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Proc. nº 549/94 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - D... foi condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Caminha, em co-autoria, em concurso real e na forma tentada, pelo crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36º, nº. 1, alínea a), nº.
2, nº. 5, alínea a) e nº. 8, com referência ao artigo 21º, ambos do Decreto-Lei nº. 28/84, de 20.01 e pelo crime de desvio de subsídios, p. e p. no artigo 37º, nºs. 1 e 3 do mesmo diploma.
O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 9.03.94, convolou a acusação deduzida por aquele crime, para um crime tentado, em co-autoria material, de burla agravada, p. e p. pelo artigo
314º, alínea c) do Código Penal, condenando o arguido na pena de trinta meses de prisão.
O recorrente arguiu a nulidade processual do referido acórdão, nos termos e para os efeitos dos artigos 112º e 119º do Código de Processo Penal.
Por acórdão, em conferência, do Supremo Tribunal de Justiça de
15.07.94, foi mantida a decisão, nele se afirmando que ?(...) o acórdão reclamado decidiu de acordo com a doutrina do acórdão nº. 2/93, deste Supremo Tribunal, o qual impropriamente se pode designar por ?Assento nº. 2/93??, e indeferida a reclamação apresentada.
Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº.
28/82 e artigo 280º, nº. 1, alínea b) da Constituição, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
?(...) 1. O tribunal não tem, perante a matéria de facto acusada, uma ilimitada liberdade de qualificação, não podendo condenar por crime inteiramente diverso do crime pelo qual o arguido é perseguido e acusado.
2. Uma súbita alteração da qualificação dos factos pelo Tribunal traduz-se num prejuízo para o esquema preparado pela defesa em função de um certo crime pelo qual o arguido vem acusado, importando tal alteração uma nítida violação das garantias de defesa do arguido (art. 32º nº 1 e 3 da CRP).
3. A eficaz protecção das garantias de defesa do arguido em caso de condenação por crime diverso daquele pelo qual o arguido é acusado só se poderá alcançar através de um prévio aviso que informe a alteração da perspectiva jurídica e conceda um prazo razoável para o estudo de uma nova qualificação e preparação da defesa em relação a ela.
4. Se é certo que insignificantes alterações dos factos podem por em causa toda a defesa do arguido, quando em causa esteja uma alteração da qualificação jurídica dos mesmos, o contraditório tem de ser assegurado ao arguido, não podendo este ser surpreendido na sentença com uma incriminação diversa da acusada.
5. Tal foi, aliás, o entendimento deste Tribunal Constitucional ao julgar inconstitucional, por violação do art. 32º nº 1 da CRP, a disposição do art.
418º nº 2 do Código de Justiça Militar, na parte em que permite ao Tribunal condenar por infracção diversa daquela por que o arguido foi acusado, quando a diferente qualificação jurídico-penal dos factos.
6. Em respeito pela disposição do art. 32º nº 1 e 5 da CRP, a convolação só pode ser legal naqueles casos em que se convola a incriminação inicial para outra em tudo semelhante à primeira, em que o bem jurídico tutelado seja o mesmo e não haja necessidade de fazer apelo a outros factos senão àqueles em relação aos quais, pela incriminação inicial, o tribunal se pode pronunciar.
7. Em relação às normas dos arts. 358º e 359º do CPP, entendeu o Supremo Tribunal que estas devem ser interpretadas, respectivamente, no sentido de que o Tribunal não se pode pronunciar sobre factos diferentes daqueles descritos na pronúncia ou na acusação sem assegurar ao arguido o seu direito de defesa e não se pode pronunciar sobre factos substancialmente diferentes daqueles descritos na acusação ou na pronúncia; e que não violou tais disposições por se ter limitado a aplicar uma diferente incriminação aos factos alegados pela acusação, condenando por crime diverso daquele pelo qual o arguido foi acusado, pronunciado e julgado, pretendendo que a alteração a que se refere aqueles artigos se reportam tão-só à matéria de facto.
8. Com uma tal interpretação, permite-se que o tribunal condene o arguido pela prática de um crime em relação ao qual não pode apresentar qualquer defesa (art.
32º nº 3 da CRP), assim se violando as garantias de defesa do arguido em processo penal (art. 32º nº 1 da CRP).
9. Segundo esta interpretação das normas dos arts. 358º e 359º do CPP, as funções da acusação ficam absolutamente prejudicadas, permitindo-se e fomentando-se que estas se limitem à formulação de acusações ?em branco?.
10. A norma do art. 358º, assim interpretada, viola as garantias e o direito de defesa do arguido, consagrados no art. 32º nº 1 e 3 da CRP, permitindo que este seja condenado pela prática de um crime em relação ao qual nunca pode exercer defesa.
11. Nessa medida, a norma do art. 358º do CPP, quando interpretada nos termos referidos, viola igualmente o princípio do contraditório, consagrado no art. 32º nº 5 da CRP, retirando ao arguido a possibilidade de exercer o contraditório em relação ao crime pelo qual veio a ser condenado.
12. Por sua vez , a norma do art. 359º do CPP, interpretada com o sentido exposto, viola o princípio acusatório, consagrado no art. 32º nº 5 da CRP, na medida em que permite que a acusação pelo novo crime seja formulada pela mesma entidade que o julga, ou que se verifique uma condenação sem acusação.
13. Em face do exposto e em conclusão: nos casos em que rigorosamente está em causa uma diferente qualificação jurídica por parte do tribunal, devem considerar-se inconstitucionais as normas constantes dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal no caso de serem interpretadas no sentido de que a alteração a que se referem se reporta apenas a factos, assim permitindo ao tribunal efectuar livremente aquela diferente qualificação sem assegurar ao arguido o seu direito de defesa. PELO EXPOSTO, SE CONCLUI PEDINDO.
- Que as normas dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, se interpretadas no sentido de permitir ao tribunal condenar o arguido por crime diverso daquele pelo qual foi acusado e em relação ao qual exerceu a sua defesa, sem que seja necessário comunicar ao arguido a alteração da qualificação e conceder-lhe prazo para oferecer a sua defesa em relação à nova qualificação, sejam declaradas inconstitucionais, por violação das garantias de defesa do arguido (art. 32º nº 1 da CRP), do direito de exercício da defesa (art. 32º nº 3 da CRP), e dos princípios do contraditório e do acusatório (art. 32º nº 5 da CRP).
- Consequentemente, que seja revogado o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, por aplicação das normas cuja inconstitucionalidade, quando interpretadas nos termos descritos, se pede seja declarada?(...).
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal conclui a sua alegação defendendo a improcedência do recurso, por entender que
?(...) não merece qualquer crítica a interposição feita no acórdão recorrido, segundo a qual não é violado o disposto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, quando o tribunal se limita a fazer uma valoração jurídico-penal dos factos alegados pela acusação e provados na decisão do Tribunal Colectivo. Relativamente ao facto de não ter sido comunicado ao arguido a alteração da qualificação, o problema nem é de equacionar, in casu, pois tal falta se mostraria irrelevante, já que não foi aplicada ao arguido uma pena mais grave do que a que resultou da incriminação feita na 1ª Instância.?
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 ? A inconstitucionalidade do artigo 358º do CPP não foi mencionada no requerimento de interposição do recurso (fls. 617) como, aliás, o não fora já no requerimento de arguição de nulidade do acórdão recorrido (fls. 597), onde apenas se suscita a questão de inconstitucionalidade do artigo 359º do mesmo Código.
Procedeu, pois, o recorrente a uma ampliação do pedido nas alegações produzidas neste Tribunal o que se não afigura admissível, fixado como foi o objecto do recurso no requerimento de interposição.
Tem, assim, razão o Exmº Magistrado do Ministério Público quando sustenta que se não deve conhecer do recurso quanto à referida norma, o que, porém - diga-se desde já ? não altera substancialmente o sentido da apreciação da questão de constitucionalidade validamente suscitada.
3 - O recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 359º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de permitir ao tribunal condenar o arguido por crime diverso daquele pelo qual foi acusado e em relação ao qual exerceu a sua defesa, sem que seja necessário comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e conceder-lhe prazo para oferecer a sua defesa em relação à nova qualificação.
O arguido defende a inconstitucionalidade da referida norma por violação das garantias de defesa do arguido, do direito de exercício da defesa e dos princípios do contraditório e do acusatório (artigo 32º, nºs. 1, 3 e 5 da Constituição).
Apesar de o recorrente mencionar expressamente a norma constante do artigo 359º do CPP, o presente recurso envolve também a apreciação da constitucionalidade do artigo 1º, nº. 1, alínea f) do CPP, na interpretação do acórdão recorrido, entendendo-se essa interpretação integrativa das outras disposições que naquele código utilizam o conceito nele definido, máxime, as dos artigos 358º e 359º.
O artigo 1º, nº. 1, alínea f) do CPP define alteração substancial dos factos como ?aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis?, reportando-se o artigo 358º à alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e o artigo 359º à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, estes últimos preceitos aparecendo como cristalizações, negativa e positiva respectivamente, daquela definição inicial fornecida pelo legislador processual penal.
A possibilidade de diferente incriminação dos factos acusados é justificada no acórdão recorrido nos seguintes termos:
?Esta diferente incriminação pode ser aplicada por este Tribunal porque se limita a fazer uma valoração jurídico-penal de factos alegados pela acusação e provados na decisão do Tribunal Colectivo, o que não viola o disposto nos artigos 358º e 359º do C.P.P. .Consequentemente, convola-se a acusação deduzida por um crime tentado p. e p. pelo artigo 36º, nº. 1-a), nº. 2, nº. 5-a) e nº. 8-a) do Decreto-Lei nº. 28/84, para a co-autoria de um crime tentado p. e p. pelos artigos 314º-c), 22º, 23º, 26º, 73º e 74º do Cód. Penal, pelo qual os arguidos têm de ser condenados?.
Ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça entende que, no caso dos autos, não se verifica alteração dos factos pelo que a sua actividade se reconduz à mera actividade intelectual de qualificação jurídico-penal de factos descritos (assentes) na acusação, em virtude da diferente valoração jurídico-penal a que procedeu.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou diversas vezes sobre a inconstitucionalidade material da norma do artigo 1º, nº 1, alínea f) do CPP, conjugada com outra disposição de que ora cuidamos ? artigo 359º - sempre por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição, quando a diversa qualificação jurídico-penal dos factos implicasse a condenação do arguido em pena mais grave, mas tal apenas na medida em que não previa que ao arguido fosse dado conhecimento da nova qualificação e se lhe desse, quanto a ela, oportunidade de se defender (ver acórdãos nº 137/92, DR, II Série, 18.09.92; nº 279/95, DR, II Série, 28.07.95; nº 402/95, DR, II Série, 16.11.95; nº 22/96, DR, II Série,
17.05.96; nº 596/96, DR, II Série, 6.07.96; nº 16/97, DR, II Série, 28.02.97; nº
58/97 de 29.01.1997 ? inédito; nº 179/97, DR, II Série, 19.04.97).
Bem depois de interposto o presente recurso, por acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional, nº 445/97 in DR, I Série, 5.08.97, foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral ? por violação do princípio constante do nº. 1 do artigo 32º da Constituição ? a norma ínsita na alínea f) do nº. 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, nº. 1, 303º, nº. 3, 309º, nº. 2, 359º, nºs. 1 e 2 e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de ?assento nº. 2/93?, DR, I Série ? A, de 10.03.93, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.
No caso, tem plena aplicação o julgamento de inconstitucionalidade feito no Acórdão nº 445/97, sendo certo que o STJ expressamente afirma ter aplicado a doutrina que dimana do ?Assento nº 2/93, decidindo operar a convolação da incriminação efectuada em 1ª instância sem prévia audição do arguido.
Trata-se, aliás, de procedimento diverso daquele que, no caso apreciado pelo Acórdão nº 22/96, o Tribunal Superior de Justiça de Macau adoptou em situação idêntica , ao alterar a qualificação dos factos mas ouvindo previamente o arguido, razão por que, o aresto, acolhendo embora o mesmo entendimento que viria a ser sufragado no Acórdão nº 445/97, julgou a norma do artigo 447º do CPP29 não inconstitucional na interpretação que por aquele Tribunal Superior fora dada.
Uma última nota:
No citado acórdão deste Tribunal que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das supramencionadas normas, faz-se referência expressa ?à condenação do arguido em pena mais grave?; tal menção tem de se entender como equivalente a moldura abstracta, porque as normas cuja constitucionalidade se apreciou situam a questão da convolação e alteração substancial ou não substancial dos factos antes de proferida condenação em 1ª instância, ou seja, em momento anterior ao da escolha e determinação da medida concreta da pena.
Ora, no caso, o STJ, embora aplique em concreto o mesmo quantum da pena imposta pelo tribunal de 1ª instância, não deixa de convolar para infracção a que corresponde , em termos de moldura abstracta, pena mais grave do que a que caberia ao crime por que o arguido foi acusado e punido em 1ª instância, o que assim nos situa no âmbito da decisão do citado acórdão nº 445/97.
4 Decisão.
Pelo exposto, decide-se:
a) Aplicar ao presente caso a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº
445/97 do Plenário deste Tribunal Constitucional, DR, I Série, 5.08.97 que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, por violação do princípio constante do artigo 32º, nº. 1 da Constituição, a norma ínsita na alínea f) do nº. 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, conjugada com o artigo 359º do mesmo Código;
b) Conceder-se, em função disso, provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deve ser reformulada em consonância com o decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Junho de 1998 Artur Mauricio Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida