedia com a derrama liquidada com a contribuição industrial - para passar a ser configurada como um imposto acessório relativamente ao IRC.
A impugnação deu entrada no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa em 28 de Agosto de 1995, foi contestada pelo representante da Fazenda Pública e veio a ser julgada improcedente por sentença de 4 de Julho de 1996. Nessa sentença considerou-se que a impugnante tinha razão na sua pretensão, segundo a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Administrativo, mas o art. 28º, nº 1, da Lei do Orçamento de Estado para 1996 (Lei nº 10-B/96, de 23 de Março) viera dar nova redacção à alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código do IRC, atribuindo eficácia retroactiva à nova redacção, ao qualificá-la de interpretativa (por força do nº 7 do art. 28º da mesma Lei do Orçamento).
Inconformada, a impugnante recorreu desta sentença para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, suscitando nas alegações a questão da inconstitucionalidade material do nº 7 do art. 28º da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março, enquanto 'cláusula de retroactividade da extensão operada no âmbito da previsão da alínea a), do nº 1 do Art. 41º do CIRC', por violação dos arts. 2º, 3º, 106º, nºs. 2 e 3, 18º, 17º e 60º da Constituição, considerando que seria intolerável o carácter retroactivo estabelecido. Além disso, sustentou que violara o princípio de legalidade tributária o Despacho de
13 de Fevereiro de 1990, sendo a interpretação nele perfilhada pela Administração Fiscal sobre o art. 41º do Código IRC inconstitucional por violar o art. 106º, nº 2, da Constituição.
O Ministério Público, no seu parecer, sustentou que não era inconstitucional a norma interpretativa referida.
Através de acórdão proferido em 14 de Maio de 1997, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso. Aí se afirmou:
' E, como norma interpretativa em sentido próprio (interpretação autêntica) - cfr. Ferrara, Interpretação e Aplicação da Lei (tradução de Manuel Andrade), págs. 131 e segs. - aquela nova redacção aplica-se aos processos pendentes já que se integra na lei interpretada - art. 12º, nº 1, do Cód. Civil - pelo que retroage os seus efeitos à data da entrada em vigor da lei antiga, tudo se passando como se a lei interpretativa tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada - cfr. C. Civil Anotado, cit., vol. 1, pág. 19. Daí que não se ponham quaisquer problemas de constitucionalidade, designadamente a nível da protecção da confiança. Na verdade, como refere o Exmº. Magistrado do M. P. :
«Neste contexto, tratando-se de uma questão de solução jurídica duvidosa, os contribuintes não tinham fundamentos para confiarem numa determinada interpretação da norma do art. 41º, nº 1, al. a) do CIRC e, assim, a sua interpretação autêntica não é susceptível de violar uma confiança fundada daqueles na adopção da interpretação que preferiam». Por isso, não será
«inconstitucional a referida norma». Não existe, pois, qualquer cláusula de retroactividade ilegítima, ofensiva dos princípios da legalidade e do Estado de direito democrático expressos nos arts.
106º e 2º da Constituição e, em consequência, do direito à propriedade privada consagrado no seu art. 60º, em suma, ao regime dos direitos, liberdades e garantias a que se referem os arts. 17º e 18º do mesmo diploma fundamental.' (a fls. 95 vº - 96 dos autos)
Inconformado com este acórdão, dele interpôs a sociedade impugnante recurso de constitucionalidade, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, indicando como objecto do recurso a questão da
'inconstitucionalidade da interpretação dada à alínea a), do nº 1, do Art. 41º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, por violação do princípio da legalidade consignado no Art. 106º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como na inconstitucionalidade do nº 7 do Art. 28º da Lei nº 10/96, de 23 de Março, norma esta que, ao qualificar de interpretativa a nova redacção dada à mencionada alínea a), do nº 1, do Art. 41º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, através do nº 1 do Art. 28º, da mesma Lei, consubstancia uma cláusula de retroactividade violadora do Art.
106º, nº 2, Arts. 2º e 3º, Art. 60º e Arts. 17º e 18º, todos da Constituição da República Portuguesa' (a fls. 100).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 102.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações a recorrente e a Fazenda Pública.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
' 1) Na redacção inicial da alínea a), do nº 1, do art. 41º do C.I.R.C., em vigor durante todo o ano de 1993, a que se refere a auto-liquidação de IRC objecto da sentença confirmada pelo Acórdão do STA, a Derrama era, nos termos do Art. 23º do mesmo Código, um custo dedutível.
2) O imposto municipal de Derrama não se podia considerar previsto naquela disposição do Art. 41º do C.I.R.C., por não ter tal interpretação um mínimo de correspondência na letra do preceito, encontrando-se, pois, fora do respectivo campo semântico.
3) A derrama é um imposto autónomo do IRC, relativamente ao qual não colhe o argumento, aceitável para o caso deste último, de que um imposto não pode, pela própria natureza das coisas, ser dedutível a si mesmo.
4) A referida interpretação que considera o imposto municipal de Derrama como custo não dedutível para efeitos fiscais, faz uma aplicação analógica da norma contida naquela alínea do art. 41º do C.I.R.C..
5) A aplicação analógica desse preceito viola o princípio da legalidade, consagrado no Art. 106º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
6) A nova redacção dada à alínea a), do nº 1, do Art. 41º, do C.I.R.C., pelo Art. 28º, nº 1, da Lei nº 10/96, de 23 de Março, tem carácter inovatório.
7) A declaração contida no nº 7, do Art. 28º, da Lei nº 10/96, de 23 de Março quanto à natureza interpretativa dessa norma corresponde a uma cláusula de retroactividade.
8) Tal conteúdo retroactivo pretendido atribuir à nova redacção da Alínea a), do nº 1, do Art. 41º, do C.I.R.C. é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade em matéria fiscal consagrado no Art. 106º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (anterior versão).
9) Esse conteúdo retroactivo viola ainda os princípios do Estado de Direito democrático, consagrado no Art. 2º, do direito de propriedade privada consagrado no Art. 60º, o qual goza, por força do Art. 17º, do regime dos Direitos, Liberdades e Garantias consignado no Art. 18º, todos da Constituição.
10) Em virtude da nova redacção do nº 3 do Artigo 103º da Constituição da República Portuguesa, essa norma retroactiva encontra-se agora, inquestionavelmente, ferida de inconstitucionalidade superveniente.
11) Nos termos do Art. 107º da Constituição, os Tribunais não podem aplicar normas que infrinjam os princípios e normas dela constantes.' (a fls. 121 e 122)
O representante da Fazenda Pública, por seu turno, concluiu do seguinte modo:
'a) A «Derrama» é um imposto acessório do IRC, configuram ambos realidades distintas no sistema fiscal; b) Todavia a sua natureza de imposto sobre o rendimento, tal como o IRC, determina que, na lógica deste imposto, não seja admitida a respectiva ponderação como custo fiscal; c) Porque tais custos têm que antecipar a obtenção de proveitos (que dão origem aos rendimentos tributáveis), ou seja, terá que se situar a montante e não a jusante do cálculo da matéria colectável; d) Admitir que a «Derrama» é um custo do IRC é provocar um «efeito fiscal nulo», já que impostos com a mesma natureza se vão anular recíprocamente; e) Por isso o tratamento dado ao IRC em matéria de qualificação de custo fiscal tem que ser alargado à «Derrama»; f) A nova redacção dada à alínea a) do nº 1 do art. 41º do CIRC tem natureza interpretativa integrando-se na lei interpretada e definindo por isso o seu sentido desde o início da sua vigência, como aliás preconiza o art. 13º do Código Civil; g) Efectivamente, a nova redacção não tem carácter inovatório mas confirmativo de uma realidade que, por força da própria lógica, princípios e regras do IRC, desde sempre existiu; h) Não são por isso, nem a lei interpretada nem a lei interpretativa, violadoras de qualquer preceito ou princípio constitucional.' (a fls. 132-133)
3. Foram corridos os vistos legais.
Importa conhecer do recurso, por não haver motivos que a tal obstem, começando por delimitar o respectivo objecto.
II
4. Começa-se por determinar qual o objecto do recurso.
A norma aplicada no acórdão recorrido é a norma do art. 41º, nº 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas
(abreviadamente, Código do IRC), na redacção introduzida pelo art. 28º, nº 1, da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março, enquanto mandada aplicar retroactivamente pelo nº 7 deste mesmo artigo, por ter sido qualificada de interpretativa da redacção anterior.
A primitiva redacção do art. 41º, nº 1, alínea a), do Código IRC estatuía:
' Não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas de exercício: a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), incluindo as importâncias pagas por retenção na fonte ou por conta; [...]'
A nova redacção da mesma alínea a) passou a dispor (alteração introduzida pelo art. 28º, nº 1, da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março):
'a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros; [...]'
Por seu turno, o nº 7 deste art. 28º da Lei nº 10-B/96 (Lei do Orçamento de Estado de 1996) dispõe:
' A redacção dada nos termos do nº 1 à alínea a) do nº 1 do artigo 41º do Código do IRC tem natureza interpretativa.'
5. Para compreender plenamente a questão de constitucionalidade posta no presente recurso, importa historiar brevemente a génese do problema que suscitou dúvidas à doutrina e à jurisprudência fiscais.
Antes da Reforma Fiscal de 1988, entrada em vigor em 1 de Janeiro de
1989, o art. 5º, nº 1, da Lei das Finanças Locais (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro) previa que os municípios podiam 'lançar derramas que não excedam 10% sobre as colectas liquidadas na respectiva área em contribuição predial rústica e urbana e em contribuição industrial' (sobre a situação do direito anterior vejam-se o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 69/84, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 345, págs. 72 e segs.; C. A. Carvalho Jordão, O problema da correcção legal, na liquidação das derramas municipais, in Scientia Ivridica, XXXVI, ano 1987, págs. 132-138; Soares Martinez, Direito Fiscal, 9ª ed., Coimbra, 1997, págs. 485 e segs.; A. L. Sousa Franco, Finanças do Sector Público. Introdução aos Subsectores Institucionais, Lisboa, 1990-1991, págs. 470 e segs., sobre a evolução dos regimes de finanças autárquicas).
No domínio da versão originária da Lei de Finanças Locais de 1987, era entendido que a derrama era um imposto local autónomo, embora dependente, e não um imposto acessório, a ele ficando mesmo sujeitas as pessoas temporariamente isentas dos impostos principais (nºs. 3 e 4 do art. 5º dessa Lei). Tal solução fora, aliás, já consagrada pelo Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março (cfr. acórdão nº 606/95 do Tribunal Constitucional, in Diário da República, II Série, nº 64, de 15 de Março de 1996).
Com a eliminação do sistema de tributação directa antiga (impostos cedulares sobre o rendimento, com um imposto correctivo de sobreposição, o imposto complementar), por força de aprovação da Reforma de 1988, foi publicado um novo diploma, o Decreto-Lei nº 470-B/88, de 19 de Dezembro, que deu nova redacção ao art. 5º da Lei das Finanças Locais, passando a determinar-se que os municípios podem 'lançar uma derrama, que não pode exceder 10% sobre a colecta do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), relativa ao rendimento gerado na sua área geográfica' (veja-se a apreciação da constitucionalidade do art. 38º da Lei nº 106/88, de 17 de Setembro sobre a permissão de lançamento de derramas pelos munícipios constante do acórdão nº
57/95, ponto 13.2., in Diário da República, II Série, nº 87, de 12 de Abril de
1995).
A eliminação dos nºs. 3 e 4 da redacção anterior do art. 5º da Lei das Finanças Locais pretendeu tornar a derrama um imposto acessório, voltando-se
à opção legislativa da Lei das Finanças Locais de 1979. Nessa medida, a Administração Fiscal veio a entender que não podia o montante da derrama ser considerado como custo para efeitos da alínea f) do nº 1 do art. 23º do Código IRC ('encargos fiscais e parafiscais') - despacho de 13 de Fevereiro de 1990
(Processo nº 85/90), referido pelo ora recorrente no art. 5º da petição de impugnação, solução que veio a constar da Circular nº 14/95 da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. A regra do acessorium principale sequitur impedia, pois, a consideração da derrama como custo fiscal, aplicando-se a norma do art.
41º, nº 1, alínea a), CIRC.
O entendimento da Administração Fiscal começou por ser sufragado pela jurisprudência da 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, mas um acórdão de 1 de Fevereiro de 1995 desse Alto Tribunal afastou-se de tal entendimento, tendo decidido que a derrama devia ser considerada como custo fiscal, nos termos do art. 23º, nº 1, alínea f), do Código IRC. Nesse acórdão considerou-se que, sendo a regra geral a dedutibilidade de todos os encargos fiscais como custos, a norma da alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código IRC seria excepcional e, por isso, insusceptível de aplicação analógica (cfr. Rogério Fernandes Ferreira, criticando a doutrina do acórdão de 1995, A Derrama
é ou não um Custo Fiscal?, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 378, págs. 9-15). Nessa medida, não se podendo confundir os conceitos de IRC e de derrama, e não podendo ver-se a derrama como mero adicional do IRC, mas antes como um imposto local acessório deste, tinha que se concluir que a derrama não podia caber na norma excepcional da alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código IRC.
6. Face a esta controvérsia jurisprudencial, o legislador fiscal interveio em 1996, esclarecendo que a derrama não podia ser considerada como custo fiscal, e que a norma da alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código do IRC (na redacção de 1996), era interpretativa do direito anterior.
7. Será constitucionalmente censurável a resolução da controvérsia jurisprudencial através de uma norma de natureza interpretativa e, portanto, com eficácia retroactiva (art. 13º do Código Civil)?
8. Importará antes de mais determinar o parâmetro constitucional sobre este caso de retroactividade fiscal, em que pode estar em causa uma inconstitucionalidade material superveniente da solução tida como interpretativa do direito ordinário anterior (nº 7 do art. 28º da Lei nº
10-B/96).
De facto, a quarta revisão constitucional veio estabelecer a proibição da retroactividade fiscal, nos seguintes termos: Art. 103º, nº 3 (redacção da Lei Constitucional nº 1/97, de 25 de Setembro)
' Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.'
Simplesmente, a consagração - em termos inovatórios - da proibição de retroactividade em matéria de impostos foi superveniente em relação ao acórdão recorrido, o qual foi proferido em 14 de Maio de 1997 (a Lei Constitucional nº 1/97, de 25 de Setembro, entrou em vigor em 5 de Outubro do mesmo ano).
Ora, estando a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, confinada 'à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada' (art. 71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional), o parâmetro constitucional que deve ser tido em conta é o resultante do texto da Constituição vigente à data da aplicação da norma [nesse sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão nº 408/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs. 1147 e seguintes, onde se afirma que a 'inconstitucionalidade superveniente não invalida a norma para o passado (ela continua a não ser inconstitucional nesse segmento temporal)', e que a inconstitucionalidade superveniente por força de uma revisão constitucional produz efeitos negativos ao inconstitucionalizar soluções consagradas no direito infraconstitucional, anteriormente conformes à Constituição, concluindo-se no sentido de que o parâmetro constitucional a ter em conta, quando esteja em causa a inconstitucionalidade material, 'é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma que é questionada'; na doutrina, remete-se para Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs.1059-1060; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, II, Coimbra, 3ª ed., 1991, págs. 277 e seguintes].
Ora, no caso concreto, parece indubitável que a aplicação da lei interpretativa ocorreu pela primeira vez na decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância, (em 4 de Julho de 1996) tendo o Supremo Tribunal Administrativo confirmado essa aplicação na data acima indicada (14 de Maio de 1997), ou seja, também em data anterior à entrada em vigor da Lei Constitucional nº 1/97, de 25 de Setembro.
9. Pode, assim, concluir-se que a nova redacção do nº 3 do art. 103º do texto resultante da quarta revisão constitucional não pode servir de parâmetro à questão de constitucionalidade que é posta à consideração do Tribunal Constitucional, o que implica que não tenha de discutir-se se a retroactividade da lei interpretativa está proibida pelo novo texto constitucional.
10. Sendo o parâmetro de constitucionalidade o texto da Constituição anterior à quarta revisão constitucional, o entendimento do Tribunal Constitucional tem sido o de que, não estando expressamente proibida a existência de leis fiscais retroactivas, poderia haver casos em que a retroactividade da lei fiscal gerasse inconstitucionalidade. No dizer de José Casalta Nabais, o princípio da não retroactividade das leis fiscais não podia:
'... retirar-se indirectamente, quer da proibição de leis retroactivas restritivas de direitos, liberdades e garantias, uma vez que os impostos, ao menos em geral, não devem ser vistos como restrições de direitos (nomeadamente do direito de propriedade), mas sim como a concretização de limites imanentes desses direitos decorrentes do dever fundamental de pagar impostos (pressupostos de qualquer Estado fiscal) [...], quer do princípio da legalidade fiscal. Esta ideia está de resto consignada em diversos Acs. que o TC já proferiu sobre impostos retroactivos (maxime, nos Acs. 11/83 e 141/85) impostos estes que têm sido testados com base exclusivamente no princípio da protecção da confiança
ínsito na ideia de Estado de direito democrático [...]' (Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, ob. colectiva, Lisboa, 1993, pág. 277).
De harmonia com o critério adoptado pela Comissão Constitucional, o Tribunal Constitucional tem considerado que o legislador não poderá nunca impor
'a retroactividade em termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes, cuja defesa constitui um dos princípios do Estado de direito social' (formulação do Parecer nº 25/81 da Comissão Constitucional, reproduzida no acórdão nº 409/89, in Acórdãos cit., 13º vol., tomo II, pág. 1176), isto é, a retroactividade não poderá ser qualificada como arbitrária, intolerável, opressiva, ou envolver uma 'violação demasiado acentuada' do princípio da confiança do contribuinte. Em contrapartida, 'a retroactividade tributária terá o beneplácito constitucional sempre que razões de interesse geral a reclamem e o encargo para o contribuinte se não mostrar desproporcionado - e mais ainda o terá se tal encargo aparecia aos olhos do contribuinte como verosímil ou mesmo como provável' (formulação do Parecer da Comissão Constitucional nº 14/82 referido igualmente no acórdão nº 37/96, publicado no Diário da República, II Série, nº 103, de 3 de Maio de 1996, onde se identificam as decisões anteriores do Tribunal Constitucional; vejam-se ainda os acórdãos nºs. 410/95 e 1006/96, in Diário da República, II Série, nº 265, de
16 de Novembro de 1995 e nº 286, de 11 de Dezembro de 1996, e sobre esta jurisprudência, por último, J. M. Cardoso da Costa, O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, em Perspectivas Constitucionais - Nos 20 Anos da Constituição de
1976, ob., colect., II, Coimbra, 1997, págs. 415 e segs.).
11. Aplicando estes critérios - que são, de resto, referidos , embora dirigindo-lhes algumas críticas, pela empresa recorrente nas suas alegações - à norma interpretativa introduzida pela Lei nº 10-B/96, é fácil ver que o recurso tem de improceder.
12. De facto, a recorrente começou por auto-liquidar o imposto, não considerando a derrama como custo fiscal, em obediência ao critério interpretativo adoptado pela Administração Fiscal, embora dele discordasse. Todavia, a recorrente não ignorava que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo era contrária à tese por si perfilhada até 1995, tendo nesse ano sido tirado um acórdão de sentido oposto que foi objecto de crítica por alguma doutrina fiscalista. Tal levou à reafirmação da doutrina da Administração Fiscal, a qual veio a ser consagrada pelo legislador logo em 1996, conferindo eficácia interpretativa à norma nova.
Neste contexto, pode dizer-se que era de esperar que a oposição de decisões do Supremo Tribunal Administrativo viesse a dar origem a uma intervenção do legislador, não podendo os contribuintes que já haviam acatado, sob protesto, a orientação da Administração Fiscal ter como inverosímil ou improvável tal intervenção ou até mesmo a fixação da jurisprudência no sentido que lhes era desfavorável.
Não pode, por isso, considerar-se que a retroactividade decorrente da adopção de uma lei interpretativa viole de forma intolerável ou chocante as expectativas dos contribuintes que lutavam por uma decisão judicial favorável.
13. Não é, assim, susceptível de censura a doutrina exarada no acórdão recorrido, não sendo inconstitucional o disposto no nº 7 do art. 28º da Lei nº 10-B/96, enquanto considera interpretativa a nova redacção da alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código IRC, introduzido pelo nº 1 do mesmo art. 28º.
14. Ficam, por isso, prejudicadas as questões suscitadas pela recorrente acerca da inconstitucionalidade da interpretação analógica de normas fiscais excepcionais por violação do princípio da legalidade tributária, ou a alegada violação dos arts. 2º, 62º, nº 1, 17º e 18º da Constituição.
III
15. Termos em que decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido no que toca ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa