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Procºnº854/98
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional
1. – Nos presentes autos de recurso em que é recorrente J... e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO foi proferida, em 28 de Outubro de 1998, uma decisão sumária no sentido de não se tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade apresentado por J... por se ter entendido que a decisão recorrida não aplicara as normas questionadas com o sentido inconstitucional que o recorrente lhes atribui.
Escreveu-se nessa decisão o seguinte:
'Assim, o recorrente entende que o STJ fez uma interpretação restritiva do artigo 2º, nº1, do Decreto-Lei nº 43/91, ao considerar que tal preceito não permitia 'sindicar' os elementos que transitaram da parte administrativa do processo para a sua fase judicial.
Note-se que o recorrente, embora não forneça qualquer interpretação específica para as normas dos artigos 21º, nº1, alínea f) e 47º, alínea f), ambas do referido decreto-lei, parece considerar que devia ser aqui utilizada a interpretação que refere para o artigo 2º, por entender que também quanto a estas normas o STJ terá feito uma interpretação restritiva. De facto, a interpretação do artigo 2º influencia e condiciona a que o recorrente faz de todos os outros artigos, uma vez que nesse entendimento as normas do diploma devem ser ‘lidas’ de acordo com os princípios nele consignados.
Relativamente aos artigos 15º, nº1 e 36º, nº1, do mesmo diploma, o recorrente entende que o STJ deu prevalência aos critérios estabelecidos no artigo 36º em detrimento dos fixados no artigo 15º, interpretando os mesmos ao ‘contrário’, e não conjuntamente.
Quanto ao artigo 17º, nº2 do Decreto-Lei nº 43/91, o recorrente entende que o STJ fez da norma uma interpretação restritiva, nomeadamente da sua parte final, em contrário do estabelecido no artigo 2º do diploma.
Segundo o recorrente, as interpretações normativas referidas são inconstitucionais por violarem o princípio das garantias de defesa constante do artigo 32º, nº1 da Constituição.
9. - Mas, terão as normas em causa sido aplicadas na decisão com o referido sentido inconstitucional que o extraditando e recorrente lhes atribui?
Vejamos.
9.1. - Desde logo, não se descortina que a decisão recorrida tenha feito qualquer interpretação e aplicação inconstitucional do artigo 2º, nº1, do Decreto-Lei nº 43/91, que se limita a estabelecer o âmbito da cooperação, assinalando as finalidades a que deve subordinar-se o diploma: protecção da soberania, da segurança e da ordem pública e outros interesses da República, constitucionalmente definidos.
Como o artigo 2º, no entender do recorrente, é uma norma à luz da qual as outras devem ser ‘lidas’ ela será aplicada na decisão apenas e tão somente na medida em que as outras normas o tiverem de facto sido e não com qualquer autonomia.
Acresce que, de acordo com o nº3 do preceito em questão 'o presente diploma não confere o direito de exigir qualquer forma de cooperação internacional em matéria penal'. Com efeito, 'os requisitos comuns a todas as formas de cooperação relevam do direito internacional público, correspondendo, salvo casos muito limitados, a sua apreciação ao Governo, como sujeito de relações internacionais, e por isso sem recurso das respectivas decisões'
(preâmbulo do Decreto-Lei nº 43/91).
O diploma em apreço prevê para a extradição uma fase administrativa e uma fase judicial, sendo a primeira destinada à apreciação do pedido, para efeito de o Governo decidir se ele pode ter ou não seguimento ou se deve liminarmente ser indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência, não havendo recurso da decisão que declara inadmissível o pedido de cooperação (artigo 22º).
O pedido de extradição, enquanto uma das formas previstas de cooperação dos Estados, uma vez admitido na fase administrativa passa para a fase judicial, da exclusiva competência do tribunal da Relação e destina-se a decidir, com audiência do interessado sobre o pedido de concessão da extradição por procedência das condições de forma e de fundo.
A decisão recorrida seguramente não aplicou esta norma com o sentido inconstitucional que o recorrente lhe atribui, desde logo, porque conforme resulta de diversos passos da decisão recorrida, esta se refere aos
'documentos que instruíram o pedido de extradição', não resultando da decisão em causa qualquer indício de ali se ter feito a interpretação restritiva que o recorrente considera inconstitucional.
9.2. - Quanto aos artigos 21º, nº1, alínea f) e 47º, alínea f), do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, - normas cuja interpretação que o recorrente considera inconstitucional entronca directamente e se funde com a anteriormente referida, é manifesto que o STJ também não aplicou tais normas com tal interpretação.
A questão suscitada relativamente aos artigos citados e que o recorrente entende que devem ser ‘lidos’ conjuntamente, reporta-se à
'indicação do texto das disposições legais aplicáveis no Estado que formula o pedido de cooperação internacional' (artigo 21º, nº1, alínea f), e ao fornecimento de 'cópia dos textos legais relativos à possibilidade de recurso da decisão ou de efectivação do novo julgamento no caso de condenação em processo de ausentes.'
Segundo o recorrente e extraditando, estas normas não podem deixar de ser interpretadas por forma a que os tribunais na fase judicial da extradição possam não só pronunciar-se sobre a validade dos elementos referidos, como também exigirem a junção dos elementos necessários para salvaguarda do direito de defesa do extraditando.
Ora, o STJ entendeu que a exigência da documentação a que se referem as normas em causa (textos legais relativos à possibilidade de recurso da decisão ou de efectivação de novo julgamento), 'só se aplica ao caso de já ter sido proferida contra o extraditando ‘condenação em processo de ausentes’, o que não acontece no caso em apreço. Assim sendo, não se verifica a hipótese de aplicação do sentido inconstitucional das normas em causa.
9.3. - Quanto aos artigos 15º, nº1 e 36º, nº1, ambos do Decreto-Lei nº43/91, o recorrente entende que a decisão recorrida em vez de interpretar conjuntamente as duas disposições, fez prevalecer uma interpretação que aplicou os princípios contidos na segunda daquelas normas ao contrário do que considera correcto e melhor se coaduna com os princípios do artigo 2º, nº1, do mesmo diploma.
Também aqui parece claro que o STJ não utilizou, na decisão recorrida, as normas questionadas com o sentido que o recorrente e extraditando considera inconstitucional.
Com efeito, o que decorre sem margem para quaisquer dúvidas, do acórdão recorrido, é que o STJ considerou que não existia, no caso, qualquer concorrência de pedidos de extradição.
Escreveu-se efectivamente na decisão recorrida:
'Na verdade, como já atrás deixámos referido, sem embargo de a extradição do recorrente haver sido solicitada pela Espanha e por Marrocos, na fase administrativa dos presentes autos, o Governo, perfilhando o parecer da Procuradoria-Geral da República constante de fls. 215, nos termos do art. 49, nº2, do Dec.-Lei nº 43/91, decidiu soberanamente (despacho de fls. 218), que o pedido de extradição feito pelo Reino de Marrocos - e só esse - podia ter seguimento. Em consequência, o pedido de extradição formulado pela Espanha foi ‘arquivado sem mais formalidades’ - nº4, do art. 50, do Dec-Lei nº 443/91. O MºPº, no cumprimento dessa decisão do Governo, veio a fls. 178 a 182 requerer que se concedesse a extradição do recorrente para o Reino de Marrocos, iniciando-se a fase judicial do processo de extradição. Em face daquela decisão do Governo e do requerimento de fls. 178 a 182 do MºPº, estava completamente arredada a hipótese de extradição para Espanha, sendo completamente descabida a pretensão do recorrente de ver concedida por este Supremo Tribunal a extradição para Espanha, já que nesta fase judicial apenas cabe apreciar e decidir se se verificam, ou não, os pressupostos da extradição solicitada nos termos em que o fez o Ministério Público'
É certo que a seguir a decisão faz referência ao texto do nº1 do artigo 36º do Decreto-Lei nº 43/91, mas depois do que se transcreveu, não pode deixar de se concluir que tal referência não passa de um mero «obiter dictum», pois ficou claro que o STJ não tratou a questão como um caso de
'pedidos de extradição concorrentes' ou de 'concurso de pedidos', que manifestamente afirmou não se verificar. Do que resulta que, de facto, os artigos 15º, nº1 e 36º, nº1 referidos, não foram utilizados como fundamentos normativos da decisão recorrida e, muito menos, com o sentido que o recorrente considera inconstitucional.
9.4. - Quanto ao artigo 17º, nº2 do Decreto-Lei nº 43/91, importa referir que o recorrente, nas suas alegações para o STJ suscita a questão da interpretação de tal norma em consonância com a do artigo 15º, nº1, do mesmo diploma (cfr. artigos 82 e ss, de tal peça), ou seja, é no âmbito do concurso de pedidos ou de pedidos de extradição concorrentes que surge tal norma.
Ora, tendo-se acabado de concluir que a decisão recorrida não aplicou qualquer das normas relativas ao concurso de pedidos de extradição, porque entendeu que tal não se verificava, não pode deixar de se reconhecer que o mesmo ocorre quanto à norma agora em causa, que nem sequer é referida expressamente em tal decisão e cuja factualidade é completamente alheia a tal decisão, não sendo tal norma fundamento decisório do acórdão recorrido, uma vez que também nada consta dos autos relativamente aos fundamentos denegatórios da cooperação internacional ali referidos.
10. - O recurso de constitucionalidade interposto - como é o caso dos autos - ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa ou do artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, tem de respeitar os seguintes requisitos para que se possa conhecer do seu objecto: (a) que a inconstitucionalidade das normas questionadas seja suscitada durante o processo e (b) que essas normas tenham sido aplicadas na decisão recorrida, isto é, que constituam um dos seus fundamentos normativos.
Não importa questionar neste momento o primeiro do referidos requisitos (isto é, a questão de saber se a questão de constitucionalidade foi adequadamente suscitada durante o processo).Mas, quanto ao segundo - o da aplicação das normas com o sentido inconstitucional que o recorrente lhes atribui - ele não se mostra verificado nos autos, como resulta da demonstração atrás feita, razão porque se não pode conhecer do recurso.'
2. – O Ministério Público em resposta à reclamação deduzida nos autos, veio dizer que 'não curou sequer o reclamante de cumprir o
ónus de impugnação da decisão reclamada, apontando os motivos ou razões da sua dissidência perante o decidido (...) pelo que deverá confirmar-se inteiramente a decisão proferida e procedendo naturalmente a absolutamente e fundamentada reclamação deduzida.'
3. – Efectivamente, o reclamante não indica no requerimento pelo qual apresentou a reclamação para a conferência, qualquer fundamento que implique uma modificação do decidido nos autos e que atrás fica transcrito.
Não sendo assim possível saber quais os fundamentos de divergência com a decisão proferida, tem a reclamação de ser indeferida, confirmando-se a decisão sumária proferida nos autos.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação e confirmar a decisão sumária de 28 de Outubro de 1998.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 Uc’s. Lisboa, 16 de Dezembro 1998 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa