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Proc. nº 205/97
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em Novembro de 1992, C..., Lda. deduziu oposição a uma execução fiscal, contra ela instaurada, por dívida ao Centro Regional de Segurança Social de Lisboa.
O Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa (1º Juízo) rejeitou liminarmente a referida oposição e condenou a oponente em custas, por despacho de 30 de Maio de 1994 (fls. 49). Tal despacho foi notificado à oponente e transitou em julgado, após o que o processo foi à conta.
C..., Lda. dirigiu então ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa um requerimento em que pediu apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de custas. O Juiz, considerando que o processo de oposição se encontrava findo e que o apoio judiciário pretendido pressupõe a pendência da causa, já que visa impedir que, por insuficiência económica, o requerente fique impossibilitado de fazer valer os seus direitos, indeferiu o pedido, ao abrigo do artigo 26º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro (despacho de
19 de Setembro de 1994, fls. 57).
2. Desta decisão foi interposto recurso de agravo por C..., Lda..
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 15 de Janeiro de
1997 (fls. 82) negou provimento ao recurso, com a seguinte argumentação:
'[...] 3.1. Ao dispor no artº 17º, nº 2, do DL nº 387-B/87-12-29 que o pedido de apoio judiciário pode ser formulado em qualquer estado da causa, o legislador exprimiu-se de modo a significar que tinha em mente dever ele ser deduzido enquanto a causa existisse, estivesse pendente. Ora após o trânsito em julgado de decisão que extinga a lide, continuará a existir materialmente um processo mas não mais uma causa. Por outro lado, ao mandar indeferir liminarmente esse pedido quando for evidente a improcedência da pretensão do impetrante na causa para a qual o apoio é solicitado, o artº 26º, nº 2, do citado diploma também está a pressupor que a causa ainda esteja então pendente, pois constituiria um ilogismo que, após decisão transitada em julgado – que é, salvo revisão, intocável e indiscutível
–, o tribunal fosse chamado a reapreciá-la para decidir se era evidente ou não a sua improcedência.
3.2. À mesma conclusão chegamos se partirmos em busca do espírito da lei, designadamente dos objectivos por ela visados. Com efeito o artº 1º, nº 1, do referido decreto-lei – que visa efectivar, nesse específico domínio do apoio judiciário, a garantia de acesso aos tribunais consagrada no artº 20º da Constituição – define como seu objectivo 'promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos', fazer valer ou defender os seus direitos. Esse objectivo é, pois, o de evitar que, designadamente por insuficiência de meios económicos, alguém veja coarctada a possibilidade de recorrer a tribunal para defesa dos seus direitos e interesses legítimos. Ora em casos como o dos autos, em que a interessada veio efectivamente defender em juízo a sua posição e a causa está julgada por decisão transitada, sendo essa já a situação no momento da formulação do pedido de apoio judiciário, não se verificam os pressupostos que, segundo o legislador, justificariam a sua concessão, pois esta não visaria ultrapassar qualquer dificuldade ou impossibilidade dessa interessada em recorrer ao tribunal.
3.3. Conclui-se que improcedem as conclusões da minuta de recurso e que a instância não violou qualquer das normas que ali se apontam como infringidas, antes decidiu correctamente ao indeferir in limine, ao abrigo do nº 2 do artº
26º do DL 387-B/87, o pedido de apoio judiciário em apreço.'
3. C..., Lda. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de
29 de Dezembro, por violação dos artigos 20º, 2º, 13º e 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa .
Notificada, ainda no Supremo Tribunal Administrativo, para 'indicar concretamente em que lugar(es) das suas peças processuais, designadamente de fls. 59-61 arguiu a inconstitucionalidade de qualquer norma', a C... respondeu que 'arguiu, de facto, a inconstitucionalidade da norma objecto do presente recurso, e fê-lo logo no requerimento de interposição de recurso de agravo, da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância, que indeferiu o pedido de apoio judiciário apresentado pela requerente'.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 94.
4. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações.
A recorrente concluiu assim as suas alegações:
'[...] c) A tempestividade do requerimento da C... avalia-se pelo disposto no artº 17º, nº 2, do Dec.Lei nº 387-B/87, de 29.12, que é clarividente ao afirmar que 'o apoio judiciário pode ser requerido em qualquer estado da causa'. d) Assim o não entenderam, porém, quer o tribunal Tributário de 1ª Instância, quer o Supremo Tribunal Administrativo, em recurso, que fizeram daquela norma uma interpretação restritiva, entendendo que o pedido de apoio judiciário deve ser deduzido na pendência da causa, e que esta só existe enquanto não houver decisão no processo, assim indeferindo o requerido pela C.... e) Este entendimento é frontalmente contrário ao que dispõe, desde logo, o artº
20º da Constituição, que consagra o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais. f) Mas ofende ainda directamente os artºs 2º ('A República Portuguesa é um Estado de direito democrático'), 13º (princípio da igualdade), e 205º, nº 2 ('Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos'), da mesma Constituição.
Por sua vez, a Fazenda Pública disse:
'– Carece inteiramente de razão a recorrente ao arguir a inconstitucionalidade por violação do nº 1 do artigo 20º da CRP, da interpretação que as instâncias fizeram do artigo 17º nº 2 do Dec. Lei nº 387-B/87 de 29/12;
– Com efeito, contrariamente ao que pretende a recorrente, após o trânsito em julgado da decisão final já a instância se encontra extinta nos termos da alínea a) do artigo 287º do CPC;
– Em consonância, o artigo 50º do Código das Custas Judiciais dispõe que as contas dos processos são elaborados após o trânsito em julgado da decisão final;
– E não pode ocorrer denegação de acesso ao direito quando o tribunal já se pronunciou sobre a causa, decidindo;
– Para os casos em que ocorra situação relevante de onerosidade do pagamento das custas, já na fase de pagamento podem os interessados socorrer-se da via do pagamento em prestações previsto no artigo 65º do Código das Custas Judiciais;
– O que não pode manifestamente considerar-se é que existe situação de pendência de causa após o trânsito em julgado da decisão. Termos em que não ocorre a invocada inconstitucionalidade devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido.'
5. Em consequência da alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator.
6. Nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi notificado à recorrente o parecer em que a relatora propunha que o Tribunal Constitucional não tomasse conhecimento do recurso, pelos seguintes fundamentos:
'O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada pela recorrente – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º, para que o Tribunal pudesse dele conhecer, seria necessário que a recorrente tivesse suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma tivesse sido aplicada no julgamento da causa, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade. Ora a recorrente não suscitou, durante o processo, de forma clara e perceptível, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Limitou-se a referir, no requerimento através do qual interpôs recurso de agravo da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância – a peça processual em que a recorrente afirma ter suscitado a questão de inconstitucionalidade – que
'[...] tem de entender-se [...] que este momento posterior pode prolongar-se até ao termo do prazo em que é facultado ao interessado reagir à conta de custas.
[...] A proceder-se de outra forma estaria a sonegar-se um direito – o direito à protecção jurídica – àqueles (pessoas colectivas incluídas) «que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para (...) custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial» – artº 7º do normativo citado [o Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro]' e, nas conclusões desse mesmo requerimento, que
'[...]A entender-se de outro modo, com o fundamento de que a causa em apreço estava finda e, portanto, o pedido foi intempestivo, estaria a restringir-se o alcance e os objectivos consignados no já referido DL nº 387-B/87, maxime os seus artºs 1º, 7º, 15º e 22º [...].' Ainda que se queira ver nas expressões transcritas a invocação implícita de um problema de inconstitucionalidade normativa, tal problema não pode ser reportado a uma norma determinada e muito menos à norma que a recorrente agora impugna, constante do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, sendo certo que essa disposição não era sequer citada em tal requerimento, nem constituiu o fundamento da decisão de que a recorrente então interpunha recurso
(o despacho da 1ª instância, de 19 de Setembro de 1994, que indeferiu o pedido de apoio judiciário nos termos do artigo 26º, nº 2, daquele diploma). Só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional a recorrente afirma que o 'recurso ora deduzido funda-se na inconstitucionalidade da norma aplicada nas decisões jurisdicionais, de 1ª instância e de recurso, que indeferiram o apoio judiciário que a aqui recorrente oportunamente apresentou – o artº 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29.12, por violação dos artºs
20º, 2º, 13º e 205º, nº 2, da CRP'. Mas esse já não era o momento adequado para suscitar uma questão de constitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão – o que, salvo casos excepcionais e anómalos, apenas acontece quando o problema é colocado antes de ser proferida decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade. Além disso, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada 'de forma clara e perceptível' (cfr. acórdão nº 560/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., p. 97 ss), isto é, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir (cfr. acórdão nº
269/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1165 ss). Subjacente a tal exigência do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82 está a ideia de que, antes de o Tribunal Constitucional se pronunciar em recurso
(isto é, para reexame) de uma questão de constitucionalidade, é necessário que essa questão tenha sido apresentada ao tribunal a quo para este sobre ela previamente formular um juízo que o Tribunal Constitucional possa sindicar. No presente processo, a circunstância de o Supremo Tribunal Administrativo ter invocado no acórdão recorrido o artigo 20º da Constituição – circunstância que a recorrente pretende aproveitar para demonstrar que suscitou a questão de constitucionalidade durante o processo – não significa que aquele tribunal tenha tomado posição quanto à constitucionalidade da norma que a recorrente agora vem questionar. Na passagem do acórdão referida pela recorrente (nº 3.2, fls. 86), o Supremo Tribunal Administrativo pretendia delimitar o sentido e alcance do artigo 1º, nº 1, do Decreto- -Lei nº 387-B/87, relacionando o instituto do apoio judiciário com a garantia de acesso aos tribunais consagrada no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. Através do presente recurso de constitucionalidade, a recorrente pretende afinal obter um novo julgamento da matéria discutida no processo. Ora, como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, uma decisão judicial não é uma norma, pelo menos no sentido em que o termo é usado no artigo
280º da Constituição da República Portuguesa. O controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade. As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo. Não tendo sido suscitada pela recorrente, de modo processualmente adequado, a questão da constitucionalidade do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, conclui-se que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso.'
7. Respondeu a recorrente, sustentando fundamentalmente que 'a questão de inconstitucionalidade alegada pela recorrente trazia implícita a alegação da inconstitucionalidade do art. 17º, nº 2, do DL 387-B/87' (fls. 128) e que o benefício do apoio judiciário não deve ser concedido apenas enquanto exista uma causa pendente, isto é, enquanto exista uma causa não decidida por sentença transitada em julgado (fls. 132 a 136).
II
8. A resposta da recorrente não abalou a exposição-parecer da relatora.
O recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter por objecto a apreciação da norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos recorrentes durante o processo e que tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Ora, nestes autos, a recorrente não suscitou, de modo processualmente adequado, a questão da constitucionalidade do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro. III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa,28 de Abril de 1999- Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa