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Procº nº 43/97
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA. I
1. Após ter transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 30 de Junho de 1994, o qual, por entre o mais, veio a condenar o arguido L. P. na pena de quatro anos e seis meses de prisão pela autoria de um crime continuado de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 297º, nº 1, alínea a), 30º, nº 2, e 78º, nº
5, todos do Código Penal, e de um crime de burla agravada, previsto e punível pelas combinadas disposições dos artigos 313º e 314º, nº 1, alínea c), 30º, nº
2, e 78º, nº 5, estes também daquele corpo de leis, fez o mesmo arguido juntar aos autos requerimento por intermédio do qual, em síntese, solicitou que - ponderando que as alterações introduzidas no Código Penal pelo Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março, vieram a estabelecer molduras penais menos gravosas para os tipos de ilícito pelos quais ele foi condenado - viesse a ser efectuado julgamento 'com vista a decidir quais as disposições penais mais favoráveis ao arguido, se as vigentes no momento da prática dos factos puniveis ou as posteriores, as introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15/3, e a decidir em conformidade'.
O assim peticionado veio a ser indeferido por despacho de 12 de Julho de 1996, prolatado pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, essencialmente com base no argumento segundo o qual, estando já transitado o acórdão proferido por aquele Supremo, não tinha aplicação o disposto no nº 4 do artº 2º do Código Penal, sendo certo ainda, por um lado, que, aquando da data do proferimento do acórdão do mesmo Alto Tribunal, ainda não se encontravam em vigor as alterações introduzidas naquele Código pelo D.L. nº 48/95 e, por outro, que a 'ressalva da parte final do nº 4 do artº 2º CP, se confrontada com o disposto no artº 666º, nº 1, do Cod. Proc. Civil, tem de ser entendida como com ela não entrando em colisão'.
Desse despacho reclamou o arguido para a conferência vindo, de entre o mais, a sustentar que a norma constante do nº 4 do artº 2º do Código Penal é materialmente inconstitucional na parte em que ressalva o trânsito em julgado, visto ofender o nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, outrossim ofendendo esta
última disposição a norma constante do nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil 'se interpretada no sentido de o trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional do juiz se esgota'.
2. O aludido Supremo Tribunal, por acórdão de 14 de Novembro de
1996, manteve o despacho impugnado, em face das razões nele aduzidas, acrescentando que '[q]uando o artº 29º, nº 4 da CRP dispõe que se aplicam
«retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido» de forma alguma pretende pôr em causa o valor do caso julgado e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz (artºs 666º, nº 1 e 671º, nº 1 CPC e 4º CPP)'.
É deste aresto que vem, pelo Luís Manuel Viveiros Pimentel, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, visando a apreciação da desconformidade com o Diploma Básico de que enfermarão, na sua óptica, as normas do nº 4 do artº 2º do Código Penal - 'na interpretação segundo a qual o Supremo Tribunal de Justiça, quando há alteração das leis penais, não tem que, oficiosamente, proceder a novo julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova, mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a decisão anterior sem ter havido julgamento para aferir qual a lei concretamente mais favorável', e
'na interpretação segundo a qual para julgar qual a lei mais favorável, se a vigente no momento da prática dos factos se a posterior, não é necessário ouvir o Mº Pº e os arguidos, apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento' - e do nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil - 'se interpretada no sentido de o trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido ao momento da aplicação da lei, ou seja, ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional do juiz se esgota'.
3. Determinada a feitura de alegações, produziram-nas o recorrente e o Ministério Público.
O primeiro concluiu a peça processual por si apresentada do seguinte modo:-
'1 - A norma do artº 2º nº 4 do Código Penal, ao limitar a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável aos casos em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença - ou acordão - colide frontalmente com a norma do artº 29º nº 4 da CRP, pelo que é materialmente inconstitucional;
2 - A norma do artº 29º nº 4 da CRP está inserida no título II da Parte I, Capítulo I, Direitos Liberdades e Garantias, pelo que é aplicável directamente vinculando entidades públicas e privadas, por força da norma do artº 18º nº 1 da CRP;
3 - A norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal é restritiva de direitos, liberdades e garantias, pelo que viola também a norma do artº 18º nº 3 da CRP, uma vez que diminui a extensão e o alcance do conteúdo essencial da norma do artº 29º nº 4 da CRP, colidindo com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, com o princípio da máxima restrição da pena, da igualdade;
4 - Por força da norma do artº 18º nº 2 da CRP a lei ordinária só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, pelo que a norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal só poderá ser conforme à constituição se outra norma, ou princípio constitucional, permitir ao legislador ordinário restringir a extensão e alcance da norma do artº 29º nº 4 da CRP;
5 - O STJ invoca em apoio da sua tese de conformidade constitucional da norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal, o princípio da intangibilidade do caso julgado e o princípio 'ne bis in idem' mas não lhe assiste razão;
6 - O princípio da intangibilidade do caso julgado não tem consagração constitucional hoje, como também não a tinha na versão originária da CRP/76, no sentido de impedir a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável.
7 - Mesmo no domínio da versão originária do artº 281º nº 2 da CRP/76, a boa doutrina defendia e a Comissão Constitucional julgou que não estava consagrado constitucionalmente o princípio intangibilidade do caso julgado;
8 - Após a revisão de 1982, o limite imposto no artº 281º nº 2 da CRP originária desapareceu e o artº 282º nº 3 da CRP veio dispôr que, desde que a norma da lei nova respeite a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social, e for de conteúdo mais favorável ao arguido, não ficam ressalvados os casos julgados;
9 - Por sua vez o princípio 'ne bis in idem' não pode obstar à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, porque este princípio, contido na norma do artº 29º nº 5 da CRP, não conflitua nem colide com o do artº
29º nº 4, porquanto é um direito subjectivo fundamental, é uma norma de protecção do indivíduo contra o Estado, uma garantia política, uma segurança jurídico-penal individual face ao 'jus puniendi' do Estado, não proibindo novo julgamento para aplicação da lei penal mais favorável, mas sim que quem tenha sido definitivamente absolvido, torne a ser julgado pela prática do mesmo crime, ou que haja dupla punição pela prática do mesmo crime;
10 - O princípio do caso julgado cede sempre que são publicadas leis de amnistia, ou que por alteração da lei penal, disciplinar ou de mera ordenação social, deixe de ser crime ou infracção disciplinar ou contraordenacional, um determinado comportamento, havendo necessidade de reformular as penas, ou mesmo nos casos em que há necessidade de efectuar cúmulos jurídicos supervenientes;
11 - Se no domínio do direito penal, disciplinar ou de mera ordenação social, o caso julgado ou o princípio 'ne bis in idem' fossem intransponíveis para a aplicação da lei penal mais favorável, verificava-se violação do princípio da igualdade e da máxima restrição da pena, consagrados no artº 13º nº
1 e 18º nº 1 da CRP/76, porque aconteceria que individuos que tivessem praticado o mesmo crime, mas fossem julgados com decisões transitadas, uma na vigência da lei velha e outro na vigência da lei nova mas mais favorável, teriam penas diferentes;
12 - A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável não colocará especiais problemas de ordem processual em Portugal, não será o 'descalabro', o
'caos', como alguns querem fazer crer, pois é tudo uma questão de coragem, de vontade política, na medida em que países como o Brasil e a Espanha o fazem;
13 - De igual forma o facto de a norma do artº 29º nº 4 da CRP conter a palavra 'arguido' e não de 'condenado', a exemplo do que acontece com a norma do artº 282º nº 3 da CRP, não significa que tivessem querido excluir do seu campo de aplicação os casos em que 'hic et nunc' o cidadão já não teria o estatuto de arguido mas sim o de condenado;
14 - Porque a norma do artº 29º nº 4 da CRP já na versão originária tinha a palavra arguido e a do artº 282 nº 3, desde a revisão constitucional de
1982, no momento, portanto, em que o CPP/29 estava em vigor e não continha tal terminologia, uma vez que a palavra arguido apenas substituiu a de réu - CPP/29
- desde a entrada em vigor do CPP/87, tratando-se pois de argumento meramente formal;
15 - O STJ sustentou que o trânsito em julgado de uma decisão tem de ser aferido em relação ao momento da aplicação da lei, ou seja, ao momento da prolação do acordão, esgotando-se o poder jurisdicional do juíz a partir daí por força da norma do artº 666º nº 1 do CPC, mas não lhe assiste razão, porque da mesma forma que uma lei de amnistia, v.g., pode conduzir a que o S.T.J., ou outro tribunal, tenha que modificar a sentença ou o acordão, reformulando a pena, ou tenha a necessidade de efectuar cúmulo jurídico, também a superveniência de uma lei penal mais favorável determinará a reformulação da pena, com a consequente alteração da sentença ou do acordão;
16 - De qualquer das formas, a norma do artº 666º nº 1 do CPC não pode sobrepor-se ou limitar o sentido e a extensão da norma do artº 29º nº 4 da CRP, pelo que se interpretada no sentido de que o poder jurisdicional do juíz se esgota e por essa via não pode ser aplicada retroactivamente a lei penal mais favorável, é materialmente inconstitu- cional, por violação da norma do artº 29º nº 4 e 32º nº 1 da CRP;
17 - Quando o recorrente requereu ao STJ que fosse efectuado novo julgamento para aplicação da lei nova mais favorável, ainda não tinha transitado o acordão condenatório do STJ, pelo que deveria ter sido efectuado novo julgamento;
18 - O julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova, ou seja, o julgamento se a lei nova é mais favorável ou não, implica que seja ouvido o MºPº e o recorrente, com apresentação, se o desejar, de nova motivação de recurso, em que tome posição sobre qual a lei mais favorável, e, v.g., em que sentido, qual o 'quantum' da pena a aplicar à luz da lei nova;
19 - A norma o artº 2º nº 4 do Cód. Penal, é materialmente inconstitucional e, naturalmente, também na 'interpretação segundo a qual o Supremo Tribunal de Justiça, quando há alteração das leis penais, não tem que, oficiosamente, proceder a novo julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova, mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a decisão anterior sem ter havido julgamento para aferir qual a lei concretamente mais favorável', por violação da norma do artº 29 nº 4 da CRP;
20 - A norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal é materialmente inconstitucional, por violação da norma do artº 29º nº 4 da CRP, na interpretação segundo a qual para julgar qual a lei mais favorável, se a vigente no momento da prática dos factos ou se a posterior, não é necessário ouvir o Mº Pº e os arguidos, apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento, por violação da norma do artº 29º nº 4 da CRP;
21 - A norma do nº 1 do artº 666º do CPC é materialmente inconstitucional, por violação das normas do artºs 29º nº 4 e 32º nº 1 da CRP, se interpretada no sentido de o trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido no momento da aplicação da lei, ou seja, ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional do juíz se esgota;
22 - O presente recurso tem toda a utilidade, na medida em que o recorrente foi julgado e condenado pela prática de um crime p. e p. no artº 297º nº 1 al. a) do Cód. Penal, na forma continuada e de um crime p. e p. no art.
314º nº 1 al. c) do Cód. Penal, na forma continuada e posteriormente, mesmo antes do trânsito em julgado da decisão, o Cód. Penal foi alterado, sendo que hoje os factos imputados subsumem-se, na pior das hipóteses, na norma do artº
204º nº 1 al. c) e 218º nº 1 do Cód. Penal revisto, com pena de prisão até 5 anos;
23 - A nosso ver os factos subsumem-se nas normas do artº 203º e 207º do Cód. Penal, porque as agravantes do artº 204º e 218º do mesmo código não são de funcionamento automático, mas sim caso a caso, quando ocorra o especial desvalor da acção ou do resultado que a lei levou em conta para fundamentar a qualificativa;
24 - Embora esta matéria deva ser discutida no tribunal 'a quo' sempre cumpre dizer que no caso concreto não se verificam as agravantes. face à lei nova, que é concretamente mais favorável;
25 - Devem pois ser julgadas materialmente inconstitucionais as normas dos artºs 2 nº 4 do Cód. Penal e artº 666º nº 1 do CPC.'
De seu lado, rematou o Ministério Público a sua alegação dizendo:-
'Suscitada a questão de inconstitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal por limitar a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável aos casos em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da decisão e assim colidir com a norma do artigo 29º, nº 4, da Constituição, mas não podendo, no caso, o Tribunal Constitucional tomar posição sobre se a suposta lei penal mais favorável o é ou não - por na lógica do recurso ser matéria a discutir no tribunal 'a quo' - e, consequentemente, se deve ou não prevalecer sobre o caso julgado, deverá julgar-se improcedente o recurso, por, embora se admita que aquela norma pode colidir com a referida norma constitucional, não pode afirmar-se que tal possa acontecer em todos os casos'.
Cumpre decidir.
II
1. Preliminarmente anotar-se-á que, muito embora no requerimento de interposição do vertente recurso o ora impugnante tenha suscitado a inconstitucionalidade da norma ínsita no nº 4 do artº 2º do Código Penal na dimensão segundo a qual 'o Supremo Tribunal de Justiça, quando há alteração das leis penais, não tem que, oficiosamente, proceder a novo julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova, mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a decisão anterior', e na sua alegação começasse por equacionar a questão 'aos casos em que ainda não tenha havido trânsito em julgado' (cfr. transcrita «conclusão» 1), isso não significa que se tenha ineludivelmente de entender que o mesmo quis limitar o objecto do recurso referentemente à falada norma e quanto às situações em que ainda se não formou caso julgado.
Na verdade, do teor daquela alegação resulta que o recorrente igualmente equaciona os casos em que já ocorreu o trânsito em julgado da decisão condenatória (cfr., verbi gratia, as também transcritas «conclusões» 5, 6, 7, 8,
10, 11 e 15), sendo certo que tudo indica que a sua postura quanto à colocação da questão de ainda se não ter constituído caso julgado poderá ser explicada face a um seu entendimento segundo o qual, in casu, o aresto sob censura ainda não teria transitado aquando do requerimento que formulou e no qual solicitava a aplicação das prescrições constantes do Código Penal na versão emergente do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
Sendo assim, será unicamente no particular das situações em que já ocorreu a formação de caso julgado que se irá analisar a questão, pois que foi com esse sentido que o nº 4 do artº 2º do Código Penal foi aplicado na decisão impugnada, é esse o trecho normativo que foi pelo recorrente questionado antes da prolação da decisão em crise e, por último, não pode deixar este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa de aceitar, no ponto, o juízo, efectuado pelo Alto Tribunal a quo, de que, efectivamente, o acórdão condenatório por ele proferido já tinha formado caso julgado.
1.1. De outra banda, não irá incidir a atenção sobre a mencionada norma na interpretação segundo a qual 'para julgar qual a lei mais favorável, se a vigente no momento da prática dos factos se a posterior, não é necessário ouvir o Mº Pº e os arguidos, apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento', uma vez que no acórdão sob censura essa questão não foi, directa ou implicitamente, resolvida.
De facto, aquele aresto (porque acolheu as razões constantes do despacho do Conselheiro Relator então sob reclamação), ao indeferir a pretensão do recorrente, bastou-se com a circunstância de a ressalva da parte final do nº
4 do artº 2º do Código Penal não permitir a aplicação da lei nova às situações em que já ocorreu caso julgado, sendo certo que o apelo ao nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil apenas serviu como faceta meramente argumentativa e adjuvante para, na óptica do Supremo Tribunal de Justiça, justificar a solução contida naquela ressalva, até porque tem sido com base neste último normativo que o aludido Alto Tribunal se tem posicionado no sentido de, proferido que seja um acórdão condenatório no domínio da lei penal antiga e ainda não transitado, a superveniência de lei penal porventura mais favorável não terá como efeito desencadear que esse órgão de administração de justiça venha a reapreciar a sua anterior decisão.
Significa isso, na realidade das coisas, que o nº 1 do artº 666º do C.P.C. não serviu no acórdão sub specie como suporte normativo da decisão que ali foi tomada.
Daí que o âmbito do vertente recurso se deva limitar à apreciação do segmento final da norma constante do nº 4 do artº 2º do Código Penal (deixado intocado pela reforma operada pelo dito Decreto-Lei nº 48/95), não interessando, por outro lado, saber se, tendo-se já formado caso julgado sobre a decisão condenatória e havendo superveniência de lei de conteúdo mais favorável, a reapreciação tem, oficiosamente, de ser levada a efeito.
E não interessará este ponto justamente porque, in casu, a reapreciação foi solicitada a pedido do ora recorrente, não se tendo o Supremo Tribunal de Justiça pronunciado sobre se deveria ou não, oficiosamente, proceder
à reapreciação.
Isto posto, passemos, pois, à análise de uma tal questão.
2. Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 240/97 (tirado por unanimidade e publicado na 2ª Série do Diário da República de 15 de Maio de
1997) decidiu que, por ofensa do nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, eram inconstitucionais 'as normas conjugadas dos artigos 2º, nº 4, do Código Penal e
666º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes de esta ter formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação de decisão proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de recurso'.
Porventura por razões de comodidade e de economia, transcrevem-se determinados passos argumentativos que a esse mesmo Acórdão foram carreados.
Assim, disse-se ali:-
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2. Como se sabe, os princípios da irretroactividade da lei penal e da retroactividade da lei in melius não podem, simplistamente, ser visualizados como o verso e reverso da mesma questão; e isso porque haverá que reconhecer que um e outro, geneticamente, têm diversas fontes: enquanto que o primeiro decorre do princípio nullum crimem sine lege e nulla poena sine lege - que, afinal, manifesta o princípio da legalidade (cfr. José de Sousa e Brito - A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, II vol., 236 e segs) -, o que implica que, para uma sua mera aplicação, bastaria que o arguido tivesse uma conduta que, então, já fosse considerada como integrante dos pressupostos da uma infracção, já o segundo, derivando embora do princípio da legalidade, entendido este como 'superiormente graduado na ordem axiológica constitucional' (para se utilizarem as palavras de Rui Pereira, ob. cit., 61), não deixa de derivar daqueloutros princípios constitucionais tais como os da igualdade e da necessidade das penas e medidas de segurança (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, 1981, 115, que refere que a retroactividade da lei penal mais favorável se justifica pela garantia dos cidadãos face a uma limitação do poder punitivo do Estado, o qual nunca poderá ser mais amplo do que aquele que estiver consagrado na lei aquando do momento da sua aplicação, no caso de esta o consagrar em menor medida; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 234 e 235, e ob. cit. na Revista O Direito, onde, expressamente, defende que, por razões de liberdade e de igualdade entre os membros da comunidade jurídica, deve ser aplicável a lei penal de conteúdo mais favorável, por isso que é a que menos comprime os direitos, liberdades e garantias, sendo, pois, a menos gravosa ou restritiva desses direitos).
Taipa de Carvalho, depois de assinalar (ob. cit.,42 e segs) que 'quer o princípio da culpa quer o princípio da irretroactividade penal desfavorável são garantias individuais ou, talvez mais correctamente, direitos fundamentais da pessoa humana', e que 'uma concepção humanista da política criminal verá, sempre e independentemente da sua fundamentação política, na proibição da retroactividade da lei fundamentadora ou agravante da pena um dos seus princípios essenciais', e depois de expor os processos históricos que levaram à consagração dos princípios da irrectroactividade da lei penal e da retroactividade da lei penal mais favorável, conclui que 'no actual momento, tanto a proibição da retroactividade in peius como a imposição da retroactividade in melius devem considerar-se como garantias ou mesmo direitos fundamentais constitucionalmente consagrados' (63 e segs.) e que 'o Estado-de-Direito Material, na sua função de protecção da pessoa humana, com a decorrente afirmação da liberdade como princípio geral e fundamental, não apenas proíbe a retroactividade das leis penais desfavoráveis, como também impõe a aplicação retroactiva das leis penais favoráveis', o que, segundo o Autor, vale por dizer que 'o princípio constitucional da liberdade, o «favor libertatis», é hoje a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a irretroactividade in peius como também a retroactividade in melius' (pág. 71) e que se deverá, 'e com legitimidade, afirmar que o princípio [geral da aplicação da lei penal no tempo] é o da aplicação da lei penal favorável'.
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E, seguidamente, fundamentava-se do modo seguinte e que levou ao julgamento de desconformidade com a Constituição:-
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De facto, seguindo-se a postura, apontada pela Constituição, de que as penas e as medidas de segurança deverão ser justificadas pelo princípio da necessidade, aferida pela medida da culpa (e não se entrando agora na dilucidação da questão de saber se a culpa há-de, desde logo, fornecer uma certa medida quadro da pena - cfr. José de Sousa e Brito, A medida da pena no novo Código Penal, número especial de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
580, e Figueiredo Dias, Direito Penal 2, 311 -, e qual a relevância da prevenção criminal nas suas dimensões de prevenção geral e especial tendo em conta a sua repercussão na presente problemática), seria injusta a aplicação de uma punição mais severa ao agente de uma conduta que, no momento da sua submissão a julgamento, razões de ordem político-criminal determinaram que deveria ser menos gravosamente punida uma conduta como aquela que aquele agente tinha adoptado.
Acresce ainda que se perspectiva como ofensiva da igualdade o tratamento diferenciado a que conduziria a tese da decisão ora sob censura, se se visualizar a situação de um agente que veio a prosseguir um comportamento ainda em face da lei antiga, mas que, por vicissitudes várias, o recurso perante o tribunal superior só foi conhecido quando já estava em vigor a lei nova de conteúdo mais favorável, e aqueloutra situação de diverso agente que, tendo também praticado factos no âmbito da lei antiga, viu o recurso ser apreciado pelo tribunal superior ainda no âmbito dessa mesma lei, e que, pela circunstância de da decisão deste último já não poder haver recurso, por a lei o não permitir, não pode beneficiar do regime mais favorável estabelecido pela lei nova, muito embora a decisão tomada pelo tribunal superior ainda não tenha transitado.
Assim sendo, e se se estiver, verdadeiramente, face a uma real sucessão de leis penais no tempo (como tudo parece apontar no presente caso), os princípios que acima se deixaram expostos hão-de redundar numa interpretação dos normativos ordinários perante a qual se deverá, tanto quanto possível, aplicar a lei penal favorável às condutas levadas a cabo no domínio da lei anterior, de conteúdo menos favorável ao arguido. E isto, como se torna claro, se nos postarmos perante situações em que a lei penal aplicável ao tempo do cometimento dos factos não seja perspectivável como integradora da previsão do nº 3 do artº
2º do Código Penal.
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Não se colocando no caso então em apreciação no aresto que abundantemente se tem vindo a citar uma situação em que tivesse já a decisão condenatória constituído caso julgado, não se deixou de referir se não desejava dizer que a postura tomada era transponível para uma tal situação, alertando-se, desde logo, que esta era 'possivelmente de mais difícil solução'.
E é este enfrentamento que se impõe ser agora efectuado.
2.1. Reafirmando-se a argumentação em que se ancorou o Acórdão nº
240/97, a questão que, claramente, se colocará, há-de ser a de saber se é compatível com o nº 4 do artigo 29º do Diploma Básico a ressalva que se encontra na parte final do nº 4 do artº 2º do Código Penal.
Para dar resposta positiva a essa questão mister é que - considerando que nos situamos no campo dos direitos, liberdades a garantias constitucionalmente consagrados e que, de harmonia com o nº 2 do artigo 18º da Lei Fundamental, a lei só os pode restringir nos casos nela expressamente previstos, 'devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' -, se aceite que o caso julgado se perspectiva como um daqueles interesses.
2.1.1. Como se sabe, a Constituição não consagra expressamente em nenhum dos seus preceitos que o caso julgado jurisdicional é intangível.
Significará isso, porém, a um tal princípio quis o Diploma Básico ser indiferente ou que - e é isso que ora releva - o não consagrou, ainda que de modo não explícito?
Sobre esta problemática nunca o Tribunal Constitucional se debruçou até ao momento.
Mas a Comissão Constitucional, no seu acórdão nº 87 (tirado por maioria e publicado no Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978), proferido no domínio da versão originária da Constituição, teve ocasião de discretear sobre uma tal matéria na vertente de 'garantia do caso julgado relativamente a leis gerais que, incidindo sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de sentença, vão determinar a sua alterabilidade'.
Nesse acórdão, aceitando-se embora que não se justificava qualquer dúvida àcerca da 'inconstitucionalidade de uma decisão política ou administrativa, até sob a forma de lei, que pusesse em causa uma sentença com trânsito em julgado' - pois que esse vício defluiría, desde logo, do artigo 210º e depois, além do mais, do artigo 114º, nº 1, ambos da Lei Fundamental -, e após se ter efectuado explanação, quer sobre possíveis argumentos estribados nos princípios e valores do Estado de direito democrático, no princípio da separação de poderes e da natureza soberana das sentenças judiciais e, por fim, no princípio da certeza a segurança dos direitos dos cidadãos e das demais entidades privadas ou públicas interessadas nas decisões dos tribunais, quer sobre também possíveis argumentos que vinham a ser aduzidos contra uma orientação estribada nos primeiros, foi dito:-
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9 - Pesando os argumentos num e noutro sentido, não parece fácil chegar a uma conclusão peremptória. Mas exactamente por isso e porque se assiste no século XX a fenómenos de acelerada mutação social, julga-se que, para além do disposto no artigo 210º da Constituição, não se encontra princípio constitucional que, só por si, impeça a lei geral (insista-se, a lei geral e não qualquer lei individual) de se reflectir sobre quaisquer situações e relações, mesmo que haja sentença com trânsito em julgado.
As interpretações e ilações à volta da separação dos poderes são ambivalentes. O seu exame prende-se com a definição rigorosa dos conceitos de função legislativa e função jurisdicional, tema que excede naturalmente o presente acórdão. De todo o modo, esta Comissão quer sublinhar a natureza soberana das sentenças, cuja eficácia se funda na Constituição e não na lei
(seja qual for a interpretação a dar ao artigo 208º).
Mais próximos da realidade são os argumentos respeitantes à segurança e à igualdade. Não deixa de impressionar a segurança inerente à estabilidade e imodificabilidade do caso julgado, a segurança inerente à garantia dada pelo Estado aos cidadãos de que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros
órgãos não irão diminuir a força obrigatória das decisões. Não obstante, a segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade e de justiça que fluem da própria vida e que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estar em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica.
O único ponto firme constitucional que pode supor-se existir diz respeito aos direitos, liberdades e garantias, sujeitos a um regime consolidada de tutela. Como os direitos, liberdades e garantias apenas podem ser restringidos nos casos previstos na Constituição e por lei geral e abstracta
(artigo 18º, nºs 2 e 3), não parece então que uma lei mais restritiva retroactiva possa pôr em causa sentença já transitada à sombra de lei anterior.
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Bem elucidativas de como o caso julgado material não pode ser um princípio só por si, sem limites, invocado em nome do Estado de direito, são, porém, as hipóteses referidas de revogação ou declaração de inconstitucionalidade (e, porventura, também de não ratificação de decreto-lei no caso de ter havido autorização legislativa ao Governo) de lei penal incriminadora e a hipótese de concessão de amnistia. E isso porque é um imperativo da justiça, que o Estado de Direito não pode esquecer, que leva a extinguir a pena quando a infracção deixou de ser punível ou se considera que nunca foi punível por lei válida ao tempo da conduta.
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2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como algo que tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um valor protegido pela mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos postulados pelo Estado de direito democrático - consagrado, quer no preâmbulo do Diploma Básico, quer no seu artigo 2º - e, também, num princípio de separação de poderes - consagrado igualmente naquele artigo e no nº 1 do artigo 111º - e do nº 2 artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias), um e outro do actual texto constitucional.
E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente consagrado, do caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental considere inultrapassável.
Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3 do artigo 282º da Constituição.
Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam 'ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo mais favorável ao arguido'.
Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º,
111º, nº 1, e 205º, nº 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado. Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável.
2.1.3. Aceite a consagração constitucional do valor ou interesse consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar a regra constante da parte final do nº 4 do artigo 29º como um garantia constitucional fundamental, a questão que se coloca será a saber se, atentos os números 2 e 3 do artigo 18º, a restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela garantia (cfr., sobre os fundamentos e consequências da aplicação da lei penal no tempo, por entre outros e para além dos autores citados no texto do Acórdão nº 240/97, acima parcialmente transcrito, António Rodrigues Maximiano, Aplicação da Lei Penal no Tempo e caso julgado, Revista do Ministério Público, Ano 4º, Vol. 13, 11 e segs., Rui Pereira, obra ali citada, 63, nota 22, José Lobo Moutinho, A aplicação da lei penal no tempo segundo o Direito português, in Direito e Justiça, VIII, tomo 2,
104, 108 e 110, Maria Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Geral, 130 e segs., e a posição, quiçá dubitativa, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 800, 1041 e 1042.
Sublinhe-se que, na impostação deste problema, não serão colocadas as situações conexionadas com a aplicação da lei penal posterior mais favorável quando desta resulte uma mudança «qualitativa» da pena, mas tão só quando resulte uma mera mudança «quantitativa», como se trata no vertente caso.
E, outrossim, não se debruçará este aresto sobre os casos em que da lei superveniente possa resultar alteração dos pressupostos, quer do procedimento, quer da punição.
Pois bem.
Opina-se por que o «núcleo duro» do nº 4 do artigo 29º da Constituição há-de, necessariamente, abarcar a aplicação ao arguido da lei penal de conteúdo que lhe for mais favorável no momento em que é submetido a julgamento, identicamente abarcando as situações de descriminalização das condutas, conquanto, neste ponto, se tenha de entrar em jogo com outras normas ou princípios constitucionais, como, verbi gratia, o princípio da última ratio da lei penal e da dignidade da pessoa humana - que fundamenta a República Portuguesa -, de onde é de extrair que atentaria contra ela uma condenação pela prática de acções, omissivas ou comissivas, que o legislador, como emanação do sentir colectivo, considerou posteriormente como não devendo sofrer uma reprovação grave de tal modo grave justificativa da aplicação de sanção penal.
Neste contexto, não se vislumbra que a norma em apreciação vá
«tocar», diminuindo, a extensão e o alcance do conteúdo essencial da garantia postulada pela parte final do nº 4 do artigo 29º.
E, sendo o respeito pelo caso julgado um valor constitucional, a restrição que deflui da norma sub iudicio não deixa de poder ser considerada como uma situação prevista na Lei Fundamental.
Ponto é saber se essa restrição, atentos os valores em jogo, se mostra necessária e proporcionada.
A esta questão dá o Tribunal resposta afirmativa.
Efectivamente, a superveniência de uma lei penal cujo conteúdo pudesse, num juízo prospectivo, apontar para a possibilidade de, em concreto, ser mais favorável ao arguido, não obstante este já ter sido condenado por decisão judicial transitada, iria criar uma enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais.
Não se pode passar em claro que a aplicação do regime penal mais favorável tem de ser apreciada em concreto, o que implicaria a feitura de um verdadeiro novo julgamento, a fim de serem pesadas todas as circunstâncias fácticas rodeadoras do caso e a própria personalidade do agente.
Assim, não colhe razão um argumento fundado em que, também no caso de aplicação de perdões, parciais ou não, de penas, isso também vai desencadear um acréscimo de trabalho aos tribunais. É que, a aplicação de perdões (ainda que implicando, por vezes, a necessidade de reformulação de cúmulos jurídicos) é, passe a expressão, «quase tabelar», estribando-se em quase meras operações matemáticas.
Não está em causa, na aplicação de regimes penais supervenientes potenciadores de, em concreto, serem mais favoráveis ao arguido, tão somente um acréscimo de trabalho (questão que poderia não ter o relevo suficiente para se aferir da necessidade ou adequada proporcionalidade da restrição em causa). Está, isso sim, toda uma actividade dos tribunais consubstanciada na feitura de novos julgamentos, com todas as consequências implicadas.
E nem se diga que, estando assente no anterior julgamento a matéria de facto, bastaria aos juízes que a ele assistiram subsumi-la ao novo regime, impondo a sanção penal que reconhecessem como sendo, no novo regime, concretamente mais favorável.
Na verdade, é perfeitamente hipotisável que esses juízes já não sirvam no tribunal, já não pertençam à magistratura, já não façam parte da ordem dos tribunais judiciais ou já não pertençam à composição (cfr. artº 2º da Lei nº
21/85, de 30 de Julho) a que pertenciam aquando do primitivo julgamento. E daí estarem impossibilitados de efectuar as acima citadas subsunção e imposição de pena.
De outro lado, uma solução assente na realização de um novo julgamento, ainda que com outros juízes, é facilmente descortinável como algo revestido de acentuadíssimas dificuldades (pense-se, por exemplo, nas dificuldades de obtenção de prova e de elementos para a adequação da nova pena a impor às situações económica, social, cultural e psicológica desfrutadas pelo arguido na ocasião em que se impõe o novo regime).
A perturbação advinda do não respeito do caso julgado ligadas a motivos de difícil praticabilidade perspectiva-se, pois, como muito extensa e significativa, não podendo, por isso, reconduzir-se a razões de mero acréscimo de trabalho para os tribunais.
Isso conduz a que a restrição ínsita no normativo em análise se não poste como desnecessária, irrazoável ou injustificada.
2.1.4. Não perfilha o Tribunal o entendimento de que se afigura procedente um argumento estribado em que também as leis de amnistia própria ou de despenalização (cfr. nº 2 do artº 2º do Código Penal) vão «tocar» nos casos julgados criminais.
De facto, no primeiro caso, os factos praticados pelo arguido deixaram, por razões de índole política (cfr., sobre as razões da amnistia, os Acórdãos deste Tribunal nº 301/97 e 510/98 in Diário da República, 2ª Série, de
18 de Junho de 1997 e 20 de Outubro de 1998, respectivamente), de ter relevância jurídico-criminal, tudo se passando, embora ficcionadamente, como se os mesmos nunca tivessem ocorrido; e, no segundo, é a própria consciência social, reflectida pela actuação do legislador, que deixa de considerar como reprovável
- e, por isso, não exigindo sancionamento penal - determinado comportamento. Por isso, em ambas as situações não se reclama punição, seja ela da sorte ou da gravidade que for.
É, pois, diferente o caso de surgimento posterior de uma lei cujo conteúdo, conquanto mais favorável, não deixa de considerar criminosa e, consequentemente, sujeita a punição penal, determinada conduta. A razão de ser da existência daquela punição continua de pé, pelo que se não pode aqui falar em que o respeito do caso julgado iria, gravemente, ferir a consciência social, causando-lhe acentuado dano.
2.1.5. O que se veio de expor no antecedente ponto 2.1.3. não deixa, de certa sorte, de ser aplicável, com os devidas adaptações, é certo, a uma argumentação que esgrima com facto de a restrição de que nos ocupamos ir brigar com o denominado princípio «da máxima restrição da pena».
De facto, se constitui valor ou interesse constitucional o do respeito pelo caso julgado como regra, aqueloutro princípios «da máxima restrição da pena» haverá de ser com ele perspectivados em termos de se alcançar uma concordância prática, não olvidando o que, globalmente a respeito da matéria, se refere no próprio texto da Constituição.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 17 de Novembro de 1998 Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por considerar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 4º do Código Penal, na parte em que exceptua os casos de condenação por sentença transitada em julgada da aplicação retroactiva do regime penal que se mostrar mais favorável ao agente, por violação do nº 4 do artigo 29º da Constituição.
1. O nº 4 do artigo 29º da Constituição: a letra e a história são inconclusivas.
O texto do nº 4 do artigo 29º da Constituição resulta da versão originária da Constituição, tendo sofrido algumas modificações na revisão de
1982. Na versão originária tinha o seguinte teor: 'Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança privativa da liberdade mais grave do que as previstas no momento da conduta, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'. O texto aprovado, por unanimidade e sem discussão, na sessão de 27 de Agosto de 1975 (com o singular 'a prevista' : Diário da Assembleia Constituinte, p.1020) resultava da junção da proposta do PPD
(correspondente à primeira frase) com a do PS (correspondente à segunda frase). Ao tempo estava em vigor o nº 2 do artigo 6º do Código Penal de 1886
(introduzido pela Nova Reforma Penal de 1884) segundo o qual: 'Quando a pena estabelecida na lei vigente ao tempo em que é praticado a infracção for diversa das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicada a pena mais leve ao infractor, que ainda não estiver condenado por sentença passada em julgado'. Embora esta última restrição introduzida no debate parlamentar, contra a proposta do Governo e contra a do anterior projecto do Levy Maria Jordão, tivesse sido vivamente criticada na discussão parlamentar da Nova Reforma Penal
(cfr. Henriques da Silva, Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, Coimbra, 1905, pp. 138 ss.), e igualmente na doutrina portuguesa que se lhe seguiu (Henriques da Silva, op.cit., pp.149 ss., Caeiro da Matta, Direito Criminal Português, II, Coimbra, 1911, p.50) e em parte da doutrina recente
(Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal de 1940-1941, ed. Carmindo Ferreira, Henrique Lacerda, 2ª ed., Lisboa, 1945, p.113; a mesma opinião manteve-se no ensino: cfr., no mesmo sentido, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1981, p.119), a verdade é que Eduardo Correia tinha proposto na Comissão revisora do Código Penal a reprodução da doutrina do nº 2 do artigo 6º, em termos substancialmente idênticos aos do nº 4 do artigo 2º do actual Código, e a proposta fora aprovada por unanimidade (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1965, I, p. 64). Neste contexto nada indica que os constituintes se tivessem representado a polémica antiga, nem que tenham querido inconstitucionalizar a disposição citada do direito em vigor, na parte em que exceptuou as condenações transitadas em julgado, ou, em alternativa, a do nº 1 do mesmo artigo, que não acolhia, explicitamente, tal excepção, antes ordenava a extinção da pena, tenha ou não começado o seu cumprimento, se a lei nova eliminar a infracção correspondente. Na verdade, se alguma indicação há, é no sentido contrário, uma vez que um dos deputados que votaram o artigo foi Costa Andrade, que é um dos defensores da solução legal então e hoje em vigor. Há que entender que a Constituição se limitou a consagrar o princípio da retroactividade da lei mais favorável no caso central da sua aplicação na sentença condenatória, deixando para a jurisprudência constitucional e para a legislação ordinária o desenvolvimento pormenorizado do princípio, incluindo a determinação exacta do seu alcance e a resolução dos conflitos com outros princípios constitucionais, como seja o do valor do caso julgado. Não é, portanto, legítimo argumentar a partir do teor literal para limitar a retroactividade da lex mitior à situação do arguido, ou para impor uma solução uniforme aos casos de eliminação da punibilidade e aos de diminuição da mesma.
2. A letra e a história do nº 3 do artigo 282º são igualmente inconclusivas.
Do mesmo modo, não é conclusivo o teor literal do nº 3 artigo 282º da Constituição, que confere ao Tribunal Constitucional a faculdade de decidir que não ficam ressalvados os casos julgados, aplicando-se retroactivamente também a eles a declaração de inconstitucionalidade de uma norma e repristinando-se a norma anterior pela mesma revogada, quando a norma declarada inconstitucional respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido. Não se pode deduzir do uso neste preceito da palavra 'arguido', num sentido que abrange os condenados por sentença transitada em julgado, que o sentido da mesma palavra no nº 4 do artigo 29º abrange os mesmos condenados. Desde logo, esse uso, mesmo que possa historicamente ter sido influenciado pela redacção do artigo 29º, é manifestamente impróprio nos casos do nº 3 do artigo 282º, em que nunca se trata de um arguido, mas sim de um infractor, pelo que se a palavra tivesse o mesmo sentido no nº 4 do artigo 29º deixava de abranger os casos centrais visados por este preceito, que são os dos arguidos propriamente ditos. Mas também nada se pode deduzir em sentido contrário, não obstante as afirmações do deputado Costa Andrade antes da votação unânime do artigo em plenário, as quais não foram contraditadas nem apoiadas no debate. Disse Costa Andrade :
' ... não podemos deixar de saudar o conteúdo do nº 3, porque o achamos prudente e achamos que ele tem um conteúdo útil na sistemática do Direito constitucional futuro, no que concerne ao caso julgado e à matéria do Direito penal. A partir de agora fica expresso que a ressalva dos casos julgados em matéria penal não funcionará quando ela possa ser aplicada em detrimento do arguido ou melhor do delinquente, porque em caso julgado já se pode falar em delinquente. Este preceito, além da vantagem intrínseca própria desta norma, tem uma utilidade importante do ponto de vista da sistemática da actual Constituição da República que, na parte referente aos direitos e deveres fundamentais, diz que as normas penais de conteúdo mais favorável se aplicam retroactivamente e é duvidoso se esse preceito constitucional é compatível com o caso julgado. Até aqui entendia-se que as normas de conteúdo mais favorável ao arguido - normas estas em matéria de punição e não em matéria de incriminação - se aplicavam retroactivamente, salvo em relação a caso julgado. Hoje a Constituição não diz nada sobre esse ponto mas di-lo em relação a este e parece-nos que se pode entender a contrario que, em matéria de normas que atenuam as penas, é possível continuar a ter como constitucional nesta matéria a ideia de ressalva do caso julgado. Se uma norma que é ferida de inconstitucionalidade, em concreto, por força deste nº 3, pode vir a servir de suporte mais favorável ao arguido, por maioria de razão tem que se entender que uma norma não ferida de inconstitucionalidade pode servir de suporte ao caso julgado, não obstante norma que venha a atenuar a punição. Parece-nos que é de aplaudir este preceito que tem um conteúdo útil sistemático. Contudo, parece-nos que a referência ao direito de mera ordenação social - salvo melhor opinião - talvez se possa considerar exagerada. Ressalvar o caso julgado em matéria de uma norma inconstitucional parece-nos que não se justifica aqui como se justifica em direito penal e em direito disciplinar. O direito penal contende com a liberdade fundamental das pessoas, o direito disciplinar contende com a honoridade profissional dos trabalhadores da função pública e a ordenação social contende um pouco com o património, através de multas, coimas, etc. Enfim, não será da nossa parte que se levantarão grandes objecções a este artigo, mas não podíamos deixar de formular esta reserva, para que conste.'
(Diário da Assembleia da República, I Série, 28.7.1982, pp.5379-5380).
Desta passagem resulta com suficiente clareza que Costa Andrade entendia que a solução dualista (sempre retroactiva quanto à descriminalização e respeitadora do julgado quanto à atenuação) do regime legal em vigor era conforme à Constituição. Mas não se entende o argumento sistemático que pretende construir para demonstrar isso mesmo. Com efeito, da norma que manda respeitar o caso julgado em que foi aplicada norma inconstitucional mais favorável ao delinquente do que a norma posteriormente repristinada, que se deduz a contrario do nº 3 do artigo 282º, não se deduz por maioria de razão uma norma que mande respeitar o caso julgado em que foi aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade menos favorável ao delinquente do que norma atenuante posterior, apenas se deduz por maioria de razão que deve respeitar-se o julgado em que foi aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade mais favorável do que a norma posterior. Ora esta última conclusão sempre resulta da proibição geral de retroactividade da lei penal (que não seja mais favorável).
O que se poderá concluir do nº 3 do artigo 282º é que a Constituição admite que possa haver alguns casos em que 'a regra' da ressalva dos casos julgados ainda prevalece sobre o princípio da aplicação da lei mais favorável, deixando, porém, ao Tribunal Constitucional a definição desses casos. A Constituição não proíbe expressamente o Tribunal Constitucional de seguir o critério dualista do artigo 2º do Código Penal, repristinando quando o efeito da repristinação for a extinção da pena, e respeitando o julgado quando esse efeito for apenas a atenuação da pena, como não o proíbe de seguir o critério defendido por Costa Andrade, de repristinar contra o julgado as mesmas normas penais mas nunca as de mera ordenação social. Mas se, na falta da proibição expressa destes critérios, a Constituição impõe estes ou quaisquer critérios, é algo que não pode decidir-se em função da letra.
Há que concluir que a Constituição, não fornecendo nem no nº 4 do artigo 29º nem no nº 3 do artigo 282º critério explícito de solução do conflito entre os princípios da aplicação da lei mais favorável e do respeito pelo caso julgado, deixa à jurisprudência constitucional a tarefa de determinar o que é critério imposto pela Constituição e o que é deixado ao arbítrio do legislador sempre limitado pelo princípio da igualdade.
3. A questão da interpretação extensiva do nº 4 do artigo 29º.
O nº 4 do artigo 29º contem um comando de aplicação retroactiva ao arguido da lei penal mais favorável. Trata-se de saber se a razão da norma também vale para a pessoa que deixou de ser arguida por ter sido condenada por sentença transitada em julgado. Se a resposta for afirmativa há que fazer interpretação extensiva desse ponto do nº 4.
Como a opinião maioritária reconhece, a razão do comando da retroactividade da lei penal mais favorável é o princípio da necessidade ou da máxima restrição possível das sanções penais, que se deduz do artigo 18º da Constituição, uma vez que as sanções penais são as mais graves restrições dos direitos fundamentais que a Constituição admite que o Estado possa impor coercivamente. No Estado de direito material tais restrições só são admissíveis quando necessárias ou indispensáveis para defender a eficácia das normas que protegem os direitos fundamentais e outros interesses básicos da vida social, segundo a escala de valores da Constituição, das mais graves agressões. Ora quando a lei nova considera que certa sanção penal ou certa medida de sanção penal não é para o futuro necessária como prevenção de factos futuros, há que entender que tal sanção deixou de considerar-se necessária para factos da mesma descrição, independentemente do momento da sua prática. Só não será assim se houver circunstâncias temporalmente delimitadas que sejam razão do tratamento desigual. Tal será o caso de leis penais temporárias, na medida em que forem constitucionalmente admissíveis. A questão que se põe é a de saber se o trânsito em julgado da sentença condenatória é uma dessas circunstâncias.
4. Não há diferente fundamento para a retroactividade na discriminalização e na atenuação de pena. Ora a opinião maioritária admitiu que o trânsito em julgado nenhuma diferença faz quanto à necessidade da sanção nos casos de descriminalização das condutas.
É certo que a mesma opinião entende entrarem em jogo nesses casos 'outras normas ou princípios constitucionais, como verbi gratia, princípio da ultima ratio da lei penal e da dignidade de pessoa humana'. Só que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma das premissas de que se deduz o princípio da necessidade das penas, pois ofenderia essa dignidade sacrificar a pessoa do delinquente aos interesses da prevenção geral, salvo se isso for não só justo como necessário. E o princípio da ultima ratio da lei penal não é mais do que uma das aplicações do princípio da necessidade das penas: precisamente porque as sanções repressivas mais graves, as que maiores sacrifícios de direitos implicam, só podem ser usadas como 'último argumento' para referenciar a conduta, quando nenhuma outra sanção se considera suficiente para evitar a prática de crimes. É certo que seria incompatível com a dignidade da pessoa humana e com a natureza de ultima ratio da política preventiva do Estado o manter uma pena ou parte dela que deixou de se considerar necessária por o facto que é pressuposto dela deixar de ser crime. Só que o princípio da necessidade da pena não vale só para afastar a pena que se torna absolutamente desnecessária - cuja existência se torna desnecessária -, vale igualmente para afastar a pena que se torna relativamente desnecessária - cuja medida ou espécie se torna desnecessária. Não entram em jogo outras normas ou princípio constitucionais, mas exactamente os mesmos. O princípio da necessidade das penas é uma das aplicações do princípio da necessidade das restrições legais dos direitos fundamentais (artº 18º, nº 2 da Constituição) e implica a não aplicação para o futuro de penas tornadas desnecessárias, seja de todo, seja em parte ou em certa medida ou espécie mais grave. Por outras palavras: o fundamento constitucional da retroactividade da lei penal mais favorável é o princípio da necessidade das penas, e esse fundamento vale igualmente para as hipóteses de descriminalização e para as de atenuação da pena. Se ele deve prevalecer sobre o caso julgado nas primeiras hipóteses também deverá prevalecer nas segundas, se não houver razões em contrário específicas destas últimas que mereçam relevância constitucional. A argumentação do Acórdão, afastada a diferença de fundamento, reduz-se assim ao argumento da 'enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais'.
5. A não-atenuação não é menos grave que a não-descriminalização. A esta redução não poderá opor-se qualquer argumento, sugerido pela parte final do Acórdão, e tirado da maior consciência social da injustiça da não retroactividade no caso da descriminalização, consciência social que seria menos gravemente ferida pela não-retroactividade de mera atenuação da pena. A consciência social que aqui pode relevar é a consciência social bem formada pelas valorações constitucionais. Não é admissível invocar contra as valorações da Constituição as valorações de uma hipotética maioria social. Mas então não há um argumento autónomo tirado da consciência social. Se bem o entendo, o argumento do Acórdão é o seguinte: tanto no caso da atenuação de pena como no da descriminalização há um conflito entre a justiça - intuída pela consciência social -, que manda aplicar retroactivamente a lex mitior, e a segurança, que manda respeitar o julgado, mas no caso de atenuação o sacrifício da justiça não
é grave, porque continua a haver razão para punir, ao passo que no da descriminalização é o contrário que se passa. Assim entendido, o argumento mantem-se, mesmo prescindindo do argumento anterior: a diferença entre o regime da descriminalização e o da atenuação legal explicar-se-ia, não já por uma diferença qualitativa de fundamentos, mas por uma diferença quantitativa, que tornaria um dos princípios constitucionais em conflito, o da retroactividade da lex mitior, menos ponderoso na hipótese de atenuação, pelo que cederia só nessa hipótese perante o princípio do respeito pelo caso julgado.
Penso, porém, que a intuição da consciência social vai em sentido contrário. Tanto se faria injustiça a um condenado a 3 anos de prisão, dos quais já cumpriu, se não fosse extinta a pena, em caso de descriminalização da conduta, como se faria injustiça a um condenado a 5 anos de cadeia, dos quais já cumpriu 3, se não fosse atenuada em 2 anos a sua pena, por força de uma atenuação legal. Em ambos os casos haveria 2 anos de prisão desnecessária a cumprir.
6. A haver violação da norma do nº 4 do artigo 29º a violação do princípio da igualdade não tem autonomia.
Mais clara ainda é a consciência da desigualdade de tratamento no confronto entre um arguido e um condenado pelas mesmas ofensas - ou por ofensas idênticas - cometidas na mesma data. Se sobrevier uma atenuação legal, o arguido beneficia de uma diferença de tempo de duração do processo que é inteiramente estranha a todas as razões da punição que possam relevar no caso. Mesmo quando não há identidade de data e de ofensa, sempre terá que considerar-se injusto que a duração do processo influa na medida da pena, em benefício dos criminosos que conseguiram protelar a formação de caso julgado.
O argumento da identidade de razão tem como complemento necessário o da violação do principío da igualdade, quer no diferente tratamento dado às hipóteses de lex mitior por descriminalização e às de lex mitior por atenuação, quer no diferente tratamento dado aos agentes do mesmo crime consoante sejam arguidos ou condenados. Se não estivesse em causa a violação de uma mesma norma constitucional, o nº 4 do artigo 29º, haveria que invocar a violação do artigo
13º da Constituição.
É também claro que o argumento da violação do princípio da igualdade, tal como o da identidade de razão, seria afastado pela demonstração de que o caso julgado é uma razão suficiente de tratamento desigual dos duplamente discriminados, isto é, dos condenados (já não arguidos) em pena entretanto abstractamente eliminada e substituída por outra mais leve (mas não extinta).
7. Não está em questão o respeito pelo caso julgado. Sua relevância na problemática da «revisão» da sentença.
Antes de mais, uma decisão judicial não pode obrigar para além do que está logicamente incluído no seu conteúdo. A decisão transitada em julgado, como qualquer outra, tem uma premissa de direito e outra de facto. Se qualquer delas é alterada, a conclusão deixa de ter fundamento, pelo que toda a decisão deixa de ser aplicável ao caso. Não se diga que a constatação de que não há que respeitar o julgado, porque o julgado deixou de ser aplicável no caso, terá que caber a um tribunal, sob pena de ofender a separação dos poderes e a supremacia das decisões judiciais. Tal não impede a logicamente necessária cessação de obrigatoriedade do julgado que fundamenta a sua revisibilidade. Neste sentido, há que desfazer o 'fetichismo do caso julgado' (como fazem, nomeadamente, Jimenez de Asua, Tratado de Derecho Penal, II, 4ª ed., Buenos Aires, 1964, p.674 e Cavaleiro de Ferreira, 'Os Pressupostos Processuais', Obra Dispersa, I, Lisboa, 1996, p.346). Ponto é que a lei mais favorável se queira efectivamente aplicar também retroactivamente aos casos dessa espécie, mas isso há que resolver por interpretação, sem invocar o argumento 'fetichista' do julgado. Colocada a questão nestes termos, é claro que o princípio de necessidade da pena, que é essencial à fundamentação da pena no Estado de direito, sempre implicará que a lei nova mais favorável se aplique retroactivamente, seja em casos de descriminalização, seja em casos de atenuação da pena. O argumento ou argumentos relativos à 'perturbação na ordem de tribunais judiciais' são de ordem processual e têm a ver com a problemática de uma reapreciação do caso depois de findo o processo e transitada a sentença. Não se trata de uma verdadeira revisão de sentença porque esta não tem que ser corrigida. Há apenas, eventualmente, que aplicar a lei nova no caso. Mas para a realização dessa tarefa o trânsito em julgado faz diferença: não se trata de aplicar a lei nova a um arguido que se presume inocente; trata-se de a aplicar a um condenado cuja culpa não é questionada, apenas se questionando, no todo ou em parte, a punibilidade.
O caso julgado, portanto, em face da lei mais favorável, apenas pode pretender ser respeitado quanto à decisão sobre a culpa. O Código de Processo Penal prevê que modificações posteriores de punibilidade devem ser aplicadas pelo juiz da execução das penas (artigo 474º). Isso em nada afecta o princípio do respeito pelo caso julgado. O princípio da separação dos poderes (artigos 2º e 111º, nº 1 da Constituição) e da supremacia das decisões judiciais (artigo
205º, nº 2 da Constituição) e da reserva de função juridicional em tribunais
(artigo 202º, nº 1 da Constituição) impõem certamente que a constatação da inoponibilidade parcial do julgado e a aplicação da nova lei incumbam ao tribunal competente, mas não mais.
Nesta perspectiva, as dificuldades práticas invocadas pelo acórdão existem realmente e não respeitam, em primeira linha, ao acréscimo de trabalho dos tribunais judiciais, mas à difícil justiça de aplicar a lei penal nova a um caso concreto sem novo julgamento sobre a culpa.
8. O direito comparado revela que a retroactividade da lex mitior não levanta dificuldades insuperáveis nem impede a reforma do direito penal. Assim também há que explicar as grandes divergências que o direito comparado revela na matéria (cfr. o panorama desactualizado mas esclarecedor de Jimenez de Asua, ob.cit, II, pp.674-680). No direito francês e no direito alemão - e direitos penais por eles inspirados - recusa-se a retroactividade da lei mais favorável depois do trânsito em julgado, mesmo nos casos de descriminalização. Mas reclama-se - especialmente na França (cfr. também Marc Puech, Les grands arrêts de la juriprudence criminelle, Paris, I, 1976, p.28) e na Suiça (cfr. Paul Logoz, Commentaire du Code Pénal Suisse. Partie Générale, 2ª ed. , Neuchâtel, 1976, p.35) - a correcção das desigualdades através de leis transitórias retroactivas, mesmo quanto aos casos julgados, e através do uso de indultos. No direito italiano adopta-se uma solução dualista idêntica à do artigo 2º do Código português, mas as reformas legislativas foram acompanhadas de disposições transitórias e Carrara considerava a correcção por indultos das desigualdades subsistentes com um 'dever de justiça' (apud Jimenez de Asua, ibidem). No direito espanhol desde 1870 (cfr.o artigo 2º, nº 2 do Código de
1995) e na generalidade dos países da América Latina, incluindo o Brasil (cfr. o artigo 2º, § único, do Código Penal em vigor), aplica-se retroactivamente a lex mitior, sem distinção de efeitos, aos casos julgados, sem prejuízo de leis transitórias (assim o Código Penal espanhol de 1995 contem a final várias
'disposições transitórias', segundo a quinta das quais, tratando-se de sentenças transitadas e em que o condenado está cumprindo efectivamente a pena, se aplica
'a disposição mais favorável considerada taxativamente e não pelo exercício do arbítrio judicial' e 'nas formas privativas de liberdade não se considerará mais favorável este Código quando a duração da pena anterior aplicada ao facto com as suas circunstâncias seja também aplicável segundo o novo Código').
Uma apreciação do direito comparado não pode deixar de reconhecer que o apelo a indultos como exigência da justiça não pode deixar de considerar-se o reconhecimento da insuficiência da solução legal ou interpretativa adoptada. Deste ponto de vista, a solução espanhola é a mais coerente.
A extensão temporal e especial da experiência espanhola e latino-americana revelam, porém, que as preocupações de opinião maioritária com as dificuldades práticas de aplicação da lex mitior são infundadas, derivam apenas da falta de experiência. Os juízes espanhóis e latino-americanos têm aplicado a lex mitior nem sempre ajudados por leis transitórias. A solução deixou de ser questionada onde foi experimentada e não tem impedido as iniciativas de reforma legislativa.
Temos que a falta de experiência das dificuldades efectivamente ligadas a uma solução justa não deve servir de pretexto para a manutenção da injustiça.
9. O quadro geral legal de aplicação retroactiva aos casos julgados da lei penal mais favorável
Para resolver as injustiças ligadas à não aplicação da lei penal mais favorável não basta uma interpretação extensiva do comando de retroactividade, apesar do caso julgado, da descriminalização, constante do nº 2 do artigo 2º do Código Penal, como fez, com o meu apoio, o (inédito) acórdão nº
194/97 (que equipara à lei nova descriminalizadora a que produz efeitos substancialmente análogos), nem ressalvar, como faz o presente Acórdão, as situações em que a lei mais favorável implica uma mudança qualitativa da pena, ou uma alteração dos pressupostos, quer do procedimento, quer da punição. Em todas estas hipóteses é mais fácil a equiparação com as do nº 2 do artigo 2º.
Não sendo tão fácil a equiparação, não é menos fundada a analogia, como se viu, nos casos de uma atenuação de pena da mesma espécie, que são os casos praticamente mais importantes, porque a prisão e a multa são as penas mais importantes do sistema penal, variando a prisão entre um mês e 20 anos e as multas do Código Penal entre 10 dias a 200$00 e 100 dias a 100.000$00 (artigo
234º, nº 1 conjugado com o artigo 204º, nº 1, por exemplo). Pode haver muitos anos de prisão e muitos milhares de contos de multa a executar desnecessariamente.
Acresce que a opinião maioritária não dá o devido relevo ao quadro legal de aplicação da lex mitior aos casos julgados, enunciando dificuldades que só existiriam se a aplicação da lei nova implicasse a total revogação do caso julgado e equivalesse na prática à anulação do processado a partir do encerramento da discussão. O julgado mantem-se quanto à culpa e apenas tem que ser revisto quanto à punibilidade (supra nº 7).
Quando os problemas de determinação da lei mais favorável e outros relacionados com a reapreciação do caso em vista da nova lei não estiverem resolvidos por disposição transitória, terá o tribunal competente para decidir as questões relativas à extinção (total ou parcial) da responsabilidade (cfr. os artigos 474º e 470º do Código de Processo Penal) que aplicar a lei nova aos factos dados como provados na sentença transitada em julgado, na medida e só na medida em que estes permitirem a subsunção na lei nova.
Assim muitas vezes bastará uma simples operação aritmética. Sem desconhecer que a função de determinar a medida judicial da pena nunca compete ao Tribunal Constitucional, e apenas para dar um exemplo, direi que em minha opinião num caso como o presente basta a aritmética. Estando o juiz da execução obrigado a respeitar os critérios de facto da medida judicial da pena fixada no caso julgado, é relevante que a pena tenha sido fixada em quatro anos e seis meses de prisão, que correspondem a 3,5/19 de uma medida legal de variação possível da pena de 19 anos, entre 1 ano e 20 anos, correspondente à medida legal possível da pena do concurso (artigo 78º, nº 2 do Código Penal de 1982) de um crime continuado de furto qualificado (artigo 297º, nº 1, alínea a) e 30º, nº
2) e de um crime continuado de burla (artigos 313º e 314º, nº 1, alínea c) e 30º nº 2). O respeito pela apreciação passada em julgado dos factores de medida judicial da pena conduziria na hipótese a uma pena de 4 anos e 7 dias de prisão, que correspondem a 3,5/19 de uma medida legal de variação possível de pena de 14 anos, entre 2 e 16 anos, correspondente à medida legal possível da pena do concurso de um crime continuado de furto qualificado (os pressupostos de facto do nº 2, alínea a) do artigo 204º da revisão de 1995 correspondem à alínea a) do nº 1 do artigo 297º) de burla qualificada (artigo 218º, nº 2, alínea a), cujos pressupostos de facto correspondem aos dos artigos 313º e 314º, nº 1) do Código revisto de 1995).
Não é possível, nem necessário, resolver aqui todos os problemas que se podem levantar. Mas note-se que muitas das dificuldades evocadas no Acórdão também podem surgir, em princípio, na situação de descriminalização de um crime, quando está em causa um concurso de crimes e o outro ou outros crimes não foram descriminalizados. Também aí há que determinar a pena mais favorável em concreto. E nesta hipótese tem a opinião maioritária que admitir que o tribunal competente pode resolver as dificuldades. José de Sousa e Brito
Voto de vencida Votei vencida porque considero materialmente inconstitucional a norma contida no nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que impede a aplicação da lei penal mais favorável se tiver transitado em julgado a sentença condenatória, por violação dos princípios da necessidade da pena (nº 2 do artigo 18º, da Constituição), da aplicação da lei penal mais favorável (nº 4 do artigo 29º) e da igualdade (artigo 13º), pelas seguintes razões:
1ª) O problema de constitucionalidade suscitado reside em saber se é ou não compatível com a Lei Fundamental a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal de
1982, na parte em que determina a não aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao agente, 'se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado'.
É nos seus artigos 1º e 2º que o Código Penal estabelece as regras relativas à aplicação no tempo das normas penais. A par do princípio 'tempus regit actum', consagrado no nº 1 do artigo 2º (cfr. a primeira parte do nº 4 do art. 29º da Constituição), cuja dimensão mais importante se concretiza na irretroactividade da lei penal incriminadora (nº 1 do artigo 1º do Código Penal e nº 3 do artigo 29º da Constituição), prescreve este diploma um outro princípio, complementar do anterior, nos números 2 e 4 do seu artigo 2º: o da retroactividade da lei mais favorável.
Distingue o Código Penal, quanto a este último ponto, duas hipóteses: a de o facto, punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixar de o ser, porque a nova lei o eliminou do número das infracções
(nº 2 do artigo 2º); e a de 'as disposições penais vigentes no momento da prática do facto' serem 'diferentes das estabelecidas em leis posteriores' (nº 4 do mesmo artigo 2º). Incluem-se, assim, na primeira as situações em que é eliminada a punibilidade de um facto concreto, independentemente da via técnica através da qual se alcançou tal resultado (eliminação da norma incriminadora, alteração da descrição do facto típico, aditamento de uma nova causa de justificação ou de exculpação, ou alargamento do âmbito de aplicação das já existentes...). Diferentemente, na segunda contemplam-se os casos em que o facto, que era punível com base na lei antiga, continua a ser punível à luz da lei nova, mas agora com diferente regime penal (é alterada a pena que concretamente deve ser aplicada, são alteradas as condições da suspensão da execução da pena, os casos ou os prazos em que pode ser concedida a liberdade condicional, por exemplo).
A esta distinção vem a corresponder uma diferente estatuição. Assim, por força do nº 2 do artigo 2º, a aplicação da lei mais favorável, que elimina a incriminabilidade do facto concreto praticado, acarreta uma não punição do agente, e, em consequência, a cessação da execução da pena e dos efeitos penais decorrentes de uma eventual condenação, ainda que transitada em julgado. Ao invés, a aplicação da lei nova mais favorável, quando não afasta a incriminabilidade do facto, está legalmente condicionada à não formação anterior de caso julgado da sentença condenatória, nos termos do nº 4 do artigo 2º. Substancialmente, a diferença de regimes explicar-se-ia pela circunstância de neste último caso não haver 'uma nova avaliação quanto à natureza criminal do facto, que permanece punível', apenas se entendendo 'que bastará para o reprimir uma sanção mais leve ou que comporte efeitos penais menos graves' (MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA, 'Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço', Jornadas de Direito Criminal – o Novo Código Penal e Legislação Complementar, Lisboa,
1993, pág. 99).
Cumpre assim apurar se pode reputar-se constitucionalmente admissível o limite consagrado no nº4 do artigo 2º do Código Penal à aplicação retroactiva da lei mais favorável ao arguido, excluída se o agente tiver sido condenado por sentença já transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei nova.
2ª) É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que a Constituição consagra os princípios básicos relativos à 'aplicação da lei criminal' (artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o princípio da irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e princípio do direito à revisão da sentença e à indemnização em caso de condenação injusta.
Na parte que agora nos importa considerar, o nº 4 do artigo 29º determina que se aplicam 'retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'. Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta regra. Ela traduz a consideração de que a pena criminal se deve justificar 'no momento da sua efectiva aplicação e execução perante os sucessivos juízos de valor ou valorações diferentes sucessivamente expressos na lei' (JOSÉ LOBO MOUTINHO, 'A aplicação da lei penal no tempo segundo o Direito português', Direito e Justiça, vol. VIII, t. 2, 1994, pág. 104), decorrendo directamente do princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas ( Acórdão deste Tribunal nº 290/97, de 12 de Março de
1997, publ. no Diário da República, II, de 15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, 'Direito Penal – Questões fundamentais – a doutrina geral do crime', em curso de publicação, Coimbra, 1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, 'Direito Penal - Parte Geral', Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA, 'Direito Penal', 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E BRITO, 'A lei penal na Constituição', Estudos sobre a Constituição,
2º vol., Lisboa, 178, págs. 199 e segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO,
'Sucessão de Leis Penais', 2ª edição, Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.). Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que 'qualquer criminalização e respectiva punição' (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, 'A determinação da medida da pena privativa de liberdade', Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no nº 1 do artigo 27º da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do nº 2 artigo 18º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se constitucionalmente ilegítima.
3ª) Encontrado o fundamento do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável, importa agora referir a respectiva extensão, ou âmbito de protecção. Importa desde logo averiguar se a expressão 'arguido' utilizada no nº 4 do artigo 29º da Constituição pode ser entendido no sentido de que a Constituição só garante a aplicação da lei mais favorável quando ainda exista tecnicamente arguido, por ainda não ter transitado em julgado a sentença condenatória. Impõe-se, sem dúvida, uma resposta negativa a esta questão. Em primeiro lugar, porque a própria Constituição emprega o mesmo termo para abranger os que foram condenados por sentença transitada em julgado (cfr. o nº 3 do seu artigo 282º); em segundo lugar, sobretudo porque o fundamento em que assenta substancialmente a garantia da aplicação da lei mais favorável – o princípio das necessidade das penas – conduz a que esta garantia deva ter aplicação em ambos os casos. De resto, diferente entendimento levaria a considerar, contra o consenso da doutrina, que a garantia constitucional não teria aplicação nos próprios casos de descriminalização quando já houvesse caso julgado da condenação. Em terceiro lugar, porque o nº 2 do artigo 27º da Constituição, que autoriza a privação da liberdade 'em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão', não tem naturalmente por efeito legitimar constitucionalmente toda e qualquer privação da liberdade determinada por sentença condenatória, por isso que não se refere às condições em que é constitucionalmente legítima a norma incriminadora ou a sua aplicação e execução. Razão pela qual o nº 2 do artigo 27º em nada afecta a determinação do
âmbito de protecção do nº 4 do artigo 29º. Acresce, ainda, que não é de aceitar o entendimento segundo o qual não cabe à lei constitucional 'regular as condições de aplicação dos seus comandos, antes pelo contrário lhe compete deixar ao legislador ordinário o seu âmbito próprio de actuação. Devendo limitar-se – como faz expressamente a CRP no artigo 18º, especialmente no nº 2 – a regular os limites deste âmbito, definindo os requisitos a que devem submeter-se as leis restritivas de direitos fundamentais'
(FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 190). Com efeito, se há casos em que a consagração na Constituição de determinados direitos fundamentais é compatível com diversos modos de regulamentação legal, através de normas conformadoras, tendo em conta o carácter vago ou indefinido dos conceitos utilizados (cfr. o nº 6 do artigo 29º, que determina que 'os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos), já no nº 4 do artigo 29º, como em muitos outros preceitos constitucionais (cfr. os artigos 24º, nº 2, 30º, nºs 1 e 3, 33º, nº 1, para dar apenas exemplos relativos
à matéria penal e processual penal) o âmbito de protecção do direito fica desde logo, no essencial, definido directamente pela Constituição. Só pode assim convocar-se o artigo 18º em sede de restrição do direito, e não em sede de fixação das condições normais do seu exercício. Por último, não altera o que fica dito a objecção formulada por FIGUEIREDO DIAS, ob. e loc. cits., segundo a qual 'também a lei fundamental tem, na sua interpretação, de ser submetida a uma cláusula de razoabilidade – e não seria obviamente razoável pensar que a totalidade das condenações penais cuja execução ou cujos efeitos se mantêm teria de ser reformada todas as vezes que uma lei nova viesse atenuar a responsabilidade penal: isso seria seguramente razão bastante para que nenhum legislador jamais se dispusesse a levar a cabo uma reforma do CP!'. A citada objecção apenas teria valor interpretativo se lograsse demonstrar a impossibilidade de aplicação prática do pensamento claramente vertido no nº 4 do artigo 29º, e não meramente um acréscimo de trabalho dos tribunais, o que não sucede. Em Espanha, desde há muito o caso julgado não restringe a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, o que não impediu a entrada em vigor do recente Código Penal de 1995, que, aliás mantém o mesmo princípio no seu artigo 2º, nº 2
(cfr. MIGUEL POLAINO NAVARRETE, 'Derecho Penal – parte general', tomo I,
'Fundamentos científicos del Derecho Penal', Barcelona, 1996, pág. 504; GONZALO QUINTERO OLIVARES, com a colaboração de F. MORALES PRATS e M. PRATS CANUT,
'Curso de Derecho Penal – parte general', Barcelona, 1996, págs. 117-118); e também não inibiu 'o legislador penal do Estado vizinho de fazer as amplas reformas penais que, ao longo destes 125 anos, entendeu necessárias (assim, CP de 1928, CP de 1932, CP de 1944, Revisão de 1963, Reforma de 1973, Revisão de
1983 e Revisão de 1989)' (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., pág. 251). Pode ler-se em MIGUEL POLAINO NAVARRETE (ob. cit., págs. 504-505) :
'Poucas disposições na legislação penal se revelam tão adequadas às exigências político-criminais de execução da Justiça penal como a que estabelece o artigo
2º, 2 do Código Penal de 1995 (cujo precedente legislativo esteve constituído pelo artigo 24º do anterior Código). No marco do debate doutrinal em torno da ratio da retroactividade penal favorável, é de assinalar que a mesma representa o único critério congruente com as exigências de Política criminal consideradas prevalecentes no momento da real aplicação efectiva da lei penal. (...) Não podem as disposições legais servir de forma mais autêntica a Justiça penal senão sendo, antes de mais, leais consigo mesmas. E a norma penal, assim como em geral o sistema punitivo do Estado, que não acolham com incessante dinamismo as novas exigências político-criminais, perceptíveis em cada momento como co-determinantes das sanções penais previstas, não respondem à ratio que essencialmente os legitima. Política criminal e Justiça penal material aparecem assim incindivelmente unidas. Os limites da culpabilidade anterior adequam-se às reais exigências da punibilidade, determinantes da necessidade e do merecimento da sanção penal correspondente ao momento histórico de referência'.
4ª) Apurado o fundamento e a extensão da proposição constitucional em análise, impõe-se a conclusão de que se verifica uma contradição formal entre o nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que afasta a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável se a decisão condenatória transitou em julgado, e o nº 4 do artigo 29º da Constituição (assim, TERESA PIZARRO BELEZA, op.cit., 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 455, que sustenta que a parte final do nº 4 do artigo 2º do Código Penal deve 'considerar-se inconstitucional face ao disposto no nº 4 do artigo 29º').
É necessário, no entanto, averiguar se tal contradição é admissível, o que só ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos, liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e proporcionalidade relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos. Com efeito, '... as restrições e os condicionamentos dos direitos fundamentais ... só se justificam quando, para além do mais, se mostrem necessários e adequados à salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionais. Por outro lado, têm sempre que ser proporcionados. E, tratando-se de restrições, têm que deixar intocado o conteúdo essencial do respectivo preceito constitucional (cf. artigo 18º da Constituição)
(acórdão nº 392/89 deste Tribunal, publicado no Diários da República, II, de 14 de Setembro de 1989). Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do artigo 2º do Código Penal (cfr. PAULO OTERO, 'Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional', Lisboa, 1993, pág. 51, que defende a existência de uma
'margem de liberdade conferida pela Constituição ao legislador ordinário para este ponderar e escolher, dentro dos limites constitucionais, uma de várias formas de relacionamento entre o princípio da retroactividade da lei mais favorável e o princípio da intangibilidade do caso julgado'). Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável. Na verdade, e ainda que aceitando que o pressuposto de que o caso julgado é constitucionalmente garantido, tornar-se-ia indispensável demonstrar que, tendo em conta os respectivos fundamentos substanciais, a sua tutela impõe necessariamente uma restrição daquele outro princípio. Por outras palavras, é necessário que o valor constitucional do caso julgado deva prevalecer nestas hipóteses – nos casos em que a nova lei se revela mais favorável a um agente condenado por decisão transitada em julgado – perante a aplicação da lei mais favorável, tendo em conta o princípio da unidade da Constituição. O que supõe não apenas um respeito pelo conteúdo essencial da norma que garanta direitos, liberdades e garantias, mas também adequação, necessidade e proporcionalidade
(em sentido estrito) da restrição relativamente ao direito ou interesse que a restrição visa garantir. Como todos sabem, o instituto do caso julgado serve fundamentalmente o valor da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais funda-se, em último caso, no princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', Coimbra, 1998, pág. 257), cabendo distinguir a este propósito uma dimensão objectiva, consubstanciada na ideia de 'estabilidade das instituições' (cfr., quanto ao caso julgado penal, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 131), e uma dimensão subjectiva, que se projecta na tutela da certeza jurídica das pessoas, ou na estabilidade da definição judicial da sua situação jurídica. Ora, em matéria criminal, a segurança jurídica visada pela protecção do caso julgado é, num plano subjectivo, exclusivamente a do arguido. Num plano objectivo, está em causa quando muito a 'estabilidade das instituições penais cujo valor é necessariamente inferior à igualdade e à necessidade da pena'
(MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., pág. 131. Não podem utilizar-se, no domínio penal, pelo menos em toda a sua extensão, os argumentos esgrimidos no âmbito do Processo Civil para justificar objectivamente a estabilidade da decisão que adquiriu força de caso julgado, consistente na certeza e segurança dos direitos dos outros interessados. 'Consequentemente, para além do aspecto da multiplicação do trabalho envolvido na repetição de decisões, só tem verdadeiramente relevo a segurança ou estabilidade da situação do arguido. Seria, no entanto, absurdo, fazer prevalecer a segurança e a estabilidade da situação do arguido sobre a respectiva justiça, por forma que o arguido devesse ser ou continuar a ser injustamente punido para assegurar a estabilidade da sua situação de injustiçado. É isso que explica as notáveis diferenças existentes entre os casos em que é admitida a revisão de sentenças penais e os casos em que é admitida a revisão de sentenças civis' (JOSÉ LOBO MOUTINHO, op. cit., pág. 108).
'Com mais frequência do que seria desejável, a jurisprudência tem defendido afincadamente a estabilidade de decisões em processo penal, com indevida postergação do interesse concreto da justiça, para salvaguardar o valor daquelas decisões independentemente da sua justificação, como se a manutenção dum valor jurídico se confundisse com o prestígio funcional de órgãos criadores de direito autónomo', escreve CAVALEIRO DE FERREIRA, por seu turno ('Os pressupostos processuais', Obra Dispersa, I, 1933/1959, Lisboa, 1996, pág. 349). De resto, é a própria Constituição que estabelece, a propósito dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (artigo 282, nº
3), que o caso julgado penal não é intangível, já que cede perante decisão em contrário do Tribunal Constitucional, quando a norma inconstitucional for de conteúdo menos favorável ao arguido. Assim, observam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na 'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed., Coimbra,
1993, pág. 193: 'não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos em princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação da questão, devendo notar-se que, quando a Constituição manda respeitar os casos julgados, admite uma excepção exactamente para a lei penal (ou equiparada) mais favorável'; por seu turno, afirma JORGE MIRANDA, em
'Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal', O Direito, ano 121º, 1989, IV, págs. 698-699:
'tão grande realce presta a nossa Constituição à lei penal mais favorável que a antepõe ao respeito do caso julgado; tão preciosas são para a Lei Fundamental as garantias jurídico-criminais dos cidadãos que prevalecem sobre a garantia do caso julgado; entre a liberdade e a segurança individual em concreto ou subjectiva e a segurança objectiva da comunidade dá preferência, numa postura personalista, à primeira'.
'Não deixa de impressionar a segurança inerente à estabilidade e imodificabilidade do caso julgado, a segurança inerente à garantia dada pelo Estado aos cidadãos de que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros
órgãos não irão diminuir a força obrigatória das suas decisões. Não obstante, a segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade e de justiça que fluem da própria vida e que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estear em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica' (Acórdão nº 87 da Comissão Constitucional, publicado no Apêndice ao Diário da República de 3 de Maio de 1978). E não se diga que a possibilidade de o Tribunal Constitucional não ressalvar os casos julgados relativamente a leis inconstitucionais permite a conclusão de que a Constituição faz prevalecer o caso julgado perante a aplicação da lei mais favorável. Se assim fosse, seria logo o nº 2 do artigo 2º do Código Penal que padeceria de inconstitucionalidade, na parte em que determina o desrespeito pelos casos julgados. Ninguém defenderá semelhante consequência, seguramente. Na verdade, mesmo que não se entenda, com alguns autores, que existe uma obrigação e não uma mera faculdade de o Tribunal Constitucional destruir os casos julgados penais (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', II, cit., págs. 498-499 e RUI PEREIRA, 'A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável', Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, nº 1, 1991, págs.
71-72), sempre haverá que ter em conta que a segunda parte do nº 3 do artigo
282º abrange também matéria disciplinar e de mera ordenação social, devendo este Tribunal obedecer a critérios não arbitrários, mas conformes com as valorações constitucionais, e acompanhar do mesmo passo 'a diferenciação de regimes a que constitucionalmente estão sujeitos esses domínios' (assim, com argumentação mais desenvolvida, JOSÉ LOBO MOUTINHO, ob. cit., pág. 110). Em qualquer caso, o respeito pelo princípio da unidade da Constituição e das regras da interpretação sistemática leva necessariamente a entender que não existem aqui fundamentos substanciais para uma derrogação do princípio da necessidade das penas e do consequente princípio da aplicação da lei mais favorável, sediados constitucionalmente no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, com todas as consequências hermenêuticas que daqui devem decorrer.
5ª) Não se afigura também de todo admissível, por outro lado, invocar o nº 5 do artigo 29º da Constituição, que garante que 'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime', para defender a intangibilidade do caso julgado (cfr. a invocação do nº 5 do artigo 29º como um dos argumentos para a defesa da não inconstitucionalidade da última parte do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, em PEREIRA TEOTÓNIO, 'Interpretação da lei criminal e sua aplicação no tempo', Revista do Ministério Público, ano 3º, vol. 12, 1982, pág.
64). Na verdade, a disposição constitucional invocada, que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo pois ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua ratio.
6ª) Não poderia também proceder uma possível chamada à colação, para admitir a ressalva do caso julgado, do carácter obrigatório das decisões judiciais (artigo
205º, nº 2), ou do princípio da separação de poderes (artigo 111º, nº 1). Antes de mais, porque, a admitir-se a relevância destes princípios para a resolução do problema sub judicio, haveria logicamente de considerar-se inconstitucional a destruição dos casos julgados nos termos do nº 2 do artigo 2º do Código Penal. Acresce em qualquer caso que não é posta em causa a obrigatoriedade das decisões judiciais, pois do que se trata é de não permitir a continuação para o futuro da execução de uma pena ou de uma pena mais grave fixada em lei anterior, tendo em conta a nova lei. A aplicação retroactiva da nova lei não determina a invalidade da sentença judicial anterior, mas tão só a cessação (ou alteração) da produção dos seus efeitos, sem questionar os seus pressupostos. Diga-se, ainda, que se é admissível que actos de diversa natureza (nova lei que despenaliza; amnistia; perdão; indulto), ulteriores ao caso julgado, venham fazer cessar o cumprimento da pena, por maioria de razão terá de aceitar-se a aplicação à parte da pena que falta executar de uma lei nova que tenha por efeito tão-só uma atenuação da responsabilidade penal. Deve ainda atender-se à circunstância de que a lei penal mais favorável tem as características da generalidade e abstracção, pelo que não afecta o princípio da separação de poderes. Pode assim reafirmar-se que o valor constitucional do caso julgado não constitui fundamento para restringir a garantia da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável. Na verdade, os fundamentos em que assenta uma possível tutela constitucional do caso julgado penal de nenhum modo conduzem à restrição do princípio consagrado no nº 5 do artigo 29º.
7ª) Por último, a não aplicação da lei mais favorável às penas em execução por força de decisão transitada em julgado lesaria ainda o princípio da igualdade
(neste sentido, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., págs. 130 e segs.; GERMANO MARQUES DA SILVA, 'Direito Penal Português', I, Lisboa, 1997, pág. 270; RODRIGUES MAXIMIANO, 'Aplicação da lei penal no tempo e caso julgado', Revista do Ministério Público, ano 4º, vol. 13, 1983, pág. 29; RUI PEREIRA, ob. cit., pág. 59, nota 13; TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., págs. 234 e segs.). Na verdade, se a sucessão de leis no tempo cria sempre desigualdade (cf. CAVALEIRO DE FERREIRA, 'Direito Penal Português', I, Lisboa, 1991, pág. 119), algumas das quais inevitáveis, o princípio da igualdade obriga a que não subsistam as desigualdades que ainda podem ser eliminadas ( 'se é impossível afastar inteiramente a desigualdade e se ela é irremediável em certos casos ou quando a pena já foi completamente executada, é preferível que se atenuem os rigores das penas na medida do possível a que se renuncie a obter esse resultado com a aplicação da lei nova só para respeitar uma igualdade ilusória'). A aplicação da lei mais favorável, sem o limite dos casos julgados, vem precisamente afastar a desigualdade que resultaria da solução contrária: a execução da pena, ou da pena mais grave, dependeria da circunstância, meramente fortuita, de o trânsito em julgado da decisão condenatória ocorrer antes ou depois da entrada em vigor da lei mais favorável. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza