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Proc. nº 224/94
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão recorreu para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo do despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e Administração do Território e da Indústria e Energia que homologou o relatório da Comissão de Avaliação de Débitos constituída ao abrigo do artigo
5º do Decreto Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril e que fixou em 220.368.700$00 o montante da sua dívida à E.D.P. (Electricidade de Portugal, E.P.), pedindo a anulação daquele despacho .
Invocou, para tanto, e nomeadamente, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 5º do Decreto- -Lei nº 103-B/89, de 4 Abril, por violação dos artigos 20º, nº2, 205º, 206º e 268º, nº 3 da Constituição, o que constituia
um vício de usurpação de poder, além de invocar ainda a ocorrência de um vício de violação de lei e de um vício de forma.
2. Respondendo, vieram os Ministros indicados, e desde logo, invocar a inexistência do acto administrativo apontado pela recorrente, concretamente por não terem assinado o mesmo.
Após despacho de 8 de Fevereiro de 1991, pelo qual se convidou a recorrente a corrigir a sua petição de recurso, esta apresentou nova petição, agora impugnando o despacho conjunto dos Secretários de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território e da Energia, com os mesmos fundamentos de inconstitucionalidade dos artigos 3º, 4º e 5º do Decreto Lei nº 103-B/89, e ainda por vícios de forma, incompetência e violação da lei, requerendo a anulação do acto recorrido, ou seja, o indicado despacho.
Nas respectivas respostas, ambos os Secretários de Estado invocaram a inutilidade da lide, com base no protocolo de acordo que a Câmara recorrente estabelecera em 19 de Setembro de 1989 com a EDP para o pagamento extra-judicial da quantia em causa, o que implicaria o reconhecimento expresso do acto administrativo que se pretenderia impugnar.
3. Por despacho de 25 de Setembro de 1991, o STA veio a rejeitar o recurso interposto pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, por
'manifesta ilegalidade' do mesmo, nos termos seguintes:
a subscrição do protocolo pela recorrente traduz a aceitação do despacho conjunto impugnado, anteriormente profe-rido, homologatório do relatório da Comissão de Avaliação e do montante da dívida por esta apurado, precisamente aquele que veio a ser objecto do protocolo.
Deste despacho reclamou a recorrente, requerendo que fosse elaborado acórdão que revogasse o anterior despacho e admitisse o recurso.
Após ouvidas as entidades recorridas, as quais propugnaram a manutenção do dito despacho, o STA proferiu o acórdão de 7 de Maio de 1992, no qual concedeu provimento à reclamação e ordenou o prosseguimento dos autos de recurso.
4. Concluiu a recorrente as suas alegações de recurso pela forma seguinte:
1 - O despacho conjunto em crise, ao homologar o valor proposto pelo Relatório da Comissão de Avaliação de Débitos, reveste a forma de uma sentença jurisdicional, porquanto passível de imediata execução, pela retenção de verbas do FEF, caso não seja cumprida voluntáriamente; consequentemente, são materialmente inconstitucionais as normas dos arts. 5º nº 4 e 5 e artº 4º nº 1 e
3 do D.L. 103-B/89, que permitem e atribuem tal força ao despacho recorrido, por violação do princípio da reserva da função jurisdicional aos Tribunais, previsto nos arts 205º e 206º da C.R., estando o despacho recorrido ferido de violação da lei por erro nos pressupostos de direito.
2 - Da mesma forma, aquele artº 5º do DL 103-B/89, ao estabelecer uma metodologia que impede a reapreciação das soluções técnicas e jurídicas que terão presidido à avaliação do património da Recorrente, traduz uma violação do princípio constitucional do acesso aos Tribunais, previsto no artº 20º, nº 2 da C.R., enfermando de inconstitucionalidade material e o referido despacho do consequente vício de violação de lei.
5. Contra-alegaram os Secretários de Estado recorridos, após o que o STA, por acórdão de 3 de Março de 1994, na sequência de anterior jurisprudência do mesmo tribunal, (nomeadamente dos seus acórdãos de 12 de Março de 1991, no processo nº 27994, de 30 de Abril de 1992, no processo nº 27904, de 9 de Junho de 1992, no processo nº 27592, de 25 de Fevereiro de 1992, no processo nº 27593 e de 9 de Dezembro de 1992, no processo nº 27764), e pelos mesmos fundamentos, julgou o recurso procedente relativamente ao vício de usurpação de poder, e com prejuízo do conhecimento dos demais vícios arguidos pela recorrente.
O acórdão julgou inconstitucional a norma constante do artigo 5º, nº
4, do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, ao abrigo da qual fora proferido o despacho impugnado, por violação do disposto nos artigos 205º e 206º da Constituição, enquanto confere ao Governo poderes que, por representarem o exercício da função jurisdicional, estão reservados aos tribunais.
Recusou assim a aplicação daquela norma, e declarou a nulidade do invocado despacho, nos termos que se transcrevem:
Importa, por isso, saber, para responder à questão aqui em causa, se esse poder se insere no exercício de função administrativa, que lhe cabe ou na função jurisdicional que cabe aos tribunais. Dito de outro modo, interessa saber se o governo surge aí a prosseguir interesses, como parte ou a resolver conflitos de interesses, como juiz.
[...]
No caso sub judice, a decisão ministerial não procura a solução mais adequada para assegurar o funcionamento regular e contínuo de um serviço público essencial, o da distribuição da energia eléctrica, que então se integraria no exercício da função administrativa (artº 202º, al. d) da CRP). Ao contrário, pretende-se que o Governo actue como terceiro imparcial para resolver um conflito, dizendo o que é o direito. Não só declara a existência de uma dívida e respectivo montante, como ordena, através da retenção, a cobrança da dívida. Não prossegue, assim, um interesse, antes resolve um conflito entre o município de V. N. de Famalicão e a EDP. Mas essa missão cabe hoje aos tribunais. Veja-se o Ac. do Tribunal Constitucional nº 98/88, BMJ, p. 302.
Assim, por violação do princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais, decorrente dos artºs 205º e
207º da Constituição da República, e tendo em conta o que dispõe o nº 3 do artº
4º do ETAF, recusa-se a aplicação da norma contida nos nºs 4 e 5 do artº 5º do DL nº 102-B/89, de 4 de Abril, na parte em que permite, por aceitação expressa do montante proposto nos termos e pela Comissão referidos nos nºs 1, 2 e 3 do artº 5º desse diploma fixar o quantitativo da dívida dos municípios à EDP. Não tem assim base legal os despachos, que integram o despacho conjunto recorrido, os quais traduzindo o exercício da função jurisdicional, estão incluídos nas atribuições dos tribunais, sendo, portanto, estranhos às atribuições da Administração Pública, pelo que estão feridos de nulidade, por vício de usurpação de poder.
6. Desta decisão recorreu o Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da LTC, porse ter verficado na mesma a recusa de aplicação da «norma contida no artº 5º nºs 4 e 5 do Decreto-Lei nº
103-B/89, de 4 de Abril, por violar o princípio da reserva da função jurisdicional aos Tribunais, decorrente dos artigos 205º e 207º da Constituição da República».
Admitido o recurso, e já neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações, que concluiu pela forma seguinte:
Da análise doutrinária e jurispru-dencial efectuada, parece liquido que o despacho conjunto impugnado não está incluido nas atribuições dos Tribunais Judiciais.
De facto, tal acto foi praticado ao abrigo e nos termos do nº 4 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 103-B/89, segundo o qual 'no prazo de quinze dias após a apresentação do relatório referido no número anterior, por decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, pode ser expressamente aceite, para efeitos de fixação do quantitativo referido no artº 3º, o montante proposto pela Comissão.
Esse acto foi protelado no Relatório da Comissão de Avaliação dos Débitos da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão à EDP.
Deste modo a homologação do montante da dívida proposta pela referida Comissão, consubstancia um acto adminis-trativo, exercido no âmbito de uma função meramente administrativa, visando asse-gurar o funcionamento regular e contínuo de um serviço público essencial - distribuição de energia eléctrica (artº 202º alíneas d) e g) da CRP) - realiza um interesse público.
O despacho conjunto sindicado, e ao contrário do que defende o douto acórdão sob recurso, não visa a resolução de uma questão de direito, não estando a dirimir qualquer litígio.
Pelo que o despacho conjunto, sendo um acto administrativo, não viola a reserva do poder jurisdicional, prevista nos artº 205º e 206º da CRP, nºs 1 e
2 da actual redacção do artº 205º
Apesar do disposto no artigo 70º, nº 1, al. a) da Constituição, o Ministério Público não alegou.
7. A Câmara recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão do S.T.A., nos termos seguintes:
1. Tendo a Administração, ao abrigo dos nºs 4 e 5 do artº 5º do D.L.
103-B/89, sido colocada na posição de definir o conflito de interesses concreto que opunha a Câmara Recorrida à EDP, decidindo qual a dívida daquela a esta empresa pública e determinando a sua execução coerciva, através da retenção das verbas do fundo de equilíbrio financeiro a transferir para o município, agiu no
âmbito da função jurisdicional, violando as referidas normas o princípio da reserva da função jurisdicional aos Tribunais, consignado nos arts. 205º e 206º da C.R.P. estando, por essa via, ferido de inconstitucionalidade material.
2. Na verdade, corresponde à função jurisdicional a resolução de questões de direito ou conflitos de interesses entre pessoas bem como controvérsias sobre a verificação ou não, em concreto, de uma ofensa ou violação da ordem jurídica, tendo em atenção uma situação jurídica definida anteriormente, tal como é jurisdicional o conjunto dos actos tendentes à execução forçada e coerciva da prestação de um facto ou uma coisa.
3. Ademais, se assim não fosse entendido, aquela previsão normativa do D.L. 103-B/89 violava o princípio da garantia de recurso aos Tribunais,
ínsito no artº 268º nº 4 da C.R.P. porquanto admitindo o recurso sobre a legalidade do acto ou despacho de retenção de verbas, impediria a reapreciação por um órgão jurisdicional dos critérios e soluções jurídicas que estiverem na base do mesmo despacho, critérios esses que contendem com a fixação da dívida e respectiva apreciação das questões de facto e de direito que lhe estão subjacentes, traduzindo, por isso, uma limitação intolerável daquele princípio consti-tucional.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
8. A norma em causa é a seguinte:
4 - No prazo de quinze dias após a apresentação do relatório referido no número anterior, por decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, pode ser expressamente aceite, para efitos de fixação do quantitativo referido no artigo 3º, o montante proposto pela comissão.
9. No seu Acórdão nº 260/98 (Diário da República, I série-A, de 31 de Março de 1998), este Tribunal apreciou as normas contidas no artigo 4º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, tendo declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das mesmas, por violação do disposto no artigo 242º, nº 1 da Constituição.
O Tribunal não apreciou então a questão da violação por aquelas normas do princípio da reserva de juiz, embora esse aspecto conste das declarações de voto juntas ao Acórdão.
E, embora nos presentes autos não estejam em causa as normas cuja inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória geral por aquele Acórdão, verifica-se todavia uma clara indissolubilidade entre essas normas. Como se pode ler, no acórdão recorrido:
... a norma do nº 4º do artº 5º do citado DL nº 103-B/89. de 4.4
[...], permite, na regularização das dívidas à EDP pelos munícipios, que, para efeitos de consequente execução do regime de retenção de verbas e transferências a favor da EDP, previsto no art. 4º desse Diploma, os Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, decidam aceitar, fixando como dívida dos municípios à EDP, o montante proposto pela Comissão de Avaliação de tais débitos, constituída a solicitação de qualquer das partes em desacordo, num caso concreto.
Ora, no caso sub judice, foi para efeitos de aplicação do regime de retenção e transferências de verbas previstos no art. 4º do DL nº 103-B/89, de
4.4, e ao abrigo da norma contida no nº 4º do art. 5 desse Diploma, que foram proferidos os despachos impugnados, os quais, aceitando o montante proposto no
«relatório» de supra 2-E, apresentado após resolução maioritária da Comissão de Avaliação de débitos para tal fim constituída, fixaram em 29.044.802$60 o montante da dívida da C.M. Bombarral à EDP.
10. Com efeito, dispõe o artigo 4º do Decreto-Lei nº 103-B/89 que
«os Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território procederão, respectivamente, à retenção de verbas» nos termos e dentro dos limites aí determinados (nºs 1 e 3), sendo os municípios informados por aqueles Ministérios da retenção assim efectuada (nº 2) e aquelas verbas
«transferidas mensalmente para a EDP» (nº 4), estabelecendo ainda o nº 5 a incidência e repartição da retenção em causa.
Como também se salientou no citado Acórdão nº 260/98, a determinação do quantitativo objecto da aludida retenção é feita «em alternativa pelo valor referido no nº 1 do artigo 2º ou pelo valor fixado nos termos do nº 4 do artigo
5º», estando assim aquelas disposições interligadas.
Com efeito, o artigo 5º prevê uma das formas de determinação do montante das dívidas, no caso de desacordo entre as partes (Câmara e EDP), através da constituição de uma comissão de avaliação de débitos. O resultado da avaliação efectuada por essa comissão, pela forma prevista no citado artigo 5º, constituirá então, após aceite por decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, «a fixação do quantitativo» da dívida em causa, ou seja, do montante a reter pela forma prescrita no artigo 4º.
Pois bem, independentemente da apreciação da questão suscitada de violação de reserva de juiz, resulta claro que, sendo a aplicação daquelas disposições indissociáveis, nomeadamente porque a previsão do artigo 5º é pressuposto da aplicação do previsto, por sua vez, no artigo 4º, por se referir a uma das formas de determinação dos débitos a reter nos termos desta última disposição, e tendo esta sido declararda inconstitucional, com força obrigatória geral, terá como consequência a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 5º, dada a manifesta indissolubilidade das questões em causa.
Ou seja, aquela declaração de inconstitu-cionalidade comunica-se, de forma consequencial e necessária, à norma dos nºs 4 e 5 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril.
III - DECISÃO
11. Nestes termos, decide-se:
a) julgar consequencialmente inconstitucional a norma constante dos nºs 4 e 5 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril;
b) negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no tocante à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Junho de 1998 Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Messias Bento José de Sousa e Brito Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa