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Processo n.º 655/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
P...., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão de 2 de Maio de 1996, do 1º Tribunal Militar Territorial do Porto, como autor material de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 201º, n.º 1, alínea d), do Código de Justiça Militar, na pena de 180 dias de multa, à razão de 500$00 por dia, o que perfaz a multa de 90.000$00, ou, em alternativa, em 120 dias de prisão. Do assim decidido recorreu para o Supremo Tribunal Militar (STM) o Promotor de Justiça junto daquele Tribunal, por discordar da aplicação, que ao caso foi feita, do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro. O STM, ponderando a respeito da questão da aplicabilidade aos autores de crimes essencialmente militares do regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, concedeu provimento ao recurso, por acórdão de 11 de Julho seguinte, e, em consequência, revogando nessa parte a anterior decisão, condenou o arguido na pena de seis meses de prisão militar. Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação de constitucionalidade da norma do artigo 4º do Código de Justiça Militar, quando interpretada no sentido da inaplicabilidade do regime penal especial para jovens no direito penal militar, o que, em seu entender, viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, a que o artigo 13º da Constituição da República (CR) se refere. As alegações oportunamente apresentadas pelo arguido concluem do seguinte modo:
'A) O Venerando S.T.M. decidiu, que: 'O regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos previsto no Dec-Lei
401/82 de 23/9 não é de aplicar subsidiariamente no direito penal militar por tal regime constar de normas especiais, não haver neste ponto qualquer lacuna no direito penal militar que deva ser suprida e ainda porque a sua aplicação contraria princípios fundamentais do C.J.M., como sejam a espécie de penas aplicáveis aos crimes essencialmente militares, e o local do cumprimento de penas privativas de liberdade por militares; B) Assim, alterando o Acórdão do T.M.T.P., revogando a condenação do Recorrente que tinha sido contemplado com o regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, previsto no D.L. n.º 401/82, de 23/9 e condenando-o na pena de seis meses de prisão, substituída pela pena, de 180 dias de multa, à razão de 500$00 por dia e condenando-o, agora, o Acórdão recorrido, na pena efectiva de seis meses de prisão militar; C) O T.M.T.P., em deliberação por unanimidade, considerou aplicável tal Regime Penal Especial para Jovens, previsto no D.L. n.º 401/82, ao direito Penal Militar, por força do preceituado nos art. 8º do C.P. e 4º do C.J.M.; D) Dimana dos autos que, à data da prática dos factos, constantes da ocorrência, o Recorrente tinha 20 anos de idade e que, deixou, já, de ser militar, onde se encontrava em regime de voluntariado; E) Em nossa modesta opinião, não há disposição legal em contrário e que contrarie a aplicação das disposições legais do C.P. aos factos puníveis pelo direito penal militar .- cfr. art. 8º do C.P.; F) As normas do D.L. 401/82, previsto no art. 9º do C.P., são normas gerais da lei penal; G) Consequentemente, aplicáveis ao direito penal militar, mesmo que, subsidiariamente; H) O que, em nada colide com princípios fundamentais do direito penal militar, antes, está em consonância com o mais evoluído pensamento, no domínio das ciências humanas e da política criminal e aos princípios que enformam o citado D.L. 401/82, constantes do seu preâmbulo: I) Tal evolução da política criminal, reflectiu-se no próprio direito penal militar; J) Como dimana, por exemplo, da actual redacção do art. 46º C.J.M., dada pelo artigo único do D.L. n.º 146/82, de 28/4; K) Por força de tal dispositivo legal e a manter-se proficiente Acórdão recorrido, o Recorrente não poderá, sequer, cumprir a pena de prisão militar, em estabelecimento prisional militar - cfr. n.ºs. 2 e 3 do citado artigo 46º do C.J.M.; L) E, a pena de prisão militar em que está condenado tem de ser substituída pela pena comum de multa - cfr. al. d), do n.º 1 e n.º 2, do citado preceito legal; M) Na mesma linha de pensamento e evolução da política criminal, por imperativo constitucional, o D.L. n.º 141/77, de 9/4, dispôs que: a jurisdição militar foi colocada no plano do foro material, ou seja: o cidadão militar ou civil, só estará sujeito ao foro militar, enquanto violador de interesses especialmente militares; N) Caso negativo ou contrário, sobrepõe-se-lhe o foro comum; O) O Recorrente não violou bens ou deveres, especialmente, militares; P) Resulta do art. 1º do C.J.M. que, este diploma legal visa contemplar crimes, essencialmente, militares; Q) Pelo que, por maioria da razão, o Recorrente deverá ser contemplado com o Regime Penal Especial para Jovens, previsto naquele D.L. n.º 401/82; R) E, daí, desde logo, resulta a ilegalidade do proficiente Acórdão recorrido; S) O qual ofende, também, os princípios da segurança, da Justiça, da legalidade, da igualdade e da proporcionalidade, previstos nomeadamente, nas normas constantes nos artigos 2º-3º e 13º da C.R.P.; T) A ofensa de tais princípios constitucionais, verifica-se, também, no proficiente Acórdão recorrido do Venerando S.T.M., quando entende que o art. 4º do C.J.M. não comporta e não permite a aplicação do citado Regime Penal Especial para Jovens, previsto no D.L. 401/82 ao direito penal militar; U) Pelo que, de harmonia com tal entendimento, a norma constante do art. 4º do C.J.M. é inconstitucional; V) Na parte em que não permite e recusa a aplicação do citado D.L. n.º 401/82, de 23/4, do direito penal militar; X) Por violar as normas constantes, nomeadamente, dos citados artºs 2º-3º e 13º da C.R.P.;
Y) Devendo declarar-se a ilegalidade do proficiente Acórdão recorrido e a inconstitucionalidade do art. 4º do C.J.M.; Z) Revogando-se e reformando-se, consequentemente, o proficiente Acórdão recorrido [..].'
Por sua vez, o magistrado do Ministério Público neste Tribunal, conclui, assim, as respectivas alegações:
'O artigo 4º do Código de Justiça Militar, quando interpretado no sentido da inaplicabilidade do regime penal especial para jovens no direito penal militar, viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, lidos conjugadamente, por discriminar injustificadamente o arguido em processo penal militar em relação ao arguido em processo penal comum. Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. Importa averiguar se a norma constante do art. 4º do Código de Justiça Militar, quando interpretada no sentido da inaplicabilidade do regime penal especial para jovens no direito penal militar, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
2. O Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, dá cumprimento ao disposto no artigo 9º do Código Penal, nos termos do qual aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial. De acordo com o seu artigo 4º, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena, no termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado. Pretende-se, assim, como explicita o preâmbulo do diploma, 'instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção'. O diploma é, na verdade, dominado por estes dois vectores: o tratamento penal especializado do jovem imputável compagina-se com as, então, mais recentes pesquisas no domínio das ciências humanas e da política criminal e, noutra perspectiva, corresponde às exigências de ressocialização, particularmente sensíveis no nível etário dos destinatários do regime. O acórdão do 1º Tribunal Militar Territorial do Porto teve em consideração este quadro de princípios que vê na pena de prisão como ultima ratio nessa reacção da sociedade, que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que reviu o Código Penal de 1982, corrobora na medida em que a pena de prisão é entendida como apenas devendo lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção (cfr. o seu n.º 3). Assim, socorreu-se o Tribunal do regime do Decreto-Lei n.º 401/82, considerando-o aplicável a todos os jovens, nomeadamente no âmbito dos crimes essencialmente militares, por consideração dos princípios constitucionais da igualdade conjugado com o da proporcionalidade, sem que a tal obste o disposto no artigo 4º do Código de Justiça Militar, nos termos do qual as disposições gerais da lei geral são subsidiárias do direito penal, desde que não contrariem os princípios fundamentais deste. Não foi, no entanto, esta a tese que mereceu acolhimento no acórdão ora recorrido, do STM. Neste se escreveu, designadamente:
'Posto que se possa reconhecer, 'jure condendo', alguma validade à argumentação expendida em fundamento da decisão impugnada, o certo é que, no plano de direito constituído, tal decisão não é de aceitar, não podendo, por isso, manter-se, já que ela viola o disposto no art. 4º do Código de Justiça Militar que, contrariamente, ao que é afirmado no aresto recorrido, não é inteiramente coincidente com o art. 8º do C.P.; Efectivamente, enquanto este último artigo manda aplicar as disposições do C.P. aos factos puníveis pelo direito penal militar, salvo disposição em contrário, aquele (art. 4º do Código de Justiça Militar), é bem mais restrito, ao dispor que as disposições gerais da lei penal são subsidiárias do direito penal militar, desde que não contrariem os princípios fundamentais deste, sendo que, o art. 4º do C.J.M., como norma especial que é, tem prevalência sobre o referido art. 8º do C.P; Resulta do exposto que as disposições gerais da lei penal, por um lado, só serão aplicadas subsidiariamente, isto é, havendo lacuna no direito penal militar que deva ser suprida e, por outro, desde que tal aplicação não contrarie os princípios fundamentais daquele; Assim sendo, começa-se por realçar que o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos consta de normas fixadas em legislação especial - art. 9º do C.P. - pelo que é, pelo menos duvidoso que, tais preceitos, se possam considerar como 'normas gerais da lei penal'; Para além disso e ainda que o fossem, sempre a sua aplicação no direito penal militar seria subsidiária, isto é, dependente da existência duma lacuna que devesse ser suprida, o que não está minimamente demonstrada no caso em apreço; Acresce que, a aplicação do regime especial em referência no direito penal militar contraria frontalmente princípios fundamentais deste, como sejam os das espécies de penas aplicáveis aos crimes essencialmente militares vertido no art.
24º do C.J.M e ainda o de que os militares devem cumprir as penas privativas de liberdade em estabelecimentos prisionais militares, como decorre do preceituado no art. 1º da Lei n.º 58/77 de 5 de Agosto, na medida em que, em consequência dessa aplicação, seriam impostas aos autores de crimes essencialmente militares penas não previstas no C.J.M., como aconteceu no caso dos autos, e poderiam ocorrer situações absurdas como a de impor a um militar o internamento num centro de detenção - art. 6º - 2 al. d) do citado Dec-Lei 401/82, o que equivale a colocar um militar a cumprir uma pena privativa da liberdade num estabelecimento civil; Finalmente e pelo que diz respeito à invocada inconstitucionalidade do art. 4º do C.J.M. quando interpretado no sentido da inaplicabilidade do regime especial para jovens no direito penal militar, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, apenas se dirá que o direito penal aplicável aos crimes essencialmente militares é diferente do direito penal aplicável aos crimes comuns e, dada a diferença de destinatários, finalidades e objectivos a atingir, nada impõe que exista igualdade entre os dois regimes penais, compreendendo-se até que sejam distintos.'
3. Conforme se lê na passagem transcrita do acórdão recorrido, o Supremo Tribunal Militar começou por realçar ser duvidoso que as normas aplicáveis em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, constantes do Decreto-Lei n.º 401/82, possam ser consideradas como normas gerais da lei penal. No entanto, não se deteve o tribunal recorrido nessa específica questão uma vez que se orientou no sentido da inaplicabilidade daquele regime à justiça militar, por a tal obstarem os princípios fundamentais do direito penal militar, ressalvados no art. 4º do Código de Justiça Militar, e é esta interpretação que constitui o objecto do recurso.
III
1.1. - Nos termos do artigo 4º do Código de Justiça Militar:
'As disposições gerais da lei geral são subsidiárias do direito penal militar, desde que não contrariem os princípios fundamentais deste'.
Por sua vez, prescreve o artigo 8º do Código Penal de 1982 que:
'As disposições deste diploma são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito penal militar (...), salvo disposição em contrário'.
Conforme refere o Supremo Tribunal Militar, o artigo 4º do Código de Justiça Militar não é inteiramente coincidente com o artigo 8º do Código Penal pois, enquanto este último manda aplicar as disposições do Código Penal aos factos puníveis pelo direito penal militar, salvo disposição em contrário, o artigo 4º do Código de Justiça Militar tem um conteúdo mais restrito, só permitindo a aplicação das normas gerais da lei penal subsidiariamente e caso essa aplicação não ofenda os princípios fundamentais do direito penal castrense. Como o Código de Justiça Militar não contém norma equivalente à do artigo 9º do Código Penal, as disposições do Decreto-Lei nº 401/82 só poderão ser aplicadas no direito penal militar, tendo em consideração a norma daquele artigo 4º, se da sua observância não resultar ofensa aos princípios fundamentais desse direito. Ora, a interpretação do tribunal recorrido é no sentido dessa contrariedade, invocando, para o efeito, quer as espécies de penas aplicáveis nos crimes essencialmente militares, quer no facto de os autores desses crimes deverem cumprir em estabelecimentos prisionais militares as penas privativas de liberdade, como decorre do preceituado no artigo 1º da Lei nº 58/77, de 5 de Agosto.
1.2.- Na economia destes parâmetros, omite-se qualquer juízo de valor sobre o acerto da modelação feita, no concreto caso, aos princípios fundamentais do direito penal militar - questão subtraída à competência deste Tribunal, salvo quando esteja em causa a sua constitucionalidade - e, do mesmo passo, não se tem em conta o facto de a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, ao alterar o texto constitucional, passar a aludir a 'crimes de natureza estritamente militar', desse modo pretendendo ultrapassar a controvérsia provocada por um lastro conceitual pré-constitucional (a 1976), muito marcado e, de certo modo, comprometido. Mas já não se dispensa a abordagem do que se entende por
'essencialmente militar' (à data da interpretação impugnada), na medida em que aí se surpreende uma tutela reforçada, harmonizável com aqueles princípios fundamentais. A interpretação dada à norma do artigo 4º do CJM assenta numa axiologia da função militar que intenta preservar esses princípios e se projecta na tutela geral dos valores militares: a lógica utilizada subentende a especificidade da instituição militar e dos valores por esta prosseguidos, enformantes da problemática dos crimes ditos 'essencialmente militares' e a questão equacionada nos autos implica determinar se essa interpretação é coonestada constitucionalmente em face, nomeadamente, dos convocados princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
2.1. - A defesa militar da República, que incumbe constitucionalmente às Forças Armadas (artigo 275º, nº 1, da CR), pode justificar, até certo ponto, uma justiça e uma disciplina militares autónomas, de específica valoração - o que é susceptível de legitimar diferenciações de tratamento. Por sua vez, a Constituição da República, ao consagrar, no nº 1 do seu artigo
218º - na redacção originária - a competência dos tribunais militares para o julgamento, em matéria criminal, dos crimes essencialmente militares, modificou substancialmente o âmbito da jurisdição militar, cujo foro, até então definido pela qualidade do agente, passou a ser (de novo) determinado em função da natureza do crime. Escreveu-se, consonantemente, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, diploma que aprovou o novo Código de Justiça Militar:
'O cidadão, militar ou civil, só estará a ele [foro militar] sujeito enquanto violador de interesses especificamente militares. Caso negativo, sobrepõe-se-lhe o foro comum, por força da supremacia natural deste. Daqui que os militares já não respondam por delitos comuns perante o seu antigo foro especial, mas perante os tribunais ordinários, como qualquer outro cidadão. Daqui também que o cidadão não militar, ao violar os interesses superiores das forças armadas consagrados na Constituição, fique sujeito à jurisdição destes'.
No entanto, o preenchimento do conceito foi deixado pela Constituição ao legislador ordinário, vindo o Código de Justiça Militar a definir crimes essencialmente militares como 'os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que sejam como tal qualificados pela lei militar' (nº 2 do artigo 1º). O Tribunal Constitucional, no seu labor jurisprudencial, foi, por sua vez, densificando o conceito, caracterizando-o, fundamentalmente, através da natureza dos bens jurídicos violados. Apoiando-se na doutrina expendida em anteriores arestos (por todos, os acórdãos nºs. 347/86 e 680/94, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Março de 1987 e 25 de Fevereiro de 1995), o acórdão nº 967/96 (publicado na II Série do mesmo jornal oficial, de 24 de Dezembro de 1997) condensou essa orientação nos seguintes termos: '[...] pode dizer-se que a ideia fundamental a reter neste domínio é a de que a Constituição exige que o legislador ordinário se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo sujeitar à jurisdição militar aquelas infracções que «afectem inequivocamente interesses de carácter militar», infracções que, por isso mesmo, hão-de ter com a instituição castrense uma conexão relevante, quer porque existia um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque um nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa militar'. Nesta leitura - seguida por este Tribunal - existirá em princípio, crime essencialmente militar quando se verifique ofensa dos interesses específicos enunciados no nº 2 do artigo 1º do Código de Justiça Militar - violação de algum dever militar ou ofensa da segurança e da disciplina das Forças Armadas ou dos interesses militares da defesa nacional e que como tal sejam qualificados pela lei militar.
É uma orientação, de resto, compaginável com o entendimento defendido por Figueiredo Dias no colóquio promovido pela Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, em 1995, quando aí defendeu que o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, ou seja, do conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica, como a defesa do Pátria, sem cuja tutela 'as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão' (cfr. Justiça Militar, ed. da Assembleia da República – Comissão de Defesa Nacional – Lisboa, 1995, pág. 26).
2.2. - À luz das considerações expendidas, não é necessariamente lesiva do princípio da igualdade uma interpretação da qual resulte, pela não aplicação do direito penal para jovens nesta área, uma diferenciação de tratamento, tal é a complexidade da 'teia de condicionantes que impedem nivelações de sanções com base em abstractos juízos de valor orientados apenas pela importância objectiva dos bens jurídicos protegidos', para nos socorrermos da formulação do acórdão nº
958/96, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Dezembro de 1996. De acordo com o ponderado noutro aresto, 'a diferenciação da moldura penal do artigo 203º do Código de Justiça Militar relativamente à moldura do artigo 300º do Código Penal, sendo aquela mais gravosa, para a mesma fattispecie do crime de abuso de confiança, pode, em abstracto, buscar a justificação material no exercício de certos cargos ou funções, aqui cargos ou funções militares'
(acórdão nº 370/94, no citado jornal oficial, II Série, de 7 de Setembro de
1994). Ainda socorrendo-nos do apoio jurisprudencial, cite-se o acórdão nº 329/97, inédito, onde se observou, estando em causa as normas incriminadoras do peculato nos Códigos Penal e de Justiça Militar, em que as situações aí previstas apresentam amplas zonas de sobreposição, dever conceder-se tratamento próximo, ou mesmo idêntico, em casos semelhantes e tratamento distinto nos casos em que
'de forma nítida sobressaia o incumprimento do dever que sobre o agente impende e a consequente afectação do valor acrescidamente tutelado pelo crime militar'. No caso vertente, porque não foi impugnada a concreta punibilidade estabelecida para o crime tipificado no artigo 201º, nº 1, alínea d), do Código, pelo qual o recorrente foi condenado, não estão em jogo situações diferentemente tuteladas, se bem que parcialmente sobrepostas, de modo a poder discutir-se a conformidade constitucional do respectivo tratamento, questionando-se a razoabilidade de uma moldura penal mais severa no tocante à conduta prevista no CJM, como sucede nos arestos citados.
3. - As sanções penais só se justificam, tanto na sua existência como na sua medida, quando indispensáveis 'à conservação e à paz da sociedade social' (José de Sousa e Brito, 'A Lei Penal na Constituição' in – Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, pág. 218), o que coloca um problema de desmedida - em que pesam as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,
1998, pág. 263) - se for manifestamente excessivo o sacrifício de um dos bens ou interesses protegidos em face de outro, mesmo que este seja de diferente peso. A justa medida imposta por uma relação de ponderação deve harmonizar-se com o princípio da proporcionalidade, no sentido estrito considerado, como tal acolhido no nº 2 - parte final - do artigo 18º da Constituição da República
(Pondera-se, a este propósito, que a pena tida por adequada, na 1ª Instância, para sancionar a conduta do recorrente, pela prática do crime de furto por esta praticado - previsto e punido no artigo 201º, nº 1, alínea d), do Código de Justiça Militar - era a de seis meses de prisão militar que, no entanto, mercê da observância do regime especial para jovens, se 'converteu' em 180 dias de multa, enquanto o Supremo Tribunal Militar, recusando-se a aplicar esse regime, condenou o recorrente, pelos mesmos factos, na pena de prisão (efectiva) por seis meses). Ou seja, perante a convocação do artigo 4º, a argumentação coligida na jurisprudência citada permite justificar materialmente uma sua interpretação que implique diferenciação de regimes, não significando necessariamente que essa interpretação contenha, em si, o estigma da inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade. O que se afigura válido, seja na perspectiva da existência de valores objectivos fundamentais, justificados pelos fins prosseguidos pelas Forças Armadas, não exigíveis à generalidade dos cidadãos, seja, inclusivamente, em concepção mais apertada, que não dispense a exigência de uma ligação estrutural entre a razão de ser da punição e os interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional. Essa interpretação há-de, no entanto, casar-se com o princípio da proporcionalidade - o que, na sua precipitação casuística, implica que se não possa ter como aceitável a exclusão em absoluto do regime previsto no Decreto-Lei nº 401/82, devendo ficar sempre aberta a possibilidade de os tribunais militares o considerarem sempre que o mesmo se lhes mostre adequado, ponderação essa que ao tribunal recorrido compete.
IV Em face do exposto, decide-se: a) julgar inconstitucional, por violação conjugada dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 13º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República, a norma do artigo 4º do Código de Justiça Militar, interpretada no sentido de excluir em absoluto a aplicabilidade ao direito penal militar do regime especial do direito penal para jovens adultos, previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro; b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em consonância com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 2 de Março de 1999 Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa