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Proc. n.º 728/01 Acórdão nº 102/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 454 e seguintes, não se conheceu do objecto do recurso interposto para este Tribunal por S ..., S.A..
É a seguinte a fundamentação da decisão sumária:
'Constitui pressuposto processual de qualquer recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – como é o caso do presente recurso – ter o recorrente suscitado, durante o processo, uma questão de constitucionalidade normativa. E o artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei, esclarece que essa questão deve ter sido suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Contrariamente ao alegado no requerimento de interposição do presente recurso
(supra, 4.), a recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, a recorrente limitou-se a sustentar que as instâncias haviam feito uma interpretação inconstitucional de determinados preceitos da LULL e do Código do Registo Comercial, sem concretizar a interpretação em causa, e a imputar ao próprio acórdão recorrido, e não a qualquer interpretação nele perfilhada, a violação do disposto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição (cfr. conclusões XIII e XIV das alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça, supra, 3.). Não tendo sido identificada, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de constitucionalidade normativa, não é de estranhar que, no acórdão respectivo, se tenha considerado «não ser compreensível a conclusão sobre inconstitucionalidade» e, portanto, se não tenha conhecido de qualquer questão dessa natureza (cfr. nº 5 do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 444, supra, 3.). O tribunal recorrido não estava, conforme exigido pelo n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, obrigado a conhecer da questão de constitucionalidade, porque pura e simplesmente tal questão não lhe foi colocada de modo compreensível. Verifica-se, assim, que não está preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso: efectivamente, a recorrente não suscitou, durante o processo, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Não pode portanto conhecer-se do objecto do presente recurso. A isto acresce que, conforme se depreende do teor do requerimento de interposição do presente recurso, aquilo que a recorrente pretende é que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional do próprio acórdão recorrido: efectivamente, alega a recorrente, além de denegação de justiça, a violação do artigo 205º, n.º 1, da Constituição, relativo ao dever de fundamentação de decisões judiciais. Ora, tal pedido extravasa a competência decisória deste tribunal, pois que respeita a um objecto não previsto em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional: a apreciação da conformidade constitucional de decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Portanto, se a razão anteriormente explanada não bastasse (e basta) para o não conhecimento do objecto do recurso, também esta seria suficiente para se atingir tal conclusão.'
2. Da referida decisão sumária reclamou S..., S.A. para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 465 e seguintes). Em síntese, alega o seguinte na reclamação: a. Na conclusão XIII do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (o tribunal ora recorrido), a reclamante alegou uma interpretação inconstitucional do artigo 31º da LULL e dos artigos 15º, 1; 3º, M); e art.º 14º do Código de Registo Comercial, sendo que na conclusão XIV, como corolário final, se alegou a violação do artigo 205º, n.º 1, da Constituição; b. O teor das referidas conclusões foi precedido da referência à falta de pronúncia do Tribunal da Relação do Porto (o tribunal então recorrido), quanto à inexistência do registo comercial da alegada gerência de um dos subscritores do aval, objecto do tema fundamental dos autos (conclusão XI); c. Sobre a matéria da inoponibilidade do registo comercial não se vislumbra, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, qualquer fundamento para uma afirmação constante do seu texto, assim se denegando justiça; d. A ausência de fundamento contribui para a alegada inconstitucionalidade da decisão (artigo 205º, n.º 1, da Constituição); e. Tendo a recorrente alegado no processo a violação de determinadas normas do Código do Registo Comercial, o acórdão recorrido interpretou-as como se a sua imperatividade não existisse, não obstante tenha 'reconhecido' a alegada falta de registo; f. Tal interpretação, face à característica das normas em causa e ao reconhecimento de que não foram cumpridas, conduz forçosamente à denegação de justiça e à implícita inconstitucionalidade do decidido, por violação daquela e do artigo 205º, n.º 1, da Constituição; g. Como assinala um professor universitário, que se cita, o Tribunal Constitucional admite conhecer da conformidade constitucional de uma norma, numa certa interpretação; h. Assim, 'na conjugação do objecto dos autos com a interpretação dada às normas aludidas nas conclusões XII e XIII, afigura-se patente a inconstitucionalidade da decisão'. Notificado da reclamação, o recorrido C... não respondeu (fls. 469). Cumpre apreciar.
II
3. Na decisão sumária reclamada, considerou-se não ser possível tomar conhecimento do objecto do recurso interposto pela ora reclamante para o Tribunal Constitucional, por dois motivos (supra, 1.): a recorrente não havia suscitado, durante o processo, qualquer questão de constitucionalidade normativa; a recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse a conformidade constitucional do próprio acórdão recorrido. Na presente reclamação, as razões em que assentou a decisão sumária não são minimamente postas em causa. Antes pelo contrário, a argumentação da reclamante reforça-as significativamente. Por um lado, porque a reclamante não consegue demonstrar que, em algum momento do processo, suscitou uma questão de constitucionalidade normativa: na verdade, limita-se a fazer uma referência ao alegado perante o tribunal recorrido (supra,
2., a) e b)), sem que daí se infira qual a questão normativa por si colocada. Por outro lado, porque a reclamante expressamente admite que o objecto do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional é a conformidade constitucional da própria decisão recorrida (supra, 2., c) a f) e h), objecto esse que, como se disse na decisão sumária, extravasa a competência do Tribunal Constitucional. A este propósito, refira-se que não tem qualquer cabimento a alusão que a reclamante faz à doutrina do professor universitário que identifica
(supra, 2., g)), já que tal doutrina obviamente não infirma o que se disse na decisão sumária acerca da falta de competência do Tribunal Constitucional para a apreciação da conformidade constitucional das próprias decisões judiciais: na verdade, uma coisa é a apreciação da conformidade constitucional das próprias decisões judiciais; e outra coisa, completamente diferente, é a apreciação da conformidade constitucional de normas, numa certa interpretação (interpretação que a reclamante nunca identificou no processo, nem submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional).
É, pois, manifesta a improcedência da presente reclamação, inexistindo consequentemente motivos para revogar a decisão sumária reclamada.
III
4. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação e mantém-se a decisão sumária de fls. 454 e seguintes, que não conheceu do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida