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Processo nº 660/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça
(Secção Criminal), em que figuram como recorrente M... e como recorrido o Ministério Público, lavrou o Relator a EXPOSIÇÃO a que se refere o artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº
85/89, de 7 de Setembro (e antes da redacção introduzida pela Lei nº 13-A/98, de
26 de Fevereiro), e que por comodidade se transcreve:
'1. M..., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção Criminal), de 10 de Julho de 1997, que, concedendo parcial provimento ao recurso por ele interposto, anulou parcialmente o acórdão condenatório da primeira instância (o acórdão do colectivo do Tribunal de Circulo e de Comarca de Aveiro, que havia condenado o recorrente numa pena única de prisão e de multa pela
'prática de um crime de burla agravada, pº e pº pelos artºs 313º nº 1 e 314º, nº
1, do CP de 1982' e pela 'prática de um crime de fraude fiscal pº e pº pelo artº
23º nº 1, alínea a), do DL 20-A/90, de 20.01') 'a partir do segmento que nele é designado por 'Fundamentação', inclusivé, para que o Tribunal notifique o arguido sobre a possibilidade dele estar confrontado com incriminação mais gravosa do que a constante da pronúncia, e após apreciação quanto ao modo como o arguido se posicione relativamente a tal assunto, ser então dado cumprimento ao estatuído no nº 3 do aludido artigo 369º, com o mais que se acha configurado nos nºs 3 e 4 do artigo 374º do C.P.Penal'.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, fundado 'nos artºs 280º, nºs 1, al. b), 4 e 5, da Constituição da República, e
70º, nºs 1, al. b) e 2, 72º, nº 2, e 75-A, todos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi trazida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro', manifesta o recorrente discordância 'do modo como, no caso, é permitido do direito de defesa do arguido e recorrente, quando se dá como assente toda a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal Colectivo'.
E acrescenta:
'O arguido preparou a sua defesa inicial (contestação) escolhendo defensor, alegando ou omitindo factos, indicando testemunhas, tendo como referência o modelo que lhe foi dado pela pronúncia, para essa sua estratégia defensiva, naturalmente no sentido de evitar a condenação (no caso por se sentir inocente). Ora em face de indiciação criminal diversa daquele modelo inicial dado pela pronúncia, diferentes serão os factos a alegar na nova defesa ou contestação, novas serão as testemunhas e os demais meios de prova a requerer e até o defensor escolhido pode ser outro, segundo critério de especialização... E - o que é mais importante - com novos factos (quais contra factos em relação aos da pronúncia) e novos meios de prova, orientados pelo novo modelo referencial de submissão a julgamento, é bem possível (porque a prova deve ser apreciada a final e globalmente) que a factualidade da pronúncia não deva ser julgada provada!
(...) Com todo o devido respeito, o que o Douto Acórdão deste Tribunal, em matéria de direito defesa, aceita pela porta deixa sair pelas janelas. O direito de defesa do arguido já vai condicionado pela matéria de facto julgada provada.
O livre desenvolvimento do princípio e da garantia do pleno direito de defesa implica que, no caso, se depois de o arguido notificado da alteração da qualificação jurídica dos factos, requerer prazo e apresentar nova contestação, toda a douta sentença do Tribunal Colectivo seja anulada, bem como o correspondente julgamento, e ordenado e reenvio do processo para novo julgamento. Só assim se concretiza o referido direito de defesa'. Para concluir que, 'com a interpretação com que este Venerando Tribunal a aplicou no presente caso, é inconstitucional a norma do artº 1º, al. f), do C.P.Penal, conjugada com as dos artºs 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2,
359º, nºs 1 e 2 e 379º, al. b) do mesmo diploma legal, por violação frontal do princípio que assegura ao arguido todo o direito de defesa, consignado no nº 1 do artº 32º da Constituição da República'.
3. Acontece que o Tribunal Constitucional já decidiu nos acórdãos nºs
279/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 173, de 28 de Julho de
1995, e 16/97, publicado no mesmo Diário, nº 50, de 28 de Fevereiro de 1997, que
é inconstitucional o disposto naquele conjunto normativo, por violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1, da Constituição, 'interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
E lê-se na parte final do acórdão nº 279/95, adoptado no acórdão nº
16/97:
'Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração. A solução está, assim, na compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo esse direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos descritos na acusação ou pronúncia, naturalisticamente considerados, importe condenação em pena mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação,
quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.' Aderindo aos fundamentos daqueles arestos, pois não se vê motivo para deles divergir, e dando-os como reproduzidos, há apenas que repetir aqui o mesmo juízo de inconstitucionalidade, conducente a que um exercício eficaz do direito de defesa do recorrente, tendo a ver com toda a estratégia de defesa ('a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc. - talqualmente se expressa o acórdão nº 279/95), passa pela situação processual localizada na fase de julgamento e não apenas pela anulação do acórdão da primeira instância 'a partir do segmento que nele é designado por 'Fundamentação', inclusivé', tal como se posicionou o Supremo Tribunal de Justiça, citando a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Com o que tem de revogar-se o acórdão recorrido, dando-se provimento ao presente recurso, para, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade do quadro normativo em causa - e todo o alcance que dele se possa e deva extrair -, se decretar a anulação do acórdão condenatório que sentenciou o recorrente.
'Ora, no nosso caso, o recorrente veio a ser condenado em primeira instância como autor material de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artºs. 313º., nº. 1 e 314º., nº. 1 do Código Penal de 1982; e de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artº. 23º., nº. 1, al. a), do Dec.-Lei nº.
20-A/90, de 20 de Janeiro. Tinha, porém, sido acusado e pronunciado apenas como autor de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artº. 300º., nºs. 1 e 2, al. a) do Código Penal de 1982. Sem discutir, por agora, o rigor da convolação operada, não foi essa possibilidade comunicada ao arguido que com ela se viu confrontado apenas na própria sentença condenatória, sendo certo que a pena prevista para o crime pelo qual foi condenado (1 a 10 anos de prisão) é superior à prevista para o crime pelo qual foi acusado (1 a 8 anos), sem esquecer que outro crime (fraude fiscal), foi ainda considerado como integrado pelos mesmos factos naturalisticamente considerados' - é o que se colhe das alegações do Ministério Público junto do Tribunal a quo.
4. Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo
2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro'.
B. Responderam à EXPOSIÇÃO o recorrente, que manifestou a 'sua inteira concordância', e o recorrido Ministério Público, dela discordando, desde logo, por lhe parecer 'que a questão suscitada neste recurso - sendo 'nova' relativamente às precedentes decisões tomadas pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente à constante do Acórdão nº 279/95 - não poderá propriamente ser qualificada de 'simples', e apontando a confirmação do julgado.
É este, em síntese, o discurso da resposta longamente desenvolvida pelo Ministério Público (partindo, aliás, da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do mesmo conjunto normativo em questão nestes autos, e constante do acórdão nº 445/97, publicado na I Série-A, nº 179, de 5 de Agosto de 1997):
- 'Assente tal inconstitucionalidade - (...) - o que está em causa no presente recurso é questão 'nova' e superveniente, relativamente ao juízo de inconstitucionalidade já formulado - e que se reporta às concretas consequências procedimentais, em sede de tramitação da causa penal, de convolação jurídica operada aquando do julgamento na 1ª instância.
É que ao Tribunal Constitucional não cumpria naturalmente, atentos os seus poderes cognitivos, cir cunscritos à apreciação das questões de inconstitucionalidade normativa suscitadas, especificar quais eram as consequências, no plano da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, que fluíam do juízo de inconstitucionalidade que formulou - determinando, nomeadamente, quais as concretas consequências, ao nível da tramitação do processo penal, do dever de prevenção do arguido acerca da requalificação jurídica dos factos (ou
'convolação' para crime mais grave) que inferiu dos princípios do contraditório e das garantias de defesa'.
- é evidente que quanto a este ponto 'diversas - e bem diferenciadas - concepções são possíveis', enveredando o acórdão recorrido essencialmente por uma 'perspectiva bem menos exigente', ao entender-se nele, se bem interpretado, que 'o objecto do dever de prevenção do arguido da qualificação considerada
'correcta' dos factos se esgotará em facultar-lhe a possibilidade de questionar
- no estrito plano das razões de direito - a pretendida requalificação que o tribunal, no exercício dos seus poderes de cognição 'oficiosa' do direito, entende levar a cabo. Neste entendimento, é evidente que se não justificará facultar ao arguido a rediscussão da matéria
de facto - que permanece intocada - nem a global reformulação da sua
'estratégia' de defesa, mas tão-somente dar-lhe oportunidade processual para se pronunciar sobre o - no entendimento do tribunal - correcto enquadramento jurídico dos factos. A finalidade deste dever de prevenção seria, pois, facultar ao arguido a dedução de razões de direito que, na sua óptica, inviabilizassem a pretendida requalificação jurídica dos factos, a realizar pelo tribunal eventualmente em seu detrimento. E é neste sentido que este dever de prevenção surgirá efectivamente conexionado com o princípio geral da proibição das decisões - surpresa, hoje em dia afirmado explicitamente pelo artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil revisto: ou seja, o tribunal não poderia, no exercício dos seus inquestionáveis poderes de apreciação e indagação oficiosa do direito, convolar da base normativa em que a causa, até certo momento, assentara, para outra base ou fundamento jurídico, sem facultar à parte ou sujeito processual prejudicado por tal convolação 'oficiosa' a possibilidade de influenciar, com a dedução das razões de direito que entendesse pertinentes, a solução jurídica do pleito'.
- 'No presente recurso, não estará apenas em causa verificar se há alguma
'colisão' entre o decidido naquele acórdão pelo Tribunal Constitucional e na decisão ora recorrida pelo Supremo Tribunal de Justiça (aliás, o recurso não se mostra fundado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, mas na alínea b) deste diploma legal), mas apreciar uma questão de inconstitucionalidade que terá essencialmente ver com a definição das exactas consequências, ao nível da tramitação da audiência em processo penal, do juízo de inconstitucionalidade formulado naquele acórdão nº 279/95 - surgindo, de algum modo, esta 'nova' questão de constitucionalidade como 'desenvolvimento' ou 'consequência' do juízo de inconstitucionalidade inicialmente formulado pelo Tribunal Constitucional, e tendo agora como essencial referência normativa a norma do artigo 368º do Código de Processo Penal (cfr., fls. 485 verso). Note-se, aliás, que em processo em que se controverte questão com alguma analogia ou conexão com a discutida nestes autos - o p. 541/97, da 1ª Secção - foi inclusivamente determinada a intervenção do Plenário deste Tribunal.
(...)Numa análise liminar da questão, não deixare
mos de referir que, no nosso entendimento, nos parece manifestamente excessiva a tese sustentada pelo recorrente acerca das consequências processuais do direito do arguido a ser ouvido sobre a requalificação dos factos. Na verdade, o arguido teve plena oportunidade processual para controverter integralmente, no decurso da audiência, a matéria de facto que constava da acusação ou da pronúncia - e que permanece, em absoluto, intocada. Nada justifica, deste modo, a nosso ver, que se anule na totalidade a audiência de julgamento só pelo facto de ocorrer uma possível alteração na qualificação jurídica, sendo perfeitamente garantido o direito de defesa do arguido através da solução a que chegou o douto acórdão recorrido, que assim deveria ser confirmado'.
C. Vistos os autos, cumpre decidir, não sendo aplicável a citada Lei nº 13-A/98 (artigo 6º, nº 1).
D. A questão a resolver, e que passa por um juízo de inconstitucionalidade - só por mera inadvertência não foi citado na EXPOSIÇÃO o acórdão nº 445/97 -, tem a ver com o exercício eficaz do direito de defesa do arguido que é confron
tado com uma nova incriminação ('incriminação mais gravosa do que a constante da pronuncia'; de que se fala no acórdão recorrido e é identificada nas alegações do Ministério Público junto do Tribunal a quo).
Ora, a estratégia de defesa do arguido não se compadece com a
'perspectiva bem menos exigente' que foi acolhida no acórdão recorrido, no entendimento que dele fez o recorrido Ministério Público, e aqui se aceita, pois não basta ponderar a intocabilidade da matéria de facto que constava da acusação ou da pronúncia. A dialéctica tem de ir mais longe, pois o preenchimento de tipos legais de crimes com penas distintas envolve ou pode envolver um posicionamento do arguido também diferente (uma coisa, como acontece aqui, é a defesa perante um crime de abuso de confiança e outra é a defesa face a um crime de burla agravada e a um crime de fraude fiscal, estes com ressonância sócio-cultural bem diferenciada).
Surpreendido o arguido com a tal nova e mais gravosa incriminação e posto perante realidades jurídico-criminais que então não preparara para se defender, não basta dizer que, havendo coincidência essencial entre a matéria de facto provada e não provada em julgamento com a da acusação ou da pronúncia, o arguido teve 'plena oportunidade processual' para controverter os factos. Pois que, interessando também à defesa
do arguido conhecer a correcta qualificação jurídico-penal desses factos, pode ele ficar prejudicado ao contestar com a invocação de matéria de facto que seleccionara face à acusação e à pronúncia e até ao organizar o rol de testemunhas, peritos e consultores técnicos (artigo 315º do Código de Processo Penal), sobretudo quando, como é o caso dos autos, tudo gira em torno do IVA e de facturas e documentos atinentes a esse imposto e em conjugação com transacções comerciais.
Como se pode ler no citado acórdão nº 445/97:
'Sendo facilmente admissível perante a realidade das coisas que diferente pode ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que - independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi delineada'.
Donde se não possa acolher o discurso argumentativo da resposta do Ministério Público, que não consegue abalar os fundamentos da jurisprudência constante deste Tribunal Cons
titucional nesta matéria da compatibilização da liberdade que, em processo penal, aos tribunais deve assistir quanto à qualificação jurídico-criminal os factos com 'uma real eficácia das garantias de defesa que, quanto a tal processo, são exigidos pela lei fundamental' ('uma real eficácia' que aqui não é assegurada com a solução a que de modo hábil chegou o acórdão recorrido), jurisprudência essa que conduziu mesmo à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da 'norma ínsita na alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de «Assento nº
2/93», na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão nº 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
E. Termos em que, DECIDINDO, e em aplicação da
declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do acórdão nº 445/97, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 179, de 5 de Maio de 1997, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, para ser reformado em conformidade com aquela declaração de inconstitucionalidade.
Lisboa,
Processo nº 660/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
EXPOSIÇÃO
1.M..., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção Criminal), de 10 de Julho de 1997, que, concedendo parcial provimento ao recurso por ele interposto, anulou parcialmente o acórdão condenatório da primeira instância (o acórdão do colectivo do Tribunal de Circulo e de Comarca de Aveiro, que havia condenado o recorrente numa pena única de prisão e de multa pela 'prática de um crime de burla agravada, pº e pº pelos artºs 313º nº 1 e 314º, nº 1, do CP de 1982' e pela 'prática de um crime de fraude fiscal pº e pº pelo artº 23º nº 1, alínea a), do DL 20-A/90, de 20.01')
'a partir do segmento que nele é designado por 'Fundamentação', inclusivé, para que o Tribunal notifique o arguido sobre a possibilidade dele estar confrontado com incriminação mais gravosa do que a constante da pronúncia, e após apreciação quanto ao modo como o arguido se posicione relativamente a tal assunto, ser então dado cumprimento ao estatuído no nº 3 do aludido artigo 369º, com o mais que se acha configurado nos nºs 3 e 4 do artigo 374º do C.P.Penal'.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, fundado 'nos artºs 280º, nºs 1, al. b), 4 e 5, da Constituição da República, e 70º, nºs 1, al. b) e 2, 72º, nº 2, e 75-A, todos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi trazida pela Lei nº
85/89, de 7 de Setembro', manifesta o recorrente discordância 'do modo como, no caso, é permitido do direito de defesa do arguido e recorrente, quando se dá como assente toda a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal Colectivo'.
E acrescenta:
'O arguido preparou a sua defesa inicial (contestação) escolhendo defensor, alegando ou omitindo factos, indicando testemunhas, tendo como referência o modelo que lhe foi dado pela pronúncia, para essa sua estratégia defensiva, naturalmente no sentido de evitar a condenação (no caso por se sentir inocente). Ora em face de indiciação criminal diversa daquele modelo inicial dado pela pronúncia, diferentes serão os factos a alegar na nova defesa ou contestação, novas serão as testemunhas e os demais meios de prova a requerer e até o defensor escolhido pode ser outro, segundo critério de especialização... E - o que é mais importante - com novos factos (quais contra factos em relação aos da pronúncia) e novos meios de prova, orientados pelo novo modelo referencial de submissão a julgamento, é bem possível (porque a prova deve ser apreciada a final e globalmente) que a factualidade da pronúncia não deva ser julgada provada!
(...) Com todo o devido respeito, o que o Douto Acórdão deste Tribunal, em matéria de direito defesa, aceita pela porta deixa sair pelas janelas. O direito de defesa do arguido já vai condicionado pela matéria de facto julgada provada. O livre desenvolvimento do princípio e da garantia do pleno direito de defesa implica que, no caso, se depois de o arguido notificado da alteração da qualificação jurídica dos factos, requerer prazo e apresentar nova contestação, toda a douta sentença do Tribunal Colectivo seja anulada, bem como o correspondente julgamento, e ordenado e reenvio do processo para novo julgamento. Só assim se concretiza o referido direito de defesa'.
Para concluir que, 'com a interpretação com que este Venerando Tribunal a aplicou no presente caso, é inconstitucional a norma do artº 1º, al. f), do C.P.Penal, conjugada com as dos artºs 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, al. b) do mesmo diploma legal, por violação frontal do princípio que assegura ao arguido todo o direito de defesa, consignado no nº 1 do artº 32º da Constituição da República'.
3. Acontece que o Tribunal Constitucional já decidiu nos acórdãos nºs 279/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 173, de 28 de Julho de 1995, e 16/97, publicado no mesmo Diário, nº 50, de 28 de Fevereiro de 1997, que é inconstitucional o disposto naquele conjunto normativo, por violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1, da Constituição, 'interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
E lê-se na parte final do acórdão nº 279/95, adop
tado no acórdão nº 16/97:
'Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração. A solução está, assim, na compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo esse direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos descritos na acusação ou pronúncia, naturalisticamente considerados, importe condenação em pena mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação, quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.'
Aderindo aos fundamentos daqueles arestos, pois não se vê motivo para deles divergir, e dando-os como reproduzidos, há apenas que repetir aqui o mesmo juízo de inconstitucionalidade, conducente a que um exercício eficaz do direito de defesa do recorrente, tendo a ver com toda a estratégia de defesa ('a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos
e não de outros, etc. - talqualmente se expressa o acórdão nº 279/95), passa pela situação processual localizada na fase de julgamento e não apenas pela anulação do acórdão da primeira instância 'a partir do segmento que nele é designado por 'Fundamentação', inclusivé', tal como se posicionou o Supremo Tribunal de Justiça, citando a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Com o que tem de revogar-se o acórdão recorrido, dando-se provimento ao presente recurso, para, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade do quadro normativo em causa - e todo o alcance que dele se possa e deva extrair
-, se decretar a anulação do acórdão condenatório que sentenciou o recorrente.
'Ora, no nosso caso, o recorrente veio a ser condenado em primeira instância como autor material de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artºs. 313º., nº. 1 e 314º., nº. 1 do Código Penal de 1982; e de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artº. 23º., nº. 1, al. a), do Dec.-Lei nº.
20-A/90, de 20 de Janeiro. Tinha, porém, sido acusado e pronunciado apenas como autor de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artº. 300º., nºs. 1 e 2, al. a) do Código Penal de 1982.
Sem discutir, por agora, o rigor da convolação operada, não foi essa possibilidade comunicada ao arguido que com ela se viu confrontado apenas na própria sentença condenatória, sendo certo que a pena prevista para o crime pelo qual foi condenado (1 a 10 anos de prisão) é superior à prevista para o crime pelo qual foi acusado (1 a 8 anos), sem esquecer que outro crime (fraude fiscal), foi ainda considerado como integrado pelos mesmos factos naturalisticamente considerados' - é o que se colhe das alegações do Ministério Público junto do Tribunal a quo.
4. Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85//89, de 7 de Setembro. Lisboa, 19 de Dezembro de 1997