Imprimir acórdão
Processo n.º 249/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O réu A. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (doravante Lei do Tribunal Constitucional ou LTC), do despacho de 21 de novembro de 2013, proferido pelo relator no Supremo Tribunal de Justiça, que não lhe admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional.
Sustenta que o recurso deve ser admitido, com os seguintes fundamentos:
«A questão posta à consideração do tribunal ad quem, que, para nós, constituiu verdadeira novidade em tal matéria, é tão só a de saber, na observância do elenco dos requisitos de que depende a validade - ou não - dos recursos interpostos para esta Alta Instância, se, no final de conclusões que se têm por prolixas e não apenas concisas, a referência feita nos respetivos números 64º e 65º veste pelo figurino da vaguidade ou se, ao invés, cumpre o determinado, ficando para depois, seja, para as alegações de recurso a apresentar em tempo processualmente côngruo, a escalpelização das razões pelas quais a interpretação dada às normas postas em causa colide com os preceitos e princípios constitucionais tidos por violados.
De facto, a não ser assim, repetir-se-ia em tal peça aquilo que se diria desde já, o que vai contra o princípio da limitação dos atos, previsto no artigo 130º da lei civil adjetiva.
Tendo para nós que o requerimento de interposição de recurso contém tudo quanto é legalmente exigível e não olvidando que, na circunstância, se não estava a escrever para leigos, antes, sim, um colégio qualificado de magistrados judiciais, roga-se a V;
Exas. que, no deferimento da reclamação, seja admitido o recurso ora recusado.»
2. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, dizendo:
«(…) 3. Veio então, A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
4. No requerimento identifica a questão de inconstitucionalidade da seguinte forma:
“Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 489º, nº 2 e 675º, ambos do Código de processo Civil e 279º, 333º, nº 1, 334º, 349º, 798º, 808º, nº 1, 1218º, 1220º, 1221º, 1222º, 1223º, 1225º e 1229º, todos do Código Civil, com a interpretação que lhes foi dada, por ação e (ou) omissão, naquele Acórdão, bem como no subsequente Aresto aclarador, tendo a questão da inconstitucionalidade sido suscitada, desde logo, nas alegações do recurso de revista.”
5. Ora, como nos parece evidente, no requerimento não vem definida qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, desconhecendo-se em absoluto qual a “interpretação dada” pelo Supremo Tribunal de Justiça.
6. Esta insuficiência ainda seria passível de ser corrigida, recorrendo-se ao disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6 da LTC.
7. Porém, no caso, a prolação do despacho-convite ali previsto, revelar-se-ia inútil, pela razão que, seguidamente, vamos referir.
8. O reclamante diz que a questão de constitucionalidade foi suscitada nas alegações do recurso de revista.
9. Ora, vendo essa peça processual, facilmente se constata que, quer no texto, quer nas conclusões, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, faltando, pois, esse requisito de admissibilidade.
10. O único momento em que é referida a constitucionalidade é nos artigos 64.º e 65.º das conclusões e para se dizer:
“64ª – Quanto à lei Fundamental, a decisão ora controvertida colide com os seus artigos 202º, nº 2 e 204º, atentando também contra os princípios do Estado de Direito (artigo 2.º, igualmente da CR) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao Direito e à Justiça (artigo 20º, ainda da CR),
65ª – Já que a confiança dos sujeitos processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, uma vez que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais – órgãos de soberania com competência para administrar a justiça – fazem dos seus próprios atos.”
11. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. Para a apreciação da presente reclamação, releva a seguinte evolução processual:
3.1. Na presente ação declarativa constitutiva e de condenação, com processo comum na forma ordinária, intentada por B. e esposa C. contra D., A. e esposa E., por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de junho de 2012, foram julgados totalmente improcedentes os recursos por eles interpostos, confirmando o despacho de 16 de fevereiro de 2011, que havia julgado improcedente a arguição de nulidade da ata de julgamento, e, bem assim, a sentença proferida em 18 de julho de 2011, que, inter alia, havia condenado o réu A. a eliminar, no prazo de 90 dias, um conjunto de defeitos apontados e condenado solidariamente os réus A. e esposa E. a pagarem aos autores a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, a contar da data da sentença e até efetivo e integral pagamento.
3.2. Inconformado o réu A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 20 de junho de 2013, negou a revista.
3.3. Requerida a aclaração e arguida a nulidade, por omissão de pronúncia, desta decisão pelo réu A., por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de setembro de 2013 procedeu-se à retificação de lapsos materiais e indeferiu-se a nulidade arguida.
3.4. O mesmo réu apresentou então recurso para o Tribunal Constitucional, em requerimento com o seguinte teor:
«A., recorrente nos autos supra referendados, não se conformando com o Acórdão de 20/6/2013, entretanto, objeto, além do mais, de pedido de aclaração já apreciado e decidido, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos (artigo 280º, nº 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa e 69º e s.s. da LTC);
O recurso é interposto ao abrigo do estatuído na al. b) do nº 1 do artigo 70º da lei nº 28/82, de 15 de novembro, na redação dada pela Lei nº 85/89, de 7 de setembro e pela lei nº 13-A/98, de 26 de fevereiro.
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 489º, nº 2 e 657º, ambos do Código de Processo Civil e 279º, 333º nº 1, 334º, 349º, 798º, 808º nº 1, 1218º, 1220º, 1221º, 1222º, 1223º, 1225º e 1229º, todos do Código Civil, com a interpretação que lhes foi dada, por ação e (ou) omissão, naquele Acórdão, bem como no subsequente Aresto aclarador, tendo a questão da inconstitucionalidade sido suscitada, desde logo, nas alegações do recurso de revista.
A mencionada interpretação colide com o disposto nos artigos 202º, nº 2 e 204º, ambos da Constituição da República Portuguesa, atentando também contra os princípios do Estado de Direito (artigo 2º da Lei Fundamental) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito e à justiça (artigo 20º da CRP), já que a confiança das partes processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, uma vez que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais - órgãos de soberania com competência para administrar a justiça - fazem dos seus próprios atos.
Requer-se, pois, que o recurso em causa seja considerado interposto pela apresentação deste requerimento e, por legal e tempestivo, admitido com a espécie, efeito, local e regime de subida que ao caso competir.»
3.5. Em 21 de novembro de 2013 o relator do Supremo Tribunal de Justiça proferiu a decisão reclamada, de não admissão do recurso, com o seguinte teor:
«1. Do acórdão proferido a folhas 1591 e seguintes e depois de pedir aclaração e reclamar, sem sucesso, para a conferência, vem o réu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15.11.
Visa a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 489.º, n.º 2, 657.º, ambos do Código de Processo Civil, 279.º, 333.º, n.º 1, 334.º, 349.º,798.º, 808.º, n.º 1, 1218.º, 1220.º, 1221.º, 1222.º, 1223.º, 1225.º e 1229.º, todos do Código Civil, 'com a interpretação que lhes foi dada, por ação e (ou) omissão naquele Acórdão, bem como no subsequente Aresto aclarador'.
2. Este recurso tem como pressuposto o exigido pela alínea b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 280.º da CRP, ou seja, que o tribunal tenha aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Este pressuposto pode ceder em casos em que o tribunal, 'ex novo', aplica uma norma tida por inconstitucional. O que compreende, porquanto a novidade impediu a parte de suscitar a questão da constitucionalidade.
No presente caso, todavia, não teve lugar qualquer aplicação 'ex novo' de normas por parte do tribunal.
3. Nos números 64.º e 65.º das conclusões das alegações da revista, o recorrente alude, efetivamente, à colisão da decisão com os artigos 2.º, 20.º, 202.º, n.º 2 e 204.º da CRP:
Mas trata-se duma alegação vaga, não reportada diretamente aos preceitos do Código Civil que se pretendem atingir com o recurso agora interposto para o Tribunal Constitucional.
Por isso, entendo que não se verifica o apontado pressuposto.
4. De qualquer modo, em todos os casos agora referidos para fundamentar o recurso para o TC, o tribunal seguiu caminhos interpretativos que claramente não beliscam qualquer das invocadas disposições constitucionais.
Observou-se sempre o que resulta do Estado de Direito, do regime de acesso ao direito - nomeadamente com garantia de a parte ser ouvida antes da decisão e de as partes serem tratadas em regime de igualdade - e não deixou o tribunal de aplicar o Direito conforme entendimento que, seguramente, não colide com qualquer norma constitucional.
Assim, considero o recurso seja manifestamente infundado, nos termos do artigo 76.º, n.º 2, parte final, da mencionada Lei do Tribunal Constitucional.
5. Face a todo o exposto, não admito este.
Custas pelo recorrente.»
4. Decorre do exposto que o ora reclamante pretende impugnar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, peticionando a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 489.º, n.º 2 e 657.º, ambos do Código de Processo Civil e dos artigos 279.º, 333.º, n.º 1, 334.º, 349.º, 798.º, 808.º, n.º 1, 1218.º, 1220.º, 1221.º, 1222.º, 1223.º, 1225.º e 1229.º, todos do Código Civil, com a interpretação “que lhes foi dada, por ação e (ou) omissão, naquele Acórdão, bem como no subsequente Aresto aclarador”.
5. Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no despacho reclamado que o reclamante não suscitou perante o tribunal recorrido de forma processualmente adequada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC, para que assista legitimidade ao recorrente.
Com inteira razão.
6. Com efeito, o segmento da motivação do recurso de revista em que se faz menção a desconformidade com a Constituição não comporta qualquer concretização de questão de inconstitucionalidade, remetendo vagamente para “inconstitucional interpretação” e para a aplicação de “todas as disposições legais citadas”. Lê-se nas conclusões 29ª, 63.º e 64ª, as únicas em surge referência a infração constitucional:
«29.ª- A decisão assim posta em crise fez errada e até inconstitucional interpretação e (ou) aplicação, por ação e (ou) omissão, além do mais, de todas as disposições legais citadas ao longo desta peça e aqui tidas por reproduzidas e integradas.
(…)
63.ª- Também nesta segunda questão o Acórdão sob censura fez errada e até inconstitucional interpretação e (ou) aplicação, por ação e (ou) omissão, além do mais, de todas as disposições legais citadas, que no corpo da presente alegação, quer nestas conclusões, de conteúdo aqui tido por reproduzido e integrado.
64ª – Quanto à Lei Fundamental, a decisão ora controvertida colide com os seus artigos 202º, nº 2 e 204º, atentando também contra os princípios do Estado de Direito (artigo 2.º, igualmente da CR) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao Direito e à Justiça (artigo 20º, ainda da CR).»
Perante esta formulação impõe-se considerar, com clareza, que o reclamante não identificou minimamente perante o Tribunal a quo qualquer questão de inconstitucionalidade, o que carece de ser feito através da enunciação de concreto sentido normativo, reportado a preceito especificado, ou à conjugação de vários preceitos legais, que tinha por violador da Lei Fundamental, e que, por esse motivo, não deveria(m) ser aplicado(s). Nada disso se encontra na motivação do recurso dirigido ao STJ: não se especifica qualquer preceito legal; não se aponta o sentido ou dimensão normativa que nele se aloja e que não deveria ser aplicado; como, ainda, não se apontam quais as razões que sustentam a conclusão de violação de parâmetros constitucionais com tal aplicação.
7. Na reclamação em apreço, o recorrente, ora reclamante, não defende verdadeiramente que respeitou o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade que sobre si incidia. Pretende apenas que tem ainda à sua disposição as alegações de recurso no Tribunal Constitucional, propondo-se aí “escalpelizar” as razões pelas quais a interpretação dada às normas postas colide com preceitos e princípios constitucionais.
Porém, essa argumentação não encontra procedência, pois, nem o requerimento de interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional, nem, por maioria de razão, as alegações que pudessem vir a ter lugar, são idóneas a suprir a ausência de colocação em termos adequados de questão de constitucionalidade normativa perante o Supremo Tribunal de Justiça, de forma a que integrasse o elenco das questões a conhecer no acórdão recorrido.
Cumpre, então, assentar na ilegitimidade do recorrente e confirmar a decisão reclamada.
III. Decisão
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se, de acordo com a dimensão do impulso processual e o critério seguido neste Tribunal Constitucional, a taxa de justiça em 20 Ucs (unidades de conta).
Notifique.
Lisboa, 26 de março de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.