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Proc.Nº 422/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - J..., A... e JA... vieram deduzir contra M..., no
âmbito de um processo penal arquivado por amnistia, um pedido de indemnização cível que veio a ser rejeitado por despacho do senhor Juiz do 3º Juízo Criminal de Lisboa.
Não se conformando com tal decisão, resolveram os requerentes interpôr recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso este que foi julgado sem efeito ao abrigo do preceituado no artigo 192º do Código da Custas Judiciais (adiante, CCJ), tendo então os recorrentes alegado justo impedimento, o que veio a ser recusado. Novamente interpuseram recurso para a Relação que, por acórdão de 4 de Junho de 1997, decidiu, quanto a esta matéria, recusar a aplicação da norma do referido artigo 192º do CCJ com fundamento na sua inconstitucionalidade.
É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso de constitucionalidade , ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, recurso restrito à apreciação da inconstitucionalidade da referida norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais (entretanto revogado).
2. - Neste Tribunal quer o Ministério Público quer os recorridos alegaram.
O Ministério Público formulou nessas alegações as seguintes conclusões:
'1º A especificidade da hipótese dos autos - reportada à aplicação da norma do artigo 192º do Código das Custas Judiciais no âmbito do processo de adesão e em possível detrimento da parte activa, o lesado que pretende ser ressarcido - reveste manifesta autonomia relativamente aos casos que originaram a jurisprudência firmada na esteira do acórdão nº 575/96 deste Tribunal.
2º A 'cisão' da norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais em dois segmentos ideais - um aplicável apenas ao arguido condenado quanto à matéria penal, outro aplicável aos restantes sujeitos do processo penal, incluindo as partes civis no processo de adesão - é susceptível de afrontar o princípio constitucional da igualdade, ao sujeitar o lesado que pretende efectivar o seu direito à indemnização a um gravoso e desproporcionado efeito cominatório - quer em relação ao arguido, quer em relação às partes numa acção cível autónoma - sem que se vislumbre fundamento material suficiente para esse tratamento discriminatório.
3º Termos em que deverá, salvo melhor opinião, proceder o presente recurso, embora por fundamento diverso do apontado na decisão recorrida.'
Também os recorridos formularam conclusões, que a seguir se transcrevem:
'1ª A validade das leis depende da sua conformidade com a C.R.P., sendo os preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdade e garantias directamente aplicáveis (V. Artsº 13º, nº 3 e 18º, nº 1, da C.R.P.), devendo ter-se em atenção que a lei ordinária só poderá restringi-los em casos muito excepcionais previstos na C.R.P. (V. Artº 18º, nºs 2 e 3).
2ª Por outro lado, os Tribunais não devem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição e os princípios nela consignados (V. Artº
207º e 277º, nº 1, da C.R.P.).
3ª Ora, o Artº 192º, do C.C.J., limita gravemente o acesso ao direito e aos Tribunais por parte dos cidadãos na defesa dos seus direitos e interesses legítimos, assumindo autêntico carácter de denegação de justiça, violando o nº
1, do Artº 20º, da C.R.P., conjugado com o princípio da igualdade consagrado no nº 1, do seu Artº 13º, com o disposto no nº 2, do Artº 205º e com os princípios e garantias consagrados no Artº 32º, ambos, do C.R.P..
4ª Deste modo, o Artº 192º, do C.C.J., estabelece um regime cominatório, sem paralelo com todas as outras disposições do C.C.J., no caso da falta de pagamento da Taxa de Justiça em sete dias, impondo a perda do direito a ser apreciado o recurso por forma extremamente drástica, restritiva e denegadora da justiça, principalmente num ramo do direito (penal) em que existe toda uma preocupação constitucional de garantia e reforço dos direitos dos cidadãos (V. Artº 20º e 32º, da C.R.P.).
5ª Por outro lado, o Artº 192º do C.C.J., conjugado com o Artº 187º do mesmo diploma legal, constitui e assume o carácter de dupla tributação no caso dos recursos, sem paralelo no nosso direito e sendo grave limitação no acesso ao direito e aos tribunais, violando o princípio da igualdade material previsto no nº 1, do Artº 13º da C.R.P., em que se integra o disposto no seu Artº 20º, nº 1.
6ª Se a 'ratio' do Artº 192º do C.C.J. é a celeridade processual inerente ao processo penal também deve dizer-se que a 'aceleração' da protecção jurídica que se traduza em diminuição de garantias processuais e materiais (como
é o caso 'sub judice') pode conduzir a uma justiça pronta, mas materialmente injusta, o que não é, manifestamente, pretendido quer pelo Legislador Constitucional quer pelos Tribunais.
7ª Não são aceitáveis duas valorações diferentes para o Artº 192º do C.C.J., isto é, uma só aplicável ao arguido condenado quanto à matéria penal, a outra aplicável aos restantes sujeitos do processo penal, já que tal orientação viola o princípio constitucional da igualdade consagrado no Artº 13º da C.R.P..'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3. - A questão da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 192º do Código das Custas Judiciais foi objecto de várias decisões do Tribunal. No Acórdão nº 575/96 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 19 de Julho de 1996), julgou este Tribunal, conquanto por maioria, inconstitucional a norma constante do artº 192º do Código das Custas Judiciais
'na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso da sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido recorrente'.
A fundamentação de tal Acórdão assentou essencialmente nas seguintes ideias base:
a) a norma constante do artº 192º do Código das Custas Judiciais, de acordo com a anterior jurisprudência da Comissão Constitucional e do próprio Tribunal, só deveria ser tida por inconstitucional quando, por insuficiência de meios económicos, impedisse o seguimento da via de recurso aberta por lei;
b) A diversidade entre o regime prescrito naquela norma e o regime constante do artº 187º (que remete para o artº 110º, nº 1, ambos do Código das Custas Judiciais), por si só, não poderia ser perspectivada como ofensiva do princípio da igualdade, 'pois que não se trata de uma diferenciação discriminatória ou arbitrária, mas objectivamente justificada', dado que tal artigo se reporta ao pagamento de taxas de justiça devidas pela distribuição do recurso no tribunal superior e não ao pagamento de uma taxa de justiça devida pela interposição de recurso no tribunal a quo, o que significava tratar-se de situações distintas justificadoras de tratamento diferenciado;
c) Quanto à questão de saber se a norma do artº 192º do C.C.J. se não apresenta como excessiva no tocante à limitação do princípio de harmonia com o qual devem ser asseguradas todas as garantias de defesa, não seria por via de um 'paralelismo com o regime estipulado no processo civil que se fundamentará qualquer pretensão de excessiva sanção ou cominação processual, mas antes pela lógica e princípios intrínsecos ao processo penal, ou seja, concretamente, pela aplicação prática do artigo 32º da Constituição, naquilo que ele tem de vinculativamente orientador para o legislador';
d) Um tal princípio, que há-de postular que o 'Estado assegure aos cidadãos uma protecção e segurança efectivas perante o exercício do jus puniendi', compreendia necessariamente no seu núcleo o direito ao recurso das sentenças penais condenatórias, direito este que, todavia, se se não podia configurar como absoluto ou ilimitado - o que redundava em que o seu conteúdo podia, de modo mais ou menos amplo, ser tratado pelo legislador ordinário -, pressupunha um 'duplo grau de jurisdição no caso de sentenças penais condenatórias em matéria penal, para garantir que o arguido tenha à sua disposição de forma eficaz e efectiva, todas as garantias de defesa';
e) Não se vislumbra existir 'interesse constitucionalmente relevante que possa justificar uma tão acentuada compressão do direito ao recurso da decisão penal condenatória' como aquele que advinha da norma do artº 192º, ao determinar que, sem que o arguido fosse previamente advertido, a falta de pagamento da taxa de justiça implique ficar o recurso daquela decisão irremediavelmente sem efeito.
Verifica-se, assim, que o juízo de inconstitucionalidade levado a efeito no Acórdão nº 575/96 repousou unicamente na circunstância de a norma então em apreciação - na parte em que não prevê que se faça ao arguido, condenado por sentença numa determinada pena criminal e que dela pretenda recorrer, a advertência da cominação resultante do não pagamento, em prazo, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso - limitar excessivamente as garantias de defesa que defluem do artigo 32º da Lei Fundamental.
Assim, se se tratasse de uma sentença condenatória de carácter não penal, seria certamente diversa a solução a que chegaria o Tribunal partindo de tal entendimento. No caso de uma decisão condenatória de natureza cível e se, por hipótese, o respectivo regime de recurso, no tocante à taxa de justiça devida pela respectiva interposição, tivesse de obedecer a uma norma de teor semelhante ao do artº 192º, certamente a falta de advertência da «parte» condenada poderia não conduzir a um juízo de inconstitucionalidade em nome das garantias de defesa ínsitas no citado artigo 32º.
O que significa que a argumentação em que se sustentou o mencionado Acórdão não poderia, por si e no exemplo dado, servir para sustentar um eventual juízo de inconstitucionalidade.
No caso em apreço, trata-se de um processo de adesão em que está em causa a situação processual do demandante e não a situação do responsável civil demandado, pelo que a conclusão a que se chegou no acórdão que vimos seguindo de perto se encontraria reforçada.
Com efeito, a questão em apreciação consiste em saber se, conferindo a lei processual penal ao demandado civilmente uma posição processual idêntica à do arguido
(conquanto - vide artº 74º, nº 3 - tão só quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo), se justificava ou, se se quiser, haveria razões com fundamento bastante para, depois do juízo de inconstitucionalidade operado pelo Acórdão nº 575/96, dar um tratamento diferente ao demandado e tendo como foco a norma em crise, sob pena de, dando-se esse diverso tratamento, se violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
E é sobre este ponto que se escreveu o seguinte no Acórdão nº 269/97:
'Efectivamente, são realidades necessariamente diferentes
- e, no que agora releva, para efeitos de garantias constitucionalmente consagradas - os direitos que, em nome delas, devem ser conferidos em processo penal aos arguidos (e que, vinculativamente, se hão-de impôr ao legislador ordinário) e aos demais intervenientes nesse processo, nomeadamente os responsáveis meramente civis que, por essa qualidade, são «demandados em adesão». Para estes não visou o legislador constituinte erigir garantias de defesa em processo penal, sendo que, de todo o modo, isso não é, nem pode ser, obstáculo a que o legislador ordinário, no exercício da sua liberdade de conformação normativa, possa, se o entender, dar àqueles responsáveis um
«estatuto» semelhante ao que detém o arguido (cfr. Acórdão deste Tribunal nº
611/94 no Diário da República, 2ª Série, de 5 de Janeiro de 1995).
E, neste particular, há que realçar que, de todo o modo, a pretensa «equiparação» ou «identidade» processual que se extrai do teor do nº
3 do artº 74º do Código de Processo Penal não pode ter uma abrangência tal que imponha semelhantes juízos de compatibilidade constitucional como aqueles que venham a ser formulados (ponderando as garantias de defesa do arguido em processo criminal) quanto às condicionantes fiscais tocantes à interposição de recurso (aquela norma, de facto, apenas comanda uma «identidade» entre a posição processual do arguido e a do demandado civilmente quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo).'
Assim, não sendo a justiça gratuita e não vindo pedido e concedido o apoio judiciário, o ficar irremediavelmente sem efeito o recurso interposto em acção decorrente de pedido de indemnização em processo penal, por falta de pagamento, em sete dias, da taxa de justiça - no valor único de 3000$00 por requerente -, sem que o recorrente seja previamente advertido dessa cominação, não é uma sanção desproporcionada, excessivamente onerosa ou arbitrária, quando esteja em causa a situação processual do demandante (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº 409/94, in 'Diário da República', IIª Série, de 5 de Setembro de 1994).
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 192º, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44.329, de 8 de Maio de 1962 (entretanto revogado), enquanto estabelece que a falta de pagamento pelo demandante no prazo de 7 dias, no tribunal da 1ª instância, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso em processo cível de indemnização conexo com processo penal, entretanto arquivado, tem como efeito irremediável que o recurso fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao recorrente, e, em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada para ser substituída por outra conforme com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Junho de 1998 Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida