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Proc. nº 387/97 TC ? 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 V., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, concedendo provimento parcial ao recurso interposto de acórdão da 8ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, o condenou na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, cúmulo de três penas parcelares, duas de 25 meses de prisão pela prática de dois crimes de sequestro p. e p. no artigo
160º nº 1 do Código Penal (CP) e uma de 7 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de roubo p. e p. no artº 306º nº 1 do Código Penal de 1982.
O recurso vem interposto alegadamente ao abrigo dos artigos 70º nº 1 al. b) e 71º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
No mesmo requerimento de interposição de recurso, o recorrente indicou as normas vertidas nos artigos 361º, 368º nº 2 e 374º do Código de Processo Penal
(CPP) ? que implicitamente teriam sido aplicadas no acórdão impugnado ? como feridas de inconstitucionalidade por violação da norma e princípio constitucional constantes dos nº 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP), na redacção vigente à data da interposição do recurso (11/6/97).
Admitido o recurso por despacho de fls. 329, produziu o recorrente alegações, nas quais, conclui:
?1- Padecem da inconstitucionalidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, por violação do nº 1 do artigo 32º da CRP, as normas ínsitas nos artigos
361º, 368º - 2 e 374 ? 2, todos do CPP, na interpretação que lhe é dada pelo STJ no acórdão dos autos, no sentido de entender que estas normas do CPP não permitem a um Réu em processo penal reclamar de omissão de factos resultantes da discussão da causa que, por erro, lapso ou outro evento, o Juiz Presidente, no seu pessoal entendimento, entendeu não levar à votação e deliberação do Tribunal Colectivo, desde que tais factos não constem do texto do acórdão adoptado.
2 ? Padecem igualmente da inconstitucionalidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, por violação do nº 1 do artigo 32º da CRP, na interpretação que lhe é dada pelo STJ no acórdão dos autos, no sentido de entender que estas normas e o CPP não obrigam, em processo penal, o Juiz Presidente, após a discussão da causa, inquirindo o MP e o defensor, para que indiquem quais os factos resultantes da discussão da causa que entendem dever ser levados à votação e deliberação do Tribunal Colectivo.
3 ? Quanto à fixação de matéria de facto que há-de servir para a aplicação do direito criminal, em sede de processo penal, o actual regime do CPP é de tal maneira absurdo que nem as garantias de defesa previstas no artigo 653º - 4 e 5 do CPC e artigo 67º do CP Trabalho nele estão contempladas, acrescendo que neste tipo de processos o Juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, o que no processo penal não ocorre, daqui decorrendo a necessidade de maior intervenção do defensor para acautelar a verdade material.?
Em contra-alegações, o Ministério Público sustenta a improcedência do recurso, concluindo:
?1 ? Não pode inferir-se do princípio constitucional da plenitude das garantias de defesa, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa que dele decorre a necessidade de o tribunal colectivo formular ? previamente à decisão sobre matéria de facto ? ?quesitos? que englobem toda a matéria de facto que considere ?provada? e ?não provada?.
2 ? Sendo certo que, como vem decidindo reiteradamente a jurisprudência constitucional, o sistema de recursos em vigor no processo penal assegura as suficientes garantias de defesa do arguido no que se reporta à reapreciação pelo tribunal ?ad quem? da decisão proferida sobre a matéria de facto.?
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Notificado do despacho do recebimento da acusação contra ele deduzida pelo Ministério Público que lhe imputou a prática, em co-autoria material, de 2 crimes de roubo p. e p. no artº 306 nºs 1 e 5 do CP, o recorrente não apresentou contestação.
Em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, procedeu-se a julgamento na 8ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa.
Do acórdão condenatório extracta-se o seguinte passo:
?II ? Fundamentação:
?Da prova documental, das declarações dos arguidos e da prova testemunhal produzida resultaram os seguintes
Factos provados:
(segue-se a enumeração dos factos considerados provados)
Mais se provou:
- O arguido V.V. prestou confissão da apurada conduta, quanto a si respeita. Mostrou arrependimento.
- O arguido V. não prestou confissão, nem mostrou arrependimento.
- Trabalhava numa empresa há 4 dias ?à experiência? ? fls. 182 ? a ?Electro Reparadora?.
- Vivia com uma companheira, de 21 anos e que se encontrava grávida e é actualmente apoiada pelos seus progenitores.
- Foram recuperados os objectos dos ofendidos referidos a fls. 52.
- A ofendida C. estava grávida de 6 meses e ambas as ofendidas se mostram traumatizadas.?
Lido o acórdão, o recorrente requereu então:
?O Réu V. vem reclamar perante o Tribunal nos termos constantes do requerimento escrito que agora apresenta com cinco laudas e que por sincronia de tempo não se dita para a acta, solicitando-se que faça dela parte integrante, aqui se dando por reproduzida. Entrega um original e cinco cópias para as entidades presentes. Mais recorre desde já do douto acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso esse a subir de imediato nos próprios autos e com efeito suspensivo.?
Do requerimento citado, junto aos autos a fls. 245, transcreve-se o seguinte trecho:
? RECLAMAÇÃO
O R. V. em manifesto dissentimento pelo teor do douto acórdão quanto aos factos aduzidos em audiência que nele não constam, se não dão como provados e se dão como provados, reclama nos termos seguintes: Resulta do nº 2 do artigo 368º e nº 2 do artigo 374º, ambos do CPP e do nº 2 alíneas a) a e) do artigo 71º do CP que a sentença deve discriminar e especificar, nomeadamente ?todos os factos que resultarem da discussão da causa? em ordem à obtenção dos fins previstos no nº 2 do artigo 71º do CP, referindo-se os factos provados e não provados.
É elucidativo o facto do douto aresto não referir um único facto como não provado. Ao ler-se o douto aresto repara-se que praticamente nada do que foi apurado em audiência em favor dos RR se verteu para o mesmo, mormente os factos que demonstram que o roubo perpetrado consumiu o crime de sequestro ( se existiu ou não uso de violência desnecessária e exagerada para a efectivação do roubo) uma vez que dos factos que resultaram demonstrados em audiência, o crime de sequestro foi um crime?meio em relação ao de roubo que foi o crime fim (...)
São os seguintes factos que resultaram da discussão da causa, de cuja falta de inserção no douto acórdão se reclama:
Quanto ao Réu V. em concreto:
(Segue-se a indicação em números separados de determinados ?factos?, transcrevendo-se apenas os trechos terminais de cada número)
1 -...Logo o R. de algum modo confessou parcialmente a conduta de que vinha acusado.
2 - ...Mesmo que se considerem não provados estes factos deviam constar do douto aresto.
3 - ...Estes factos relevam para a determinação da culpa e da pena e deveriam constar do douto aresto.
4 - ...Estes factos são relevantíssimos para determinação da pena, da culpa e da confissão/arrependimento..
5 - ... Como não foi feita prova sequer da existência dos bens (facturas, recibos etc.) o douto aresto haveria que expressar que este R. não confessou ter retirado os bens que constam na acusação, mas menos.
6 - ... Esta factualidade não foi vertida para o douto acórdão e impunha-se que o fosse.
7 ? Nada se refere no douto aresto quanto à conduta posterior ao evento delituoso do R. Vítor.
Quanto ao depoimento das testemunhas do libelo acusatório:
(Segue-se a indicação do que o reclamante entende ter sido dito por testemunhas, transcrevendo-se apenas os trechos finais de cada número)
1 - ...Estes factos são importantíssimos para a questão do crime de roubo consumir o crime de eventual sequestro.
2 - ...
3 - ...São factos que abonam os sentimentos do RR manifestados na execução do evento em causa.
4 - ...Trata-se de matéria imprescindível à concreta determinação da medida da pena e da culpa
5 - ... Trata-se de matéria de interesse para se apurar da reparação das consequências do crime.
6 - ... Trata-se de matéria de importância capital para a determinação da pena e da busca da norma legal violada.
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........... Termos em que se deve julgar procedente a reclamação e rectificar o douto aresto com as legais consequências.?
Sobre este requerimento supra referido foi exarado despacho nos seguintes termos:
?A única via legalmente prevista para impugnar decisões proferidas pelo Tribunal Colectivo é o recurso.
A presente reclamação não tem qualquer fundamento legal nem pode o Tribunal Colectivo, por via dela, proceder a qualquer alteração do acórdão proferido, já que se encontra esgotado o seu poder jurisdicional.
Assim indefere-se ao requerido.
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Interpôs ainda o recorrente V. recurso para o STJ ?da decisão que não apreciou a reclamação apresentada no dia da leitura do acórdão?, apresentando na respectiva motivação as seguintes conclusões:
?(...) 1. O douto acórdão omitiu a factualidade apurada na discussão de causa em benefício do R. V. e que consta da reclamação que aqui se dá por integralmente reproduzida.
2. Dá-se aqui por reproduzido o teor do requerimento junto aos autos pedindo a revogação da prisão preventiva (matéria com interesse para a determinação da pena aplicável e eventual suspensão de execução da pena).
3. O julgamento feito padece de nulidade insuprível porquanto omitiu-se uma formalidade essencial que consistia em, perante a defesa e a acusação, antes do encerramento da discussão de causa, o Presidente obter dos intervenientes processuais os factos a ?quesitar?/especificar e a levar à votação do colectivo, que foram apurados na discussão de causa.
Tal nulidade acarretou a insuficiência da matéria de facto aduzida para o acórdão.
4. Na medida em que o CPP ? normas dos artigos 361º, nº 2 do artigo 368º e nº
2 do artigo 374º - não obrigam a essa formalidade essencial em processos que, por qualquer motivo, não exista contestação tais normas são inconstitucionais por violação do nº 1 do artigo 32º do CRP, o que se invoca.
5. Não se verificam os elementos constitutivos dos crimes de sequestro os quais, mesmo que se verificassem, conduziam a que o crime de roubo consumisse os de sequestro, uma vez que os RR. não usaram violência alguma ? muito menos excessiva ? antes colocando as vítimas na situação de não poderem reagir, sem excessos, pelo que deveriam ser absolvidos da prática destes crimes;
6. Por outro lado existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, pois que nem se provou que os bens indicados nos autos existissem quanto mais que tenham sido subtraídos pelos RR.
7. Os factos que deveriam ser apurados nos termos do nº 2, várias alíneas, do artigo 71º do CP, em audiência de julgamento - constantes da reclamação que aqui se dá por produzida , foram omitidos no douto acórdão ? que nem um facto dá como ?não provado?, pelo que se impunha a procedência da reclamação e a correcção material do douto acórdão.
8. A pena aplicada ao R. V. quanto ao crime de roubo ? 7 anos e 6 meses ? revela-se excessiva em face dos factos que na óptica da defesa deveriam integrar o aresto, pelo que tal pena deve fixar-se em 3 anos com suspensão da execução da pena.
9. Foram violadas as seguintes normas legais: nº 1 do artigo 32º da CRP, artigos 71º nº 2 e suas alíneas, nº1 do artigo 72º , 158º nº 2 alínea b) e
210º nº 2 alínea b), todos do CP; e artigos 361º, 368º nº 2, 374º nº 2 e 380º nº 1 alínea a), todos do CPP; pelo que deve absolver-se o R. dos crimes de sequestro e reduzir-se a pena do crime de roubo para 3 anos com suspensão da execução da pena pelo período máximo
(atentas as circunstâncias expressas na conclusão 2ª) ou quando assim não se entenda deve ordenar-se a repetição do julgamento com as formalidades essenciais que salvaguardem o direito à defesa, ou por último proceda o STJ a renovação de prova quanto a todos os factos insertos no teor da reclamação
(inserida na conclusão 1ª) visando apurar factos que demonstrem que o crime de roubo consumiu o de sequestro (não houve excesso ou violência excessiva ou outras circunstâncias) ouvindo-se as testemunhas C.e Dª C. e o marido desta, identificados nos autos; devendo, ainda, o marido de Dª C. esclarecer e provar por documentos ou outros elementos que os bens constantes de fls. 22/24 existiam e juntar recibo de indemnização recebida da seguradora e dizer quais os bens que foram recuperados, juntando, v.g. uma fotografia dos mesmos (...)?.
O STJ negou provimento ao recurso, por acórdão de fls.
310 e segs, de que se transcreve o seguinte passo:
?Como já acima ficou dito, o STJ apenas faz reexame da matéria de direito quando é interposto recurso para o mesmo salvo o disposto no artº 410º nºs 2 e 3. Já vimos também em que termos o recurso pode ter como fundamento a análise da matéria de facto enquanto erro notório na apreciação da prova.
Do texto da decisão recorrida, não resulta a existência de qualquer erro ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Daí que os factos a ter em consideração são, simples e unicamente, os que foram dados como provados.
Igualmente o arguido V. não apresentou contestação. Daí que não se possa fazer uma crítica sobre quais os factos, discutidos em audiência e em defesa do arguido, que se possam dar como provados. Por isso não tem qualquer fundamento legal o requerimento de fls. 245 a 249. Como poderia um tribunal de recurso apreciar a matéria de facto resultante da discussão da causa se sobre a matéria nenhuns elementos há nos autos ?
Dispõe o artº 118º nº 1 do CPP que a violação ou inobservância de disposição da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Determina o artº 361º do CPP que, findas as declarações, o presidente pergunta ao arguido se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa, ouvindo-o em tudo o que declarar a bem dela ? nº 1. E acrescenta o nº 2 que em seguida o presidente declara encerrada a instrução. Quer dizer: a lei não impõe, sob pena de nulidade, que antes de encerrar a discussão, o presidente enumere os factos resultantes da discussão da causa, a ter em consideração na deliberação que se segue. Aliás e como resulta do nº 2 do artº 369º do CPP, os factos a ter em conta e resultantes da discussão da causa, são apenas os que se provarem e que sejam relevantes para a solução das questões postas nas suas várias alíneas. Não se impõe uma referência a factos não provados. É a única solução lógica.
E não se diga que tais normas, por não sufragarem o ponto de vista defendido pelo recorrente, ofendem o disposto no nº 1 do artº 32º da CRP ?o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.?
Podia o arguido contestar, alegando aqueles factos que, em seu entender, integrariam circunstâncias que atenuariam a sua culpa ou a ilicitude. Não o fez. Apresentou o seu rol de testemunhas ? fls. 183 ? que foram ouvidas como se vê a fls. 222. Estes, sim, eram meios de defesa que a lei tinha que garantir ao arguido. Agora indicar, antes da deliberação, quais os factos que se iriam responder e que resultavam da discussão da causa é que nos parece não ser uma garantia da defesa. Só após a deliberação é que se poderá saber quais os factos que iram ser dados como provados, não se justificando, de modo algum relatar como ?não provados? situações resultantes da discussão da causa.
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................ Igualmente vimos já que os factos provados com os nºs 1 a 28 reproduzem toda a matéria da acusação. Era impossível, por isso, fazer referência nesse campo a factos não provados. Os restantes resultaram da discussão da causa. E, como é
óbvio, só há que ter em consideração, neste campo, aqueles factos que se julgam provados. O STJ apenas faz reexame da matéria de direito, a não ser que ocorra algum dos casos previstos no artº 410º nºs 2 e 3. E nenhum destes se verifica. Que factos com interesse poderiam resultar da discussão da causa para a decisão da mesma, após ter sido dada como provada toda a matéria da acusação e que o arguido, não só não confessara os crimes, como não mostrara arrependimento ? No entanto, mais alguns factos foram dados como provados e com interesse para a valorização da personalidade do arguido (...)?
3 . A questão que o recorrente suscita pode sintetizar-se nos termos seguintes:
Por força do artigo 368º nº 2 do CPP, o Tribunal deve deliberar e votar sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da discussão da causa.
Ainda decorrendo do mesmo preceito, é ao presidente que incumbe seleccionar esses factos - os que considera relevantes para responder às questões enumeradas nas alíneas a) a f) ? sem previamente os dar a conhecer à acusação e à defesa e facultar as reclamações julgadas convenientes.
Este procedimento que decorre ainda dos artigos 361º e 374º nº 2 do CPP
? em especial, reportado aos factos resultantes da discussão da causa ? ofenderia as garantias de defesa do arguido consignadas no artigo 32º nº 1 da CRP.
Será assim?
Algumas observações prévias se impõem sobre a perspectiva com que o recorrente enfoca a questão de constitucionalidade.
Ela transparece em diversos passos das suas alegações:
- ?Actualmente, em processo penal, é apenas o juiz Presidente no seu pleno arbítrio ? à revelia absoluta da acusação e da defesa que ?decide?(...) quais os factos que resultaram da discussão da causa que ?entende? serem relevantes para apurar as questões a que se alude no nº 2 do artigo 368º do CPP?.
-?Actualmente em processo penal, quanto aos factos apurados em audiência, o juiz-presidente leva a votação dos seus pares o que lhe aprover, o que entender e como entender (bem ou mal)...?
- ?(o R) está sujeito a que seja um só juiz ? no seu notável arbítrio (bem ou mal) ? a decidir os factos que hão-de ir à votação dos outros membros do Tribunal Colectivo...?
Ou seja, para o recorrente, as garantias de defesa do arguido resultariam lesadas não, em rigor, pela disciplina jurídica estabelecida pelos aludidos preceitos do CPP, mas por uma conduta do juiz-presidente de algum modo
?desviante? dos fins para que as normas processuais lhe conferem os poderes em causa .
Este não é, de todo, um ponto de enfoque correcto para apreciar a conformidade constitucional de uma norma.
Isto se disse no Acórdão nº 41/90 (in ?Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol. p. 151):
?Para aquilatar da constitucionalidade de uma dada norma legal, há-de partir-se da sua correcta aplicação e não de uma aplicação perversa ou para fins
?desviados?.
Por outro lado, do relatório supra resulta ainda que a inconformação do recorrente deriva mais do seu entendimento sobre os factos que deveriam ser julgados provados (resultantes da discussão da causa) do que da pretensa inconstitucionalidade das normas citadas, sendo certo que aquela é matéria subtraída aos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Por último, não se compreende que a suposta violação das garantias de defesa do arguido possa traduzir-se na falta de ?quesitação? de factos resultantes da discussão da causa ainda que, e só, para se deliberar que eles não foram provados, como o recorrente parece defender.
Na apreciação do tema a decidir, começa por se reconhecer que as normas citadas vieram estabelecer um regime diverso do que vigorava no âmbito do CPP de 1929.
Na verdade, os artigos 468º, 502º e 503º do diploma de 29 regulavam nos seguintes termos: Encerrada a discussão da causa, o presidente organizava um questionário sobre os factos e suas circunstâncias alegados pela acusação e defesa e que resultassem da discussão da causa.
O questionário era, depois, lido, podendo o Ministério Público e os advogados requerer o aditamento de novos quesitos ou a sua formulação ou ordenação de modo diverso. O colectivo deliberava sobre os requerimentos e só então o tribunal se retirava para deliberar sobre as questões formuladas nos quesitos. O Código vigente seguiu outro caminho. Ao encerramento da discussão segue-se logo a deliberação do tribunal, devendo o presidente submeter a essa deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que tiverem resultado da discussão da causa. Deixou, assim, de haver questionário (cfr. Maia Gonçalves ?Código de Processo Penal anotado?, 8ª ed., pág. 583) e, consequentemente, a possibilidade de a acusação e a defesa se pronunciarem sobre a matéria que será votada pelo colectivo. Ofenderá este regime, o artigo 32º nº 1 da CRP ?
A propósito deste preceito, escreveu-se no Acórdão nº 61/88 (in ?Acórdãos do Tribunal Constitucional? 11º vol., pág. 611):
?Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho ?reassuntivo? e
?residual? ? relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes desse mesmo artigo ? e, na sua ?abertura?, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente ?programático?. Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto inevitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter ?um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos de lei ordinária? (cfr. Figueiredo Dias, ?A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais?, p.
51 e Acórdão nº 164 da Comissão Constitucional, ?Apêndice ao Diário da República, I Série, de 31 de Dezembro de 1979). A ideia geral que pode formular-se a este respeito ? a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos nºs 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. Acórdão nº 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986)?
A síntese que assim se fez no aresto transcrito condensa o que, em muitos outros acórdãos subsequentes, o Tribunal Constitucional tem entendido sobre o artigo 32º nº 1 da CRP (cfr., os Acórdãos nºs 124/90, 170/94, 171/94, 172/94 e
429/95 in ?Acórdãos do Tribunal Constitucional?, 15º vol., págs. 407, 27º vol., págs. 345, 367, e 381 e DR, II Série, de 16/11/95, respectivamente).
Dela decorre o limite que a Constituição impõe ao legislador ordinário na conformação do processo penal ? o encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.
Ora, não pode deixar de se reconhecer que a eliminação do direito do arguido se pronunciar sobre a matéria de facto (os ?quesitos?) que virá a ser objecto de deliberação e votação do colectivo, especialmente no que concerne aos factos resultantes da discussão da causa, reduz a possibilidade de o mesmo arguido fazer alargar o âmbito temático que o colectivo ajuizará.
Mas tal redução não afecta as garantias de defesa do arguido em termos inadmissíveis.
Na verdade, o que ela unicamente determinará ? e para evitar os efeitos
?perversos? apontados pelo recorrente ? é um maior zelo da defesa, em especial no que respeita ao oferecimento de contestação, onde o arguido pode explanar toda a factualidade pertinente às questões enumeradas no nº 2 do artigo 368º do CPP e que, por esse motivo, deverá ser submetida ao veredicto do colectivo nos termos do mesmo preceito. Foi, aliás, esse zelo que o recorrente, no caso, não evidenciou, não apresentando contestação. E foi, também, tal conduta processual do arguido ? que só a si próprio se pode imputar ? que o levou a querer suprir a omissão através da alegação de uma pretensa factualidade supostamente resultante da discussão da causa e, depois, à suscitação da questão de constitucionalidade. De todo o modo, o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido não passa por um controlo totalizante da actividade jurisdicional desenvolvida ao longo do processo penal, designadamente na selecção dos factos (que virão, ou não, a ser considerados provados) relevantes para a decisão da causa. E se a questão se coloca por ser um juiz (o presidente) a indicar ao colectivo a matéria de facto sobre que há-de recair a deliberação e votação, sempre se dirá que o artigo 368º nº 2 do CPP não exclui que os participantes na deliberação proponham a ampliação da temática factual a decidir.
4. Decisão: Pelo exposto e em conclusão decide-se:
Não julgar inconstitucional, o complexo normativo formado pelos artigos 361º,
368º nº 2 e 374º do CPP, enquanto nele se não prevê a prévia quesitação de factos alegados pela acusação e pela defesa e resultantes da discussão da causa e, consequentemente, a sua reclamação;
Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 19 de Maio de 1998 Artur Mauricio Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida