Imprimir acórdão
Proc. 661/96
1ª Secção Relatora: Consª. Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. T..., S.A., identificada nos autos, foi condenada pelo Tribunal do Trabalho do Porto ao pagamento da quantia de 693.864$00 a D..., a título de complemento de subsídio de doença, com base na cláusula 69ª do contrato colectivo de trabalho dos trabalhadores da propaganda médica de 1973.
2. Não se conformando com esta decisão, recorreu para a Relação do Porto, invocando a inconstitucionalidade do artigo 15º, n º 2, do Decreto-Lei nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro, que excepciona de revogação (pela Portaria de Regulamentação do Trabalho para a Indústria e Comércio Farmacêutico, publicada no Boletim de Trabalho e Emprego de 1978) a norma com base na qual o tribunal lhe impôs a obrigação de pagamento da referida quantia:
'5. Está em causa uma interpretação da lei, em matéria de sucessão de leis, sendo certo que a ré e recorrente entende ser mais correcta a interpretação segundo a qual o nº 2 da base XXXIX da Portaria de Regulamentação do Trabalho da Indústria Química e Farmacêutica, revogou expressamente o antigo artigo 69 do contrato de trabalho dos trabalhadores da propaganda médica. O que resulta da própria história dos instrumentos de regulamentação do trabalho. Note-se que a Portaria de 1978, instrumento ainda em vigor, constitui a alteração do sistema de contratos colectivos de trabalho horizontais, para o instrumento vertical, regulando todas as profissões e condições do sector a que se destinava. Ora, assim sendo, dada a nova amplitude deste instrumento, hoje esquecida, por já terem decorrido 16 anos, o mesmo quis, realmente, revogar todos os contratos anteriores, como sucedeu.
[...]
7. A regra que, expressa e literalmente, excepciona da revogação as regras dos instrumentos de regulamentação colectiva, que prevêem benefícios complementares de Segurança Social, consagrada no artigo 15, nº 2 do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, é inconstitucional. O nº 2 do artigo 15 do Decreto-Lei
519-C1/79, de 29 de Dezembro, é inconstitucional.
8. Este preceito legal é inconstitucional porquanto, ao estabelecer a inderrogabilidade perpétua de certas normas jurídicas, transforma-as em normas superiores às próprias normas jurídicas provenientes de fontes de direito estaduais, apesar de elas serem provenientes de fontes de direito convencionais. O que viola o artigo 115º nº 5 da Constituição.
9. Uma disposição legal como o citado artigo 15, nº 2 determina que certas regras de direito sejam superiores a outras, sendo inderrogáveis, sendo inalteráveis pelo legislador, o que não pode suceder, por violar a autonomia da própria fonte de direito, por violar o próprio poder soberano de legislar.
10. Note-se que este artigo 15 nº 2 coloca certas disposições de instrumentos de regulamentação de trabalho por ele previstas acima do próprio poder negocial das partes, quando elas negoceiam um novo instrumento de regulação do trabalho; e mesmo acima do poder do Estado, quando este, por Portaria, publica um novo instrumento de regulação do trabalho, o que, manifestamente, não pode suceder.
11. O citado artigo 15 nº 2 viola os seguintes números do artigo 56 da constituição da República: o nº 2 alínea a) e 3.
12. É igualmente violado o artigo 115 nº 5 da Constituição, porquanto o nº 2 do citado artigo 15, na sua redacção, permite que as disposições de convenções reguladoras do trabalho venham, na prática, revogar o nº 1 alínea e) do artigo
6º do mesmo Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro.
13. Sendo esta disposição legal inconstitucional, os Tribunais não lhe devem obediência, razão pela qual a mesma não deve ser aplicada.
14. Não sendo aplicado o artigo 15 nº 2 ficamos, sem sombra de dúvida, com a norma do artigo 69 do contrato de 1973 revogada. Estando revogada, o princípio da legalidade a que os Tribunais estão subordinados obriga a que a mesma não seja aplicada.'
3. O Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso interposto pela T..., afastando os argumentos de inconstitucionalidade nestes termos:
'Assim, e tendo o A. entrado ao serviço da R. em 13-02-73, e mantendo-se ao seu serviço durante a vigência do referido CCT de 1973, em cuja cláusula 69ª se previam os benefícios complementares cujo reconhecimento e pagamento peticiona, acontece que, por força das disposições legais referidas e transcritas, o direito àqueles benefícios se integrou no seu contrato individual de trabalho, como a norma legal expressamente refere; e uma vez por ele adquirido em termos de contrato individual de trabalho, já não pode mais, sem o seu acordo, ser-lhe retirado, mesmo que do texto de novo IRCT conste, em termos expressos, o seu carácter globalmente mais favorável, nos termos do nº 1 do artº 15º do D.L. nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro, já que sempre o nº 2 do mesmo artº 15º ressalva o disposto no nº 2 do artigo 6º. E não procede argumentar-se com a inconstitucionalidade do artº 15º, nº 2, do D.L. nº 519-C1/79 [...], já que, como atrás se disse, nesse nº 2 apenas se reconhece, àqueles que se encontrem no âmbito dessa previsão legal, um direito que já entrou na esfera e no domínio do seu contrato individual de trabalho, o que em nada viola o poder soberano do legislador. Nem se diga que o referido nº 2 do artº 15º coloca certas disposições de instrumentos de regulamentação de trabalho por ele previstas, acima do poder do Estado, quando este por Portaria, publica um novo instrumento de regulação do trabalho. O que resulta é que o legislador, prevenindo e solucionando conflitos de aplicação de leis no tempo, ao reconhecer, a certos e determinados trabalhadores, através duma norma legal inserta num Decreto-Lei, como direitos adquiridos para o respectivo contrato individual de trabalho direitos que se encontrem dentro do âmbito duma previsão legal que anteriormente lhes era aplicável, não quis por certo, nem previu que por Portaria – diploma legal hierarquicamente inferior e que em princípio visa a boa interpretação e aplicação da lei –, se viesse a revogar, contrariar ou contradizer o que nessa norma hierarquicamente superior deixou consagrado ou ressalvado, sob pena de ilegalidade [...]. Nem se diga ainda que o mesmo nº 2, do art.º 15º, viola os artigos 56º, nº 2, a), e nº 3, e 115º, nº 5, da Constituição da República, pois, contrariamente ao alegado, a ressalva de direitos já integrados no contrato individual de trabalho de certos e determinados trabalhadores, naquela norma prevista, em nada viola os direitos das associações sindicais de participarem na elaboração da legislação do trabalho, nem o exercício do direito de contratação colectiva. E também não se verifica que a disposição legal constante do nº 2 do artº 15º, em causa, viole o nº 5 do artº 115º da CRP.
[...] pela ressalva dos citados benefícios complementares anteriormente fixados por convenção colectiva e reconhecidos em termos de contrato individual de trabalho, o legislador apenas regulou ou manteve (prevenindo e solucionando conflitos de aplicação de leis no tempo, como já acima se deixou dito), os direitos de que certos trabalhadores já usufruíam e que com a entrada em vigor de novos IRCT poderiam ser postos em crise. Não há, no caso sub judice, criação de outras categorias de actos legislativos, nem se confere a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.'
4. A T... interpôs então o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1 , alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Nas suas alegações reiterou a argumentação anterior – inconstitucionalidade do artigo 15º, nº 2, do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, por violação dos artigos 56º, nº 2, alínea a), e nº 3, e 115º, nº 5, todos da Constituição da República Portuguesa. Acrescentou um outro fundamento: a violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13º da Constituição. Estabelecendo o artigo 15º, nº 2, do Decreto-Lei nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro, a 'imutabilidade perpétua' dos benefícios de segurança social incorporados em convenções colectivas de trabalho, tal redundaria numa 'proibição [genérica de estipular benefícios complementares dos assegurados pela Segurança Social] para todos os trabalhadores, menos para aqueles que tenham a sorte de já beneficiar de vantagens complementares, porque essas são imutáveis. Viola-se, assim, a regra da igualdade de todos os cidadãos perante a lei [...]'. Cumpre decidir. II
5. O objecto do recurso é, assim, a norma do artigo 15º, nº 2, do Decreto-Lei nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro, cujo conteúdo se pretende ver confrontado com os artigos 56º, nº 2, alínea a), e nº 3, 13º, nº 1, e 115º, nº 5, todos da Constituição. Dispõe o artigo 15º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro:
'1. As condições de trabalho fixadas por instrumento de regulamentação colectiva só podem ser reduzidas por novo instrumento de cujo texto conste, em termos expressos, o seu carácter globalmente mais favorável, sem prejuízo do disposto nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 6º.
2. A redução prevista no número anterior prejudica os direitos adquiridos por força de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho substituído, com ressalva do disposto no nº 2 do artigo 6º.'
No artigo 6º, nº 2, do Decreto-Lei nº 519-C1/79 prevê-se que:
'2. A restrição constante da alínea e) do número anterior não afecta a subsistência dos benefícios complementares anteriormente fixados por convenção colectiva, os quais se terão por reconhecidos, no mesmo âmbito, pelas convenções subsequentes, mas apenas em termos de contrato individual de trabalho.'
Por sua vez, a alínea e) do nº 1 do artigo 6º prescreve o seguinte:
'1. Os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem:
[...] e) Estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência.'
6. Na perspectiva da recorrente a norma do artigo 15º, nº 2, do Decreto-Lei nº 519-C1/79 seria inconstitucional pelos seguintes fundamentos:
· ao excluir a revogação, em termos perpétuos, das condições fixadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho relativas a benefícios complementares de segurança social, tal norma imporia uma restrição ao âmbito da autonomia colectiva de regulamentação das relações de trabalho, vedando às associações sindicais a possibilidade de intervirem nesse domínio da contratação colectiva e afectando assim os direitos dessas associações, previstos no artigo
56º, nº 2, alínea a), e nº 3, da Constituição;
· ao remeter para o artigo 6º, nº 2, do mesmo diploma, de tal norma resultaria que os trabalhadores abrangidos por instrumentos de regulamentação de trabalho, anteriores a 1979, onde se regulasse a atribuição de benefícios complementares de segurança social ficassem claramente privilegiados em face de trabalhadores abrangidos por instrumentos celebrados posteriormente a 1979 – altura em que já vigorava a proibição ínsita no artigo 6º, nº 1, alínea e) (para o qual remete, por sua vez, o artigo 6º, nº 2) – não podendo, consequentemente, usufruir das mesmas regalias; a solução constituiria uma violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição, pois implicaria a discriminação arbitrária entre trabalhadores que, na óptica da recorrente, se encontram nas mesmas circunstâncias;
· ao implicar a sobrevivência das disposições relativas a benefícios complementares de segurança social inseridas em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, a norma em causa teria como consequência colocar os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho em posição superior a normas jurídicas provenientes de fontes de direito estaduais, e até mesmo, na prática, revogar o nº 1, alínea e), do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, o que seria desconforme ao artigo 115º, nº 5 da Constituição (actualmente artigo
112º, nº 6), por atentar contra 'o poder soberano de legislar.'
7. Foi já por diversas vezes objecto da atenção do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade de uma outra norma contida no Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro – a norma do artigo 6º, nº 1, alínea e), sobre prestações complementares de segurança social, para a qual remete, afinal, o preceito do artigo 15º, nº 2, do mesmo Decreto-Lei, cuja constitucionalidade é questionada no presente processo. Recentemente, no acórdão nº 517/98, tirado em Plenário, em 15 de Julho de 1998
(publicado no Diário da República, II, de 10 de Novembro de 1998, p. 15978 ss), o Tribunal Constitucional, por maioria, considerou que o Decreto-Lei nº
519-C1/79, abrangendo disposições relativas aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, deveria ter sido emitido ao abrigo de autorização legislativa, uma vez que a matéria em causa se inseria na reserva de lei parlamentar [artigo 167º, nº1, alínea c), da Constituição, versão originária].
A este propósito, escreveu-se no mencionado acórdão nº 517/98, transcrevendo argumentação constante de acórdão anterior:
'5. A norma sub iudicio e a reserva parlamentar
1. [...]
[...]
«5. O direito de contratação colectiva deveria ser entendido, na verdade, como um direito fundamental dos trabalhadores, no âmbito da versão originária da Constituição de 1976. Tal direito caracteriza, decisivamente, o trabalho subordinado como trabalho prestado por pessoas livres, numa sociedade essencialmente liberal e fundada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição). A autonomia colectiva representa, efectivamente, uma particular forma de autonomia privada (cf. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho,
1991, p. 321). Mesmo admitindo que outros direitos dos trabalhadores se não devessem então classificar como fundamentais, o direito de contratação colectiva haveria de incluir-se nesse domínio, não, propriamente, atendendo à sua estrutura, mas tendo em conta a sua importância relativa. Não faria sentido, ante o princípio democrático, incluir direitos subjectivos menos relevantes, mas imediatamente exercíveis por trabalhadores, na reserva de lei e reconhecer quanto ao direito de contratação colectiva, a competência própria do Governo. Aliás, a primeira revisão constitucional viria a reforçar este entendimento, ao incluir o direito de contratação colectiva no âmbito dos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da Parte I (artigo 57º, nºs 3 e 4), na sequência de uma diferenciação entre 'direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores' e 'direitos e deveres económicos' (que englobam outros direitos dos trabalhadores).
6. Conclui-se, por conseguinte, que a norma sub judicio padece de inconstitucionalidade orgânica, ante o disposto nos artigos 167º, alínea c),
58º, nºs 3 e 4, e 17º da Constituição, na sua versão originária, visto que está inserida num decreto-lei aprovado pelo Governo, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição (versão originaria), no exercício de competência legislativa alegadamente própria.»'
Este fundamento não foi invocado pela recorrente para fundamentar a inconstitucionalidade da norma do artigo 15º, nº 2, do Decreto-Lei nº 519-C1/79. Todavia, o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional uma norma com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada, por força do disposto no artigo 79º-C da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro (aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
Ora, no caso, as razões que conduziram ao julgamento de inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto--Lei nº 519-C1/79, constantes do mencionado acórdão nº 517/98, fundamentam igualmente a decisão quanto à inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 15º, n º 2, do mesmo diploma. Estando em causa o direito de contratação colectiva, incluído no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, encontra-se abrangido pela reserva de lei; a sua regulação não pode portanto constar de decreto-lei do Governo adoptado no exercício de competência própria.
III
8. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 15º, n º 2, do Decreto-Lei nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro, com fundamento na violação do artigo 167º, alínea c), conjugado com os artigos 58º, nº 3, e 17º da Constituição da República Portuguesa (versão originária); b) Consequentemente conceder provimento ao recurso, ordenando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 2 de Março de 1999- Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida (vencido, nos termos do voto aposto ao Ac. Nº 517/98, de
15 de Julho de 1998) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto aposta ao Ac. Nº
517/98, de 15 de Julho de 1998). José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração junta ao Acórdão nº 517/98).