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Proc.Nº 789/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1.- M..., SA deduziu perante o Tribunal Tributário do Porto impugnação da liquidação de emolumentos do registo comercial no montante de 1.131.000$00. A petição veio a ser liminarmente indeferida por se ter julgado o tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa.
Inconformada com esta decisão, a sociedade recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo (adiante, STA) - Secção de Contencioso Tributário, tendo aí formulado as seguintes conclusões:
1ª - O Meritíssimo Juiz a quo não se pronunciou sobre as questões que deveria apreciar, razão porque o citado despacho está ferido de nulidade, ao abrigo da alínea d), do nº' 1, do artigo 668º do Código de Processo Civil.
2ª - Na verdade, a sentença em apreciação é exactamente igual à proferida no âmbito do processo nº 1/95, que corre termos no mesmo juízo e tribunal, o qual diz respeito à impugnação, pela mesma M..., da liquidação de emolumentos notariais.
3ª - No entanto, do que se trata nos presentes autos é da impugnação da liquidação de emolumentos de registo comercial cobrados por ocasião da inscrição de diversas alterações dos estatutos, sobre o que o ilustre Juiz a quo não se pronunciou.
4ª - De toda a maneira, admitindo que se tratou de mero lapso, se se quiser transpor para o caso dos emolumentos de registo comercial as considerações apresentadas pelo Juiz a quo quanto à competência dos tribunais tributários, nem por isso a M... se conformaria com o teor do despacho de que ora se recorre.
5ª - Sendo tributo 'a prestação patrimonial estabelecido pela lei a favor de uma entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, com o fim imediato de obter meios destinados ao seu financiamento', não pode questionar-se a natureza tributária das receitas designadas por emolumentos, cuja qualificação como taxas é, aliás, objecto de um vasto consenso na jurisprudência e doutrina;
6ª - Mesmos os emolumentos que revertem directamente e apenas em benefício dos agentes relacionados com o serviço por que são devidos serão sempre
'importâncias de carácter tributário', constituindo, quando muito, um tertium genus, distinto dos impostos e das taxas;
7ª - O ponto, de resto, é irrelevante no que concerne aos emolumentos notariais e registrais, que representam, justamente, uma receita dos serviços (os serviços, e não os funcionários, e que a cobram e dela são titulares), estando afectos a todas as despesas a cargo do Cofre dos Conservadores, Notários e Funcionários de Justiça, ou seja, a todas as despesas respeitantes à existência e funcionamento dos referidos serviços (arts 65º e 66º do Dec.-Lei nº 519-F2/79, de 29.12);
8ª - De todas as formas, 'preços' ou receitas patrimoniais é que eles não são com certeza, dado que a sua cobrança se dá a propósito da prestação de serviços que são, por essência, da titularidade do Estado, de acordo com a concepção política dominante na sociedade, não se fazendo, por essa razão, objecto de oferta e procura num mercado e não resultando a correspondente obrigação de um acordo de vontades, antes revestindo natureza de uma obrigação legal (de direito público), fixada com independência de critérios de mercado;
POR OUTRA VIA:
9ª - O entendimento de que impugnação dos erros de conta se faz através de reclamação para o conservador, recurso hierárquico e, obtido o acto definitivo, recurso contencioso para a Iª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, só foi legítimo enquanto o regime, a propósito, resultava da conjugação do art. 69º do Dec.--Lei nº 519-F2/79 e 69º dos arts. 139º e segs. do Decreto Regulamentar nº
55/80, de 8/10, por um lado, com as regras gerais de impugnação dos actos administrativos, por outro lado, designadamente com a regra de que a competência para conhecer dos actos administrativos respeitantes a tributos cuja liquidação não estivesse a cargo da administração fiscal cabia aos tribunais administrativos e com a regra de que o acesso aos mesmos tribunais pressupõe que previamente se esgote a via hierárquica graciosa;
10ª - Nenhum preceito do Dec.-Lei nº 519-F2/79 ou do Decreto Regulamentar nº
55/80, com efeito, atribui competência para conhecer das impugnações de contas aos tribunais administrativos, ou recolhe especificamente para esta matéria o princípio de exaustão dos meios graciosos;
11ª - Ora os dados legais entretanto editados, já pelo significado que revestem em si mesmos, já pela nova luz que deitam sobre preceitos antigos, implicaram o afastamento das sobreditas regras gerais;
12ª- É assim, por um lado, que, à face do ETAF (arts. 32º, als. c) e d) 41º, al. b) e 62º, nº 1, al.a)), 'o conceito (subjectivo) de Administração Fiscal, que servia antes de suporte à distinção de competência entre os serviços de justiça fiscal e de justiça administrativa, deu lugar a um conceito (objectivo), de Administração fiscal, abrangendo todos os actos que sejam materialmente fiscais, independentemente do âmbito ou sede em que foram praticados e do estatuto e hierarquia do seu autor;
13ª - Demais disso, com a entrada em vigor do Código do Processo Tributário
(vejam-se, entre outros, os arts. 10º, 33º, 37º, al. c), 71º, al. f) e 233º,al. a)) passou a ser inquestionável que, no direito positivo português do contencioso tributário, a matéria 'tributária, fiscal', não se restringe aos impostos, estendendo-se a outras receitas que a doutrina mais significativa e representativa considera igualmente tributos - designadamente às taxas, nelas compreendidas os emolumentos;
14ª - É assim apodíctico que, hoje em dia, os emolumentos são 'receitas tributárias' e os actos da respectiva liquidação 'actos tributários' para efeitos, respectivamente, do art. 62º, nº1, al.a), do ETAF e dos arts. 18º e
118º do C.P.T.;
15ª - Daí, por conseguinte, que sejam os tribunais tributários de 1ª instância os competentes para conhecer dos recursos dos actos de liquidação dos emolumentos e daí, igualmente, que esses actos se tenham de haver como definitivos, enquanto praticados por autoridade competente em razão da matéria, e, por conseguinte, passíveis de uma imediata impugnação contenciosa;
16ª - Os próprios arts. 69º, nºs 4 e 5, do Dec.-Lei nº 519-F2/79 e 138º e 139º do Dec. Regulamentar nº 55/80, de resto, dão suporte literal à ideia de que as reclamações são meios alternativos da imediata impugnação contenciosa dos actos de liquidação dos emolumentos;
17ª - Aliás, se o sentido dos arts. 69º do Dec.-Lei nº 519-F2/79 e 138º e 139º do Dec. Regulamentar nº 55/80 fosse efectivamente o de configurar a exaustão da via administrativa como precedente obrigatório do recurso contencioso, então tais preceitos ou estariam afastados pelo art. 189 do C.P.T., ou seriam inconstitucionais, por violação do art. 268º, nº 4, da Constituição (que, na redacção de 1989, admite o recurso contencioso de anulação de qualquer acto que lese esferas jurídicas - como é o acto do conservador, fixando o valor da respectiva conta - sem dependência do requisito da definitividade jurídica constante do texto anterior);
18ª - Seriam ainda inconstitucionais, por violação do art. 2l4º,nº3, da Constituição, aqueles dos preceitos que vêm de ser referidos que hipoteticamente atribuíssem competência a jurisdição diversa da tributária (sendo certo que os anteriores ao ETAF teriam então sido revogados pelo art. l2lº deste diploma);
19ª - O despacho recorrido, julgando o tribunal incompetente em razão da matéria, violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art.
62º,nº1, al.a), do ETAF, nos arts. l8º,118º,nº1,al.a) e 123º,nº1, al.e) do C.P.T., nos próprios arts. 69º do Dec.-Lei nº519-F2/79,138º e 139º do Dec. Regulamentar nº 55/80, bem como, finalmente, nos arts. 214º, nº 3 e 268º,nº4, da Constituição da República; POR OUTRO LADO:
20ª - O processo está apetrechado com todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do mérito da causa.
21ª - A liquidação de emolumentos de que a impugnante foi alvo está ferida de invalidada, devendo, por isso, ser anulada com todas as consequências.
22ª - Com efeito, o art. l4º da Tabela de Emolumentos do Registo Comercial, na redacção que lhe foi dada pela Portaria nº 883/89, de 13 de Outubro, editada ao abrigo do disposto no art. 6º,nº 2, do Dec.-Lei nº 403/86, de 2 de Dezembro, enferma do vício de inconstitucionalidade e/ou de contrariedade ao direito comunitário, ofendendo o nº 2 do art. lO6º e a al.i) do nº1 do art. 168º da Constituição e o art. 1Oº da Directiva 691335/CEE;
23ª - Tal é o que resulta do facto de, por intermédio do art. 149º da Tabela, se estabelecerem receitas que, muito embora apresentem uma conexão com um serviço público individualizável, estão manifestamente desligadas, quanto ao seu montante, da actividade desenvolvida pela Administração;
24ª - A desproporção entre o tributo e o serviço é tal que se pode dizer que aquele se desligou completamente deste último, tornando-se, em boa verdade, uma receita abstracta. - um imposto -, sendo certo que a mesma foi estabelecido pelo Governo sem estar habilitado por competente autorização legislativa e que o imposto não obedece à estrutura do imposto sobre as entradas de capital consentido pela Directiva 69/335/CEE;
25ª - Quando assim se não entenda, sempre terá de conceder-se em que a mesma disposição - particularmente no caso concreto da impugnante -, cria uma receita pública manifestamente desproporcionada com os custos e a natureza do serviço prestado em troca, com o que quedam violados o princípio da proporcionalidade e o princípio da proibição dos excessos (cfr. nº2 do art.266º da Constituição) e ainda o sobredito artigo 1Oº da Directiva (dada a inaplicabilidade de qualquer das derrogações previstas pelo respectivo art. 12º, designadamente da que se contém no seu nº1, al.e))'.
Pelo seu lado, a autoridade recorrida, a Fazenda Pública, também alegou apresentando o seguinte conjunto de conclusões:
'1. São os tribunais tributários incompetentes em razão da matéria para conhecer da impugnação judicial da liquidação de emolumentos de registo e notariado por:
1.1 A LOSRN estabelecer de forma clara e inequívoca o meio de combater toda e qualquer ilegalidade que os actos de liquidação possam conter ao estatuir designadamente nos artigos 139º e l4Oº do Decreto Regulamentar nº
55/90, de 8 de Outubro que de qualquer erro da conta cabe reclamação verbal perante o conservador ou notário e da decisão deste reclamação para o director-geral dos Registos e do Notariado, com o consequente recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como decidiu o mesmo STA funcionando como Tribunal de Conflitos por acórdão de 12-3-92, face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do nº 7 do mencionado artigo 140º pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 36/87, in DR I Série de
4-3-87.
1.2 Na falta de pagamento da conta ser o Ministério Público junto do Tribunal da comarca que diligencia na execução - cfr. nº 3 do artigo 133º do Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro.
1.3 Se mostrar completamente prejudicada a competência para o tribunal tributário executar a cobrança coerciva de tais dívidas, de harmonia com o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 62º e nº 3 do artigo 63º do ETAF por não existir norma que determine a sua cobrança pelo processo de execução fiscal.
1.4 Não poder ter o tribunal tributário competência para conhecer dos recursos de actos de liquidação, sem ser competente para conhecer da exigibilidade ou legalidade da dívida em sede de execução.
1.5 A alínea a) do nº 1 do artigo 62º do ETAF carecer de conjugação com outro normas do contencioso tributário, pois a não ser assim, o conhecimento dos recursos de actos de liquidação não só dos emolumentos de registo e notariado, mas também de custas judiciais, taxas moderadoras dos serviços de saúde, propinas, licenças, caberia aos tribunais tributários, o que só por absurdo se poderá admitir.
1.6 Não ser tanto a noção de tributo que a impugnante tanto traz à colacção que está em causa, mas o facto de se mostrar clarificada a forma de atacar toda e qualquer ilegalidade que os actos de liquidação possam conter.
1.7 Da própria análise do conceito de tributo resultar de igual modo a sem razão da impugnante.
1.8 O Professor Pedro Soares Martinez, in ' Manual...', edição Almedina, 1984,pp. 22 e 23, ensinar que a doutrina italiana, tem incluído sob a designação de Direito Tributário a disciplina jurídica dos impostos, das taxas e das contribuições especiais mas ' esta concepção da doutrina italiana depara com algumas dificuldades relativamente ao seu ajustamento aos sistemas de Direito legislado pelo que ' parece realmente preferível limitar o Direito Tributário à disciplina dos impostos', (sublinhado acrescentado).
1.9 A impugnante ao citar designadamente Alberto Xavier acerca do conceito de tributo, in Manual de Direito Fiscal, V. I, editado em 1974 e reimpresso em 1981, p. 35, olvidar que ao contrário da Constituição da República de 1933 a de 1976 ter ínsito a reserva do princípio da legalidade só para o imposto que não para a taxa, ou seja, em termos de direito legislado tributo é sinónima de imposto, - cfr. artigos 106º e 168º, nº 1 alínea i) da Constituição da República Portuguesa de 1976, segundo a revisão de 1989 e correspondendo o artigo 168º, nº 1 alínea i) a idêntico normativo na revisão de 1982 e ao artigo
167º alínea o) na versão originária.
1.10 O facto de o legislador utilizar as expressões ' Código de Processo Tributário ', ' tribunais tributários ', ' receitas tributárias', significar tão somente que está a referir-se a impostos ou a receitas de idêntica natureza - v.g. contribuições especiais, adicionais, derrama -, e não a emolumentos ou taxas, sem prejuízo dos tribunais tributários poderem conhecer da ilegalidade da liquidação de taxas se a execução fiscal for o meio idóneo para a sua arrecadação e na lei se não prescrever processo judicial de impugnarão ou recurso contra o acto de liquidações - cfr. alínea a) do nº1 do artigo 233º e alínea g) do nº1 do artigo 268º do CPT.
1.11 Os nº1 1 e 2 do artigo 39º do CPT serem claros e inequívocos no sentido dos tribunais tributários de 13 1ª instância só conhecerem em sede de impugnação de actos tributários praticados pelas repartições de finanças ou por outros serviços da administração fiscal.
1.12 As repartições de finanças, de harmonia com o artigo 1242 do CPT, só deverem receber as petições de impugnação respeitantes a actos tributários por elas praticados ou que nelas se devam legalmente considerar praticados, devendo obviamente ficar excluídas, de tal recepção, as relativas à impugnação da liquidação dos emolumentos de registo e notariado.
1.13 O Código de Processo Tributário no seu artigo 154º estatuir que na hipótese de impugnação de receitas parafiscais a mesma dever ser deduzida perante a entidade competente para a liquidação com a subsequente instrução pelos serviços dessa entidade.
1.14 Competir ao representante da Fazenda Pública, de harmonia com a alínea a) do nº1 do artigo 42º e a alínea c) do artigo 154º do CPT a representação no processo de impugnação da administração fiscal e da entidade competente para a liquidação das receitas parafiscais e nos termos da alínea c) do nº1 do citado artigo 42º a de qualquer outra entidade pública no processo de execução fiscal, o que, 'a contrario sensu' constitui igualmente elemento comprovativo da incompetência dos tribunais tributários para conhecerem da impugnação de liquidação dos emolumentos de registo e notariado por falta de representação no processo da entidade que os liquidou.'
2.- O Supremo Tribunal Administrativo, na reapreciação da questão da competência em razão da matéria dos Tribunais Fiscais para conhecer do recurso levantado quanto à impugnação do acto de liquidação de emolumentos notariais, decidiu, por Acórdão de 3 de Julho de 1996, conceder provimento ao recurso determinando a substituição do despacho recorrido por outro que não fosse de indeferimento liminar por incompetência material.
O acórdão fundou-se na seguinte estrutura argumentativa:
- sem tomar posição sobre se os emolumentos notariais são taxas ou impostos, assume que tais quantias são receitas tributárias pois obedecem às três características que as definem: são devidas ao Estado ou a uma entidade pública, são coactivas e são estabelecidas com o fim de procurar meios precisos para cobrir as necessidades financeiras dos entes públicos;
- sendo uma receita de índole tributária, a respectiva liquidação deve ser apreciada pelos tribunais tributários de 1ª instância, por força do que se preceitua no artigo 62º, nº1, alínea a) do ETAF;
- não pode argumentar-se contra esta tese com o facto de os emolumentos poderem configurar uma forma de remuneração dos serviços prestados semelhantes a honorários cobrados por outros serviços (v.g., a Tabela de Honorários de Advogados que, por não terem natureza de receitas fiscais são cobrados coercivamente pelos tribunais comuns, no caso de não pagamento voluntário). Ora, o facto de haver funcionários que participam no recebimento de emolumentos é irrelevante: de facto, é a lei que fixa o destino do montante dos emolumentos a cobrar e o destino das quantias, tal como sucede com as coimas e as multas;
- também o argumento de a cobrança dos emolumentos caber aos tribunais comuns não é decisivo, pois as custas judiciais também são cobradas coercivamente por aqueles tribunais, sendo a própria lei que as qualifica de «taxa de justiça»;
- à conclusão de que devem ser os tribunais tributários a conhecer das impugnações de actos de liquidação dos emolumentos notariais chega ainda o acórdão se se tiver em conta o preceituado nos artigos 3º e 62º do ETAF que, ao atribuírem àqueles tribunais a competência para conhecer dos recursos dos actos de liquidação de receitas tributárias estaduais, regionais, locais e parafiscais acarretou a revogação, por incompatibilidade dos artigos
69º, nº2 do Decreto-Lei nº 519-F2/79 de 29 de Dezembro e 140º, nº7 do Decreto-Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro, nos termos do que dispõe o artigo 121º do ETAF;
- mas, considerou ainda a decisão em apreço, mesmo que se considere que tais normas não tinham sido revogadas, então existiria incompatibilidade entre essas normas e a Constituição, após a revisão de 1989.De facto, dos artigos 113º, nº2,213º, nº1 e 214º,nº3 da Constituição resulta a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para o julgamento dos recursos contenciosos destinados a dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que a lei ordinária não editada ao abrigo de uma autorização legislativa não podia atribuir aos tribunais judiciais comuns qualquer parcela daquelas competências, designadamente, a competência para conhecer dos actos de liquidação dos emolumentos pelos conservadores e notários, assim recusando a aplicação, por inconstitucionalidade, das normas do artigo 69º, nº3 do Decreto-Lei nº519F2/79, de 29 de Dezembro e do artigo 140º, nº7, do Decreto-Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro.
Desta decisão, interpôs o representante do Ministério Público junto do STA, recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo do preceituado na alínea a) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Produzidas as pertinentes alegações, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º - A norma constante do nº7 do artigo 140º do Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Dezembro, na parte em que atribuía aos tribunais de comarca competência para julgar os recursos interpostos das decisões dos conservadores que houvessem desatendido reclamações interpostas contra erros da conta, é inconstitucional por violação do artigo 167º, alínea j) da Constituição, na sua redacção originária - inconstitucionalidade aliás já declarada com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 36/87, de 3 de Fevereiro.
2º - A norma constante do artigo 69º, nº2, do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro - diploma editado pelo Governo no exercício da sua competência legislativa própria e regulamentado através daquele Decreto Regulamentar - é inconstitucional, se interpretada em termos de atribuir, em termos inovatórios, aos tribunais judiciais competência para apreciar as impugnações deduzidas contra erros da conta, cometidos pelos conservadores.'
A sociedade M..., SA, agora recorrida, contra-alegou, tendo suscitado a questão prévia da inadmissibilidade do recurso e quanto ao fundo da causa, deu como reproduzidas as alegações e conclusões apresentadas perante o STA.
Pelo seu lado, o representante da Fazenda Nacional também tomou posição no sentido de que podendo a invocação do erro de conta ter por fundamento questões de natureza civil (v.g., a qualificação dos actos a que se refere a conta), a via de recurso prevista nas disposições arguidas de inconstitucionais, não colide com a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais constitucionalmente definida.
Notificado o Ministério Público para responder à questão prévia da admissibilidade do recurso, veio dizer o seguinte:
'1º - Embora admitamos que a questão possa não ser perfeitamente líquida, é diverso o nosso entendimento acerca da estrutura lógica do douto acórdão recorrido.
2º - Parecendo que a 'ratio decidendi' essencial consistiu num juízo de inconstitucionalidade das normas sindicadas no âmbito deste recurso.
3º - Tanto assim que - e apesar de, na fundamentação, se aflorar a questão da revogação de tais normas (fls. 253 verso) - na parte decisória afirma-se cabalmente que 'tais normas seriam inconstitucionais, por incompatibilidade com os artigos 113º, nº2, 213º, nº1 e 214º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, (...) na parte em que atribuem competência aos tribunais judiciais para conhecer dos actos de liquidação de emolumentos efectuados pelos Conservadores e Notários' (cfr. fls. 254 verso).
4º - Assim sendo, parece-nos que não deverá julgar-se inútil a pronúncia sobre a questão de constitucionalidade suscitada.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3 - Importa começar por analisar a questão prévia suscitada pela sociedade recorrida da inadmissibilidade do recurso por o mesmo se apresentar «como destituído «de qualquer efeito prático».
É um facto que a decisão recorrida assenta parte da sua argumentação no facto de as normas em causa - o artigo 69º,nº2, do Decreto-Lei nº519-F2/79 de 29 de Dezembro e o artigo 140º, nº7 do Decreto-Regulamentar nº
55/80, de 8 de Outubro - terem sido revogadas pelos artigos 3º e 62º do ETAF.
Porém, tal argumentação não é única. A decisão recorrida depois de se referir a tal revogação, acrescenta: mesmo que se considerasse que tais regras especiais previstas nos artigos 69º, nº2 do DL 519-F2/79 e 140º,nº7 do DR 55/80 não tinham sido revogadas pelo ETAF, tem de entender-se que foram revogadas, por incompatibilidade, com a Constituição da República Portuguesa a partir da revisão de 1989, e desenvolve alguma argumentação dirigida à demonstração de tal incompatibilidade, concluindo no sentido da sua inconstitucionalidade. É portanto uma argumentação por patamares e constitui fundamento normativo do acórdão, pelo que se deve conhecer do recurso, pronunciando-se também neste sentido o recorrente Ministério Público que considera não ser inútil a pronúncia sobre a questão de constitucionalidade suscitada.
Pelo exposto, decide-se desatender a questão prévia suscitada pela recorrida M..., SA.
4.- Nos autos, estão em causa as normas que permitem a definição do tribunal competente para conhecer de uma liquidação feita pelo Conservador do Registo Comercial de emolumentos devidos por inscrições de valor determinado nesse registo.
As normas que vêm questionadas são o artigo 69º, nº2 do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro e o artigo 140º, nº7 do Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro e têm o seguinte teor: Artigo 69º
1 - Das decisões proferidas pelos conservadores(_) sobre reclamações contra erros de conta, bem como da sua recusa a efectuar algum registo nos termos requeridos ou a praticar qualquer acto da sua competência, podem os interessados reclamar para o director-geral dos Registos e do Notariado.
2 - Se a decisão do conservador (_)admitir recurso para o tribunal de comarca, a faculdade de reclamação, só pode ser exercida antes de interposto o recurso a que haja lugar, nos termos das disposições legais aplicáveis.
3 - ............................................
Pelo seu lado, o nº 7 do artigo 140º do diploma regulamentar, tem a seguinte redacção: 'Do despacho do director-geral decidindo a reclamação interposta contra erros de conta, bem como da recusa do conservador ou notário de efectuar algum registo nos termos requeridos ou de praticar qualquer acto da sua competência não há recurso. Se a decisão for desfavorável, pode, porém, o interessado, no prazo de oito dias, a contar do recebimento da comunicação do despacho, interpor recurso da decisão inicial do conservador ou notário para o tribunal de comarca'.
Importa, antes de mais, referir que a decisão recorrida não toma posição, de forma manifesta, sobre a questão de saber se os emolumentos dos registos e do notariado são uma taxa ou imposto: porém, o acórdão qualifica de forma inequívoca tais quantias como prestações de natureza tributária ou receitas tributárias e esta qualificação tem de ser aceite por este tribunal.
Ao iniciar a análise da questão de constitucionalidade que vem suscitada, não se pode deixar de voltar a referir o facto de o Tribunal Constitucional já ter declarado, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do nº 7 do artigo 140º do Decreto Regulamentar nº
55/80, de 8 de Outubro. É indispensável que se faça aqui uma síntese dos fundamentos ali utilizados, pois, as razões que então levaram a tal declaração são perfeitamente transponíveis para a dimensão da norma que agora se questiona.
Com efeito a situação a que se reporta o acórdão nº
36/87 referia-se à atribuição aos tribunais de comarca de competência para conhecerem dos recursos interpostos das decisões dos conservadores do registo predial que tivessem desatendido reclamações interpostas contra erros de conta.
No caso em apreço, trata-se da atribuição de idêntica competência, mas para conhecer da impugnação da decisão que determinou a liquidação do emolumento em causa, liquidação essa afectada, segundo a sociedade ora recorrida, de nulidade.
O Acórdão nº 36/87 partiu da seguinte fundamentação para declarar inconstitucional o nº 7 do artigo 140º do Decreto Regulamentar nº
55/80, depois de nele se fazer a história da legislação que antes das normas questionadas vigorou, na matéria: 'como decorre da simples leitura dos preceitos atrás transcritos [trata-se dos artigos 139º e 140º do Decreto Regulamentar nº
55/80] as contas dos conservadores do registo predial continuaram, como até então, a poder ser reclamadas perante o próprio conservador, podendo da decisão desfavorável deste reclamar-se para o director-geral dos Registos e Notariado. Deixou, porém, de poder reclamar-se para o Ministro da Justiça da decisão desfavorável do director-geral; e, consequentemente, não havendo decisão do Ministro, deixou de poder recorrer-se para o Supremo Tribunal Administrativo. Em contrapartida, a decisão inicial do conservador passou a ser recorrível para o tribunal de comarca.'
E, mais adiante, escreve-se: 'Operou-se então uma modificação do sistema em vigor relativo à repartição de competências entre os tribunais. Modificação que, como se viu, veio a traduzir-se num alargamento da competência dos tribunais de comarca, em simultâneo com a redução de competência do Supremo Tribunal Administrativo (_)'. E isto a implicar também um diferente esquema de impugnação dos actos.
O Governo, servindo-se de um decreto regulamentar, editou, pois, normação nova sobre uma matéria - a da competência dos tribunais - onde ele só poderia legislar por decreto-lei e mediante autorização legislativa.
Ora, o simples facto de se tratar agora não de impugnar as decisões que desatenderam as reclamações contra os erros da conta, mas antes de impugnar a decisão que determinou a liquidação dos emolumentos questionados, não permite afastar, relativamente à norma do nº 7 do artigo 140º do diploma regulamentar, os fundamentos expendidos no acórdão - eles valem inteiramente para a dimensão da norma que agora vem desaplicada.
Assim, tem que se aplicar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do nº 7 do artigo
140º do Decreto-Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro, na parte em que atribui aos tribunais de comarca competência para julgar os recursos interpostos de decisões dos conservadores do registo comercial sobre impugnação da liquidação dos emolumentos.
Como salienta o Exmo. Procurador-Geral adjunto nas suas alegações as mesma razões invocadas para fundamentar a inconstitucionalidade da norma regulamentar valem aqui para a norma do nº2 do artigo 69º do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro, enquanto interpretada como determinando que das decisões dos conservadores e notários sobre a conta se recorre para o tribunal de comarca.
Como se refere no Acórdão nº 36/87 citado, 'No que toca, porém, à impugnação de contas dos conservadores, o que está em causa é uma relação jurídico-administrativa, que tem por objecto emolumentos, ou seja, taxas. E, assim, o razoável é que, esgotada em obediência ao princípio da exaustão dos meios graciosos, a via hierárquica graciosa, os interessados possam recorrer aos tribunais competentes para conhecer dos actos administrativos respeitantes a tributos cuja liquidação não esteja a cargo da administração fiscal, ou seja, no caso, ao Supremo Tribunal Administrativo'.
Assim, tendo o Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro sido aprovado no exercício da competência legislativa própria do Governo, não lhe era lícito editar normação inovadora sobre a competência dos tribunais, matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, nos termos da alínea q) do nº1 do artigo 168º da Constituição, que assim resulta violado. III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide :
A) Julgar inconstitucional, por violação da alínea q) do nº1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1982), a norma do artigo 69º, nº2, do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro, enquanto interpretada como determinando que das decisões dos conservadores e notários se recorre para o tribunal de comarca;
B) E, por força do decidido no número anterior e, em aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 36/87, que julgou inconstitucional a norma do nº7 do artigo 140º do Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro, na parte em que atribui aos tribunais de comarca competência para julgar os recursos interpostos da decisão do conservador do registo comercial sobre impugnação da liquidação de emolumentos provenientes de inscrições registrais, negar provimento ao recurso, confirmando, na parte impugnada, a decisão recorrida.
Lisboa, 19 de Maio de 1998 Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida