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Processo n.º 279/14
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), em que é reclamante a APIT-Associação dos Profissionais da Inspeção Tributária, e reclamado o Ministério das Finanças e da Administração Pública, a primeira reclamou, ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido em 28/01/2014 pelo juiz-relator do STA, que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional interposto pela ora reclamante.
2. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 09/01/2014, «nos termos do artigo 150.º, n.ºs 1 e 5 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)» não admitiu a revista excecional pedida pela ora reclamante do acórdão proferido pelo TCA Sul que, por sua vez, rejeitara o recurso jurisdicional interposto da sentença proferida no TAC Lisboa pelo Juiz Relator - com invocação dos poderes conferidos pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea i) do CPTA -, que julgara improcedente a ação administrativa intentada pela referida APIT.
3. Notificada desse Acórdão do STA, veio então a APIT interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), em requerimento em que identifica inequívoca e expressamente como acórdão recorrido o proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo «que não admitiu o Recurso de Revista por si interposto». A questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada é enunciada da seguinte forma:
“Inconstitucionalidade material do entendimento normativo dados às normas vertidas no n.º 1, do 29.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (com referência ao disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do mesmo compêndio legal), e no artigo 199.º, do Código de Processo Civil (Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de dezembro de 1961, na versão consolidada vigente por força do Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril), quando interpretados no sentido de que não deve convolar-se em reclamação a peça processual que contenha o requerimento de interposição do recurso e a sua alegação, independentemente de ter sido entregue para além do prazo da reclamação, por não dever prevalecer a manifestação da intenção expressa de impugnar o despacho ou a sentença proferidos por juiz singular”.
4. Por despacho datado de 28/01/2014, o Relator do STA não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, com base nos seguintes fundamentos:
«Notificado do acórdão deste Supremo Tribunal de fls. 428 e sgs, que não admitiu o recurso excecional de revista que interpôs de acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Nesse requerimento identifica-se, sem margem para dúvidas, a decisão recorrida como sendo o referido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo. Assim, será por referência a essa decisão que vão ser apreciados os pressupostos de admissibilidade do recurso.
2. Ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos demais tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Como a recorrente pretende ver apreciada a (in) constitucionalidade das normas vertidas no nº 1, do artº 29º do CPTA (com referência ao artº 27º, nº 1, al i), e nº 2 do mesmo compêndio legal), e no artº 199º do CPC, para que o recurso pudesse ser admitido, seria necessário que o acórdão recorrido tivesse feito aplicação dessas normas.
Ora, é manifesto que o acórdão recorrido se limitou a apreciar os requisitos de admissibilidade do recurso excecional de revista, aplicando o disposto no n.º 1 do art.º 150.º do CPTA e não quaisquer outras normas, designadamente aquelas que a recorrente refere e que respeitam à questão de fundo. Sobre isso nada decidiu — nem podia - o acórdão de que se pretende recorrer para o Tribunal Constitucional. As referências constantes do acórdão de que ora se pretende recorrer às normas mencionadas pela recorrente são, como facilmente se conclui, mera transcrição do acórdão do TCA de fls. 394 e sgs., a que, por manifesto lapso material, faltou o fecho das aspas em ... “685-C, nº 5, do CPC”.
Consequentemente, o recurso de constitucionalidade ora interposto não pode ser admitido.»
5. Inconformada com o teor de tal despacho, a APIT reclamou para o Tribunal Constitucional. É do seguinte teor a reclamação em causa:
«Por requerimento datado de 23 de janeiro de 2014, a ora Reclamante interpôs nos autos supra Recurso para esse Tribunal ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, de objeto limitado à apreciação da seguinte questão:
Inconstitucionalidade material do entendimento normativo dado às normas vertidas no n.º 1, do 29.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (com referência ao disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do mesmo compêndio legal), e no artigo 199.º, do Código de Processo Civil (Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de dezembro de 1961, na versão consolidada vigente por força do Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril), quando interpretados no sentido de que não deve convolar-se em reclamação a peça processual que contenha o requerimento de interposição de recurso e a sua alegação, independentemente de ter sido entregue para além do prazo da reclamação, por não dever prevalecer a manifestação da intenção expressa de impugnar o despacho ou a sentença proferidos por juiz singular,
Quando é certo que tal interpretação se mostra incompatível com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, contendendo, pois, com o próprio acesso ao direito e, por isso, com o princípio proactione, em geral, reconhecidos e consagradas nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa,
Não devendo ser ainda aceitável que não devam proceder, para a convolação, as razões que justificam a possibilidade de correção do erro na forma do processo,
E tendo também em consideração que não é menos certo que o Código de Processo Civil presentemente em vigor (cfr. Lei n.º 41/2013, de 26 de junho) - e que se entende subsidiaria e imediatamente aplicável nos presentes autos - contém já uma norma inovadora, no n.º 3, do artigo 193.º («Erro na forma do processo ou no meio processual»), que estabelece exatamente que “O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.”:
Por razões inerentes ao próprio princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, consagrado na reforma do processo civil por meio do reforço dos poderes de direção, agilização e adequação da tramitação do processo pelo juiz, orientando-se toda a atividade processual para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou substância sobre a forma, cabendo, designadamente, ao juiz suprir o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjetivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais.
A questão supra citada foi suscitada pela ora Reclamante de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão coletiva, em sede de interposição e motivação de recurso de Revista, no qual se concluiu, designadamente, que:
a) Tal recurso se justificava por se pretender analisar, debater e obter uma decisão judicial de fundo, sobre a questão da invocada impossibilidade de convolação de recurso em reclamação para a Conferência do tribunal de 1.ª Instância, nos termos da alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, do CPTA, e, ainda, atento o prescrito pelo artigo 199.º, do CPC, e a superveniente entrada em vigor do que dispõe o n.º 3, do artigo 193.º, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, tratando-se de questão jurídica com relevância jurídica e social, também revestida de importância fundamental, e, ainda, necessária para uma melhor aplicação do direito;
b) Que o acórdão então recorrido acolhia posição formalista sobre a questão jurídica do erro de utilização de meios processuais impugnatórios, revelando uma postura não só contrária ao princípio pro actione, como também violadora da Constituição da República Portuguesa, no que toca à compressão inadmissível do princípio da tutela jurisdicional efetiva;
c) Que se entendia, em consequência disso, que se devia convolar em reclamação a peça processual que contenha o requerimento de interposição de recurso e a sua alegação, independentemente de ter sido entregue para além do prazo da reclamação, por dever prevalecer a manifestação da intenção de impugnar o despacho ou a sentença proferidos por juiz singular;
E, em suma,
d) Que a decisão então recorrida, ao interpretar e aplicar de forma desconforme às conclusões supra as normas jurídicas previstas nos artigos 20.º, da CRP, 7.º, e 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, 199.º e 193.º, n.º 3, do CPC (o primeiro na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), incorreu em vício de violação de lei constitucional, e adjetiva, respetivamente, devendo, em consequência, ser revogada e substituída por outra que ordene a convolação do requerimento de interposição e motivação de recurso da Recorrente, em Reclamação para a Conferência do Tribunal de 1.ª Instância, com todas as consequências legais.
Acontece que,
Por acórdão de 9 de janeiro de 2014, veio o Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar (cfr. artigo 150.º, n.º 5, do CPTA), decidir pela não admissão da interposta Revista Excecional, por, nomeadamente, se ter entendido não só ser de aplicar a jurisprudência vertida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 5 de junho de 2012, do STA,
Mas também porque, no dizer daquele Tribunal superior, não terá aduzido a ora Reclamante argumentos que pudessem justificar a reponderação daquela jurisprudência dita “uniforme”, nem oficiosamente ter, tal Tribunal, vislumbrado razões e/ou argumentos para tanto,
O que, no que toca ao primeiro argumento apresentado, e salvo todo o respeito que se tem e é devido aos tribunais, é falso.
Bem pelo contrário,
O estado de coisas exemplarmente refletido nos presentes autos é, infelizmente, o paradigma da adoção, em termos de interpretação da lei, de um tipo de solução desrazoável, desproporcional e discriminatória, não tendo sido observado, como era mister e se entende ser de caráter vinculado, quer o direito a um processo equitativo, quer os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Como se referiu já no Acórdão n.º 628/2005, desse venerando Tribunal Constitucional, a garantia constitucional do direito ao recurso, por exempto, não se esgota na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso, pois «tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer — mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 1229/96 e 462/2003)».
Senão, vejamos in casu
A ação que iniciou os presentes autos foi interposta pela ora Reclamante em 29/11/2010.
A decisão de 1.ª instância recorrida, por sua vez, foi proferida em 12/07/2011.
Dessa decisão, foi interposto recurso de Apelação pela ora Reclamante em 30/09/2011.
Por despacho de 04/11/2011, foi, pelo tribunal de 1.ª instância, admitido o recurso.
Ainda, no dia 30/04/2012, é junto aos autos de recurso o Parecer do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, e que, sem arguição de qualquer questão que impedisse o conhecimento do recurso, proferiu inclusivamente um parecer no sentido de ser julgado o mesmo parcialmente procedente!
Bem assim, além e fora da instância dos presentes autos, proferiu o Supremo Tribunal Administrativo, em 05/06/2012, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2012, nos termos do qual se fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2, não recurso».
Consequentemente, em data, pois, posterior à publicação desta jurisprudência (cfr. DR Série I, n.º 182, de 19/09/2012), profere o Tribunal Central Administrativo Sul, em 11/07/2013, o Acórdão então sindicado pela Reclamante junto do Supremo Tribunal de Justiça, perfilhando, portanto, aquela jurisprudência uniformizada e decidindo - ex novo, de resto - não admitir o recurso interposto pela ora Reclamante da decisão de 1.ª instância.
Ora, todavia,
É no plano inegável das consequências práticas de utilização de recurso em vez de reclamação que se revelam hoje, pois - e também na decorrência e por causa da citada jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal Administrativo -, os malefícios da solução de convolação, quando a respetiva questão jurídica é aparentemente enunciada como se de um mero expediente, para suavizar o rigor da Lei, bem vistas as coisas, se tratasse.
De facto, são hoje, em regra, diferentes os prazos para reclamar ou para recorrer: o prazo para reclamar é de 10 dias no CPTA (cfr. artigo 29.º, n.º 1) e no CPC (cfr. artigo 149.º, da redação que foi conferida a este código, por força da entrada em vigor, a 01/09/2013, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho); o prazo para recorrer de decisões de mérito é de 30 dias no CPTA (cfr. artigo 144.º) e no cPc (cfr. artigo 638.º, idem), neste último caso, eventualmente prorrogáveis por mais 10 dias (cfr. n.º 7, do mesmo artigo, idem).
Logo, é provável que no momento em que o vencido deduza o meio de reação recurso, já tenha decorrido o prazo de reclamação, extinguindo-se por caducidade o direito a reclamar.
A convolação - anteriormente prevista no artigo 688.º, n.º 5, do CPC, na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto -, aparentemente, e de acordo com a posição de parte da doutrina e da jurisprudência, não será gravosa quando seja idêntico o prazo para reclamar e para recorrer (como, aliás, sucedia em sede de CPC, antes da entrada em vigor da Reforma dos recursos cíveis levada a cabo pelo mencionado Decreto-Lei n.º 303/2007).
Porém, no caso oposto, já se revela gravosa quando a interposição do recurso não haja ocorrido no prazo de 10 dias em que deve ser apresentada a eventual reclamação, nos termos do n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA.
Daquilo que se acaba de expor, e do qual foi dado conhecimento ao STA, em sede de recurso de Revista, resulta, sem margem para grandes dúvidas, no entendimento da ora Reclamante, que
- quer o acórdão uniformizador n.º 3/2012, do STA;
- quer o acórdão ora recorrido,
Acolheram uma posição demasiado formalista sobre a questão jurídica em apreço, reveladora de uma postura não só contrária ao PRINCÍPIO PROACTIONE (cfr. artigo 7.º, do CPTA), como também violadora da própria Constituição, no que toca à compressão inadmissível do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado do artigo 20.º, daquele Texto Fundamental.
Convém, bem assim, ler o que se mostra descrito no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2010, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em especial, as respetivas declarações de voto, para se perceber - também na perspetiva das razões pelas quais se entende dever ser de admitir o interposto Recurso de Constitucionalidade - que continuam a existir muitos juristas adeptos de uma posição formalista que privilegia, acima de tudo, a preclusão de direitos processuais como decorrência de um erro no uso de um meio processual, sobretudo impugnatório.
No entanto, em bom rigor, neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, entendeu-se aplicar por analogia o disposto no já referido artigo 688.º, n.º 5, do CPC (na redação de 1995, revogado em 2007), para justificar a convolação de um recurso numa reclamação, ao abrigo do artigo 700.º, n.º 3, do CPC (na redação conferida ao CPC pela Lei n.º 41/2013, vide o artigo 652.º, n.º 3), norma, aliás, inspiradora do n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA.
Considera-se, ainda, que, nesse aresto, a Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza foi a única - do corpo de juízes que compôs a formação que prolatou aquela decisão uniformizadora - a tomar uma posição verdadeiramente pro actioae, ao escrever, na sua declaração de voto: “Votei o acórdão, não por entender ser aplicável por analogia o n.º 5, do artigo 688.º do Código de Processo Civil mas por considerar que deve prevalecer a intenção de impugnar a decisão, desde que inequivocamente expressa no correspondente requerimento. Procedem, para a convolação, as razões que justificam a possibilidade de correção do erro na forma do processo.”.
É, também por isso mesmo, absolutamente criticável, não só a solução do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, do STA, invocado como fundamento quer do Acórdão do TCAS, quer do Acórdão do STA, proferidos nos autos,
Sendo que aquela última decisão do STA adota e faz sua a fundamentação do anterior acórdão do TCAS,
Quando não é menos certo que, a decisão coletiva do STA, ao invés de se ficar pelo não dito, deveria ter ido mais Longe, e decidido, no nosso entendimento, também que:
-- Se deve convolar em reclamação a peça processual que contenha o requerimento de interposição de recurso e a sua alegação, independentemente de ter sido entregue para além do prazo da reclamação, por dever prevalecer a manifestação da intenção de impugnar o despacho ou a sentença proferidos por juiz singular.
Repare-se ainda que, se se tratasse de sentença proferida em ação administrativa comum, a questão não se poria, por ser aplicável, no caso, o Código de Processo Civil e a sentença ser sempre proferida por juiz singular.
É também por isso que defende a ora Reclamante que, tal como decidiu o TCAS nos autos, mesmo que, percetivelmente, perfilhando jurisprudência uniformizada desse STA, mantém-se iniquamente na ordem jurídica, uma verdadeira “armadilha”, variando os regimes consoante se esteja perante decisão de juiz singular na ação administrativa comum e na ação administrativa especial (em processo acima de certo valor).
Acrescenta-se, ainda, que o Código de Processo Civil em vigor - e que se entende subsidiaria e imediatamente aplicável nos presentes autos - contém já uma norma inovadora, no n.º 3, do artigo 193.º («Erro na forma do processo ou no meio processual»), que estabelece exatamente que “O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.
E se confrontarmos a Exposição de Motivos da própria Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, chegaremos certamente à correta conclusão de que o novo Código de Processo Civil homenageia o mérito e a substância em detrimento da mera formalidade processual, conferindo-se às Partes e aos respetivos Advogados a possibilidade efetiva de apreenderem com total serenidade e confiança a sua inserção e responsabilização pelo alcance de soluções de mérito, ao fim e ao cabo, a razão primeira da sua intervenção em representação dos Cidadãos.
Por tal motivo, e em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, bem como por via do reforço dos poderes de direção, agilização e adequação da tramitação do processo pelo juiz, toda a atividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjetivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais.
Assim, se os referidos princípios gerais já apontavam, eles mesmos, fortemente, e até mesmo antes da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, para a interpretação do n.º 3 do artigo 700.º, no sentido da convolação do requerimento de recurso para requerimento para a conferência, a aplicação, por analogia, do mencionado n.º 5, do artigo 688.º, ou até dos outros preceitos acabados de referir, determina-a categoricamente.
Pela conversão do requerimento, pronunciaram-se, por exemplo, Teixeira de Sousa (ob. cit., 480 e 546), e Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 233),
E a maioria das decisões do Supremo Tribunal de Justiça — Acórdãos de 14 de março de 2000, Revista n.º 1024/99, 6.ª Secção; 15 de maio de 2002, Incidente n.º 4271, 4.ª Secção; 8 de julho de 2003, Recurso n.º 2243/02, 4.ª Secção (neste o requerimento não era de recurso da decisão do relator, mas de reclamação da decisão deste para o presidente do STJ e, entendendo -se que devia ter tido lugar reclamação para a conferência, decidiu -se dever a reclamação ser apreciada por esta); 20 de novembro de 2003, Agravo n.º 2769/03, 1.ª Secção; 3 de fevereiro de 2005, Incidente n.º 4284/04, 2.ª Secção; 14 de abril de 2005, Incidente n.º 4416/04, 7.ª Secção (em caso idêntico ao do Acórdão de 8 de julho de 2003); 20 de setembro de 2005, Agravo n.º 1515/05, 1.ª Secção; 16 de fevereiro de 2006, Agravo n.º 3925/05, 7.ª Secção; 16 de fevereiro de 2006, Agravo n.º 346/06, 7.ª Secção; 19 de dezembro de 2007, Recurso n.º 1804/07, 4.ª Secção (em caso idêntico ao do Acórdão de 8 de julho de 2003); 29 de janeiro de 2008, Agravo n.º 4443/07, 6.ª Secção; 15 de maio de 2008, Agravo n.º 17/08, Secção (em caso idêntico ao do Acórdão de 8 de julho de 2003); 23 de setembro de 2008, Agravo n.º 2128/08, 7.ª Secção (em caso idêntico ao do Acórdão de 8 de julho de 2003); e 4 de novembro de 2008, Agravo n.º 3353/08, 6.ª Secção.
É assim que,
Por se entender estarem verificados nos autos os pressupostos de admissibilidade do interposto recurso de constitucionalidade, previstos no artigo 75.º-A da LOFPTC, requer a ora Reclamante a V. Exa.:
-- Se digne revogar o despacho do Sr. Juiz Conselheiro do STA, que não admitiu o mencionado recurso, e, em consequência, se digne pro[atar nova decisão que julgue tal recurso admissível com todas as consequências legais.»
6. Neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido do indeferimento da reclamação, nos termos seguintes:
«(…)
5. Ora, como nos parece claro, a decisão recorrida não aplicou, nem podia ter aplicado, a norma identificada como devendo constituir objeto do recurso.
6. Efetivamente, ao não admitir a revista excecional, o Supremo Tribunal Administrativo aplicou, exclusivamente, o artigo 150.º, n.ºs 1 e 5 do CPTA.
7. No acórdão recorrido, após se analisar o caso concreto o regime legal e a jurisprudência relevante, conclui-se:
“Assim, estando o decidido em conformidade com jurisprudência uniformizada sobre a questão e não aduzindo a recorrente, nem oficiosamente se vislumbrando, argumentos que possam justificar a sua reponderação, não deve admitir-se a revista”.
8. Ora, na reclamação agora apresentada, a recorrente apenas questiona a decisão recorrida, por não ter admitido a revista.
9. Qualifica até o primeiro argumento apresentado como “falso” e explica desenvolvidamente a razão para o qualificar dessa forma.
10. Quanto ao segundo argumento, também dá a conhecer posições variadas e de origem diversa que, na sua opinião, naturalmente, deviam levar à reponderação da interpretação acolhida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012.
11. Ora, a matéria relacionada com os requisitos de admissibilidade da revista ampliada constantes do artigo 150º do CPTA, não é sindicável por este Tribunal Constitucional, desde logo porque não foi levantada qualquer questão de inconstitucionalidade que ancorasse naquela norma, a única aplicada.
12. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
7. O recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da LTC pressupõe que a decisão recorrida tenha aplicado a norma ou interpretação normativa arguida de inconstitucional como ratio decidendi no julgamento do caso. Tem, pois, de existir uma perfeita coincidência entre a norma – ou dimensão normativa – imputada de inconstitucional no requerimento de interposição do recurso, e a norma – ou dimensão normativa – que foi efetivamente aplicada pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão final. Atenta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas assim um eventual juízo de inconstitucionalidade se poderá repercutir efetivamente na solução a dar ao caso concreto.
Importa, assim, confrontar a norma objeto do presente recurso, tal como foi delineada pela recorrente, ora reclamante, com a norma que sustentou e fundamentou a decisão do STA, identificado como o acórdão recorrido.
7.1. As normas objeto do presente recurso correspondem às vertidas no n.º 1, do 29.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (com referência ao disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do mesmo diploma), e no artigo 199.º, do Código de Processo Civil (na redação do Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril), «quando interpretados no sentido de que não deve convolar-se em reclamação a peça processual que contenha o requerimento de interposição do recurso e a sua alegação, independentemente de ter sido entregue para além do prazo da reclamação, por não dever prevalecer a manifestação da intenção expressa de impugnar o despacho ou a sentença proferidos por juiz singular»
7.2. Ora, a decisão do acórdão recorrido não se fundamenta nas normas que constituem o objeto do presente recurso. O STA fundamenta a sua decisão de não admissão de recurso de revista nos n.ºs 1 e 5 do artigo 150º do CPTA, por considerar não estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revestia de importância fundamental, nem uma situação em que a admissão do recurso fosse claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. É apenas para fundamentar essa conclusão que o STA refere que o decidido pelo TCA «seguiu a doutrina o acórdão de 05-06-2012, proferido para uniformização de jurisprudência (…), que fixou jurisprudência no sentido de que das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no art. 27.º, n.º1, alínea i), do CPTA, nos termos do n.º2, cabe reclamação para a conferência, não recurso». Mas, note-se, o referido artigo 27.º, n.º1, alínea i), do CPTA, em si, não é a ratio decidendi da decisão do STA. Esse Tribunal apenas refere que «estando o decidido em conformidade com jurisprudência uniformizada sobre a questão e não aduzindo a recorrente, nem oficiosamente se vislumbrando, argumentos que possam justificar a sua reponderação, não deve admitir-se a revista», já que não estão verificados os requisitos dessa revista excecional. Ao não admitir a revista excecional, o Supremo Tribunal Administrativo aplicou exclusivamente o artigo 150.º, n.ºs 1 e 5 do CPTA.
7.3. Pelo exposto, é fácil concluir que o Acórdão recorrido não fundamentou a sua decisão na norma delineada no requerimento de interposição de recurso como consistindo o objeto do recurso.
8. É certo que na reclamação agora apresentada, a reclamante tece algumas considerações sobre a decisão do STA de não admissão do recurso de revista. No entanto, limita-se a questionar a decisão recorrida em si mesma, referindo, desde logo, que um dos seus fundamentos «é falso». Ora, a matéria relacionada com os requisitos de admissibilidade da revista constantes do artigo 150º do CPTA, não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, que não se pode imiscuir na tarefa de verificação do preenchimento dos requisitos previstos na lei para o recurso em causa. Trata-se aí de uma matéria de índole puramente infraconstitucional, e, por isso, reservada aos tribunais comuns. Em tudo o mais, a ora reclamante limita-se a reiterar a inconstitucionalidade do objeto do recurso tal como formulado no requerimento de interposição do mesmo.
Tanto basta para o recurso de constitucionalidade não poder ser aceite.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de abril de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.