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Proc. nº 302/93
1ª Secção Relatora: Consª. Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I
1. L..., identificado nos autos, interpôs junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, em 17 de Setembro de 1992, recurso de anulação do despacho do Director-Geral da Administração Escolar do Ministério da Educação, de 10 de Agosto de 1992, que indeferiu a reclamação por ele deduzida na sequência da exclusão da lista provisória de candidatos ao concurso de professores do ensino básico para o ano escolar de 1992/93. O recorrente alegou que o referido despacho padece do vício de violação de lei, por aplicação de norma inconstitucional, a saber, o artigo 42º, nº 1, do Decreto-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro. Esta disposição legal, que estabelece uma prioridade (4ª) aos candidatos casados com funcionários da Administração Pública ou com militares – a chamada preferência conjugal –, implicaria, na perspectiva do recorrente, uma discriminação, constitucionalmente proibida, dos filhos nascidos de união de facto em face dos filhos nascidos de relação matrimonial. Isto porque, ao não equiparar a união de facto ao casamento para efeitos de preferência conjugal, o legislador estaria, pelo menos indirectamente, a privilegiar uns em detrimento de outros, atentando contra o artigo 36º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como contra a jurisprudência constitucional (nomeadamente, o acórdão nº 359/91, publicado no Diário da República, I, de 15 de Outubro de 1991, p. 5332 ss).
2. Por sentença de 25 de Março de 1993, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa deu razão ao recorrente. Começando por fazer referência à alteração dos costumes e à flexibilização dos modos de constituição das relações familiares, o Tribunal retirou as seguintes consequências:
'A alteração constitucional introduzida em 1976 veio de facto alterar profundamente os fundamentos axiológicos imanentes à ordem jurídica, de tal modo que o próprio legislador comum se mostra ainda hoje algumas vezes inadaptado às novas circunstâncias e continua a raciocinar e a exprimir-se como se situado no regime jurídico antecedente em que os filhos nascidos de pais não casados tinham direitos inteiramente diferentes, no sentido da limitação em relação aos demais. Um exemplo desse modo de actuar parece-nos encontrar-se no disposto nos artºs
42º, nº 1 e 46º do DL 18/88, de 21.01, a propósito da preferência na colocação de professores em escolas que se situem na proximidade da residência familiar. Efectivamente, o texto do DL 18/88 refere-se sempre aos professores «casados» e
à «preferência conjugal», mas se nos detivermos a procurar qual o interesse que se visa proteger com estas disposições não há dúvida de que vamos encontrar o interesse da família seja ele qual for (de facto ou de direito), nesse interesse familiar relevando especialmente quando os haja, o interesse dos filhos, que devem crescer junto dos pais e não podem ser deles separados senão em casos muito graves (nº 6 do artº 36º). Portanto, no plano da sua axiologia contêm estes preceitos do DL 18/88 um amplo segmento de estatuição relativo ao interesse dos filhos. Diferente entendimento seria redutor da ideia de bem comum própria da normatividade porque os ditos preceitos não poderiam entender-se como protegendo apenas o interesse de os cônjuges se acharem junto um do outro e cumprirem assim o dever de coabitação, mas antes direccionados a permitir o melhor e mais amplo exercício do complexo feixe de direitos e deveres inerentes à situação familiar compreendendo o bem estar e a educação dos filhos. Como o escopo da norma é a protecção da família, incluídos os filhos, também os nascidos fora do casamento hão-de ser contemplados por esse benefício, mas a redacção dos mencionados artigos ao insistir na terminologia dos «professores casados» e dos «cônjuges» não é de molde a facilitar uma interpretação e aplicação conformes à constituição'.
Em conclusão, e invocando expressamente a orientação assumida pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 359/91, decidiu o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa que
'De harmonia com o exposto recusa-se a aplicação dos artºs 42º nº 1 e 46º do DL
18/88 na interpretação restritiva que exclui da preferência neles estabelecida os professores que sendo pais de filhos menores, mas não casados, convivam com os filhos e a companheira, mãe dos menores, em condições idênticas às dos cônjuges, por tais preceitos serem violadores do disposto no artº 36º nºs 4 e 6 da Constituição da República.'
3. O Ministério Público, nos termos dos artigos 280º, nº1, alínea a), e nº 3, da Constituição da República Portuguesa e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional. Nas suas alegações, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional começou por delimitar os preceitos constitucionais em causa, reconduzindo-os aos artigos 13º e 36º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, situando a questão do domínio do princípio da igualdade na sua vertente negativa – proibição de discriminação entre filhos nascidos de um matrimónio e filhos nascidos de uma união de facto. De seguida, confrontou a decisão objecto de recurso com o acórdão do Tribunal Constitucional que o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa invocou para reforçar o sentido da sua decisão: o acórdão nº 359/91. Neste aresto discutia-se a constitucionalidade de um assento do Supremo Tribunal de Justiça que decretou a impossibilidade de aplicação analógica do artigo 1110º do Código Civil – sobre a atribuição judicial do direito ao arrendamento da casa de morada da família –
às situações de união de facto em que haja filhos menores. O Tribunal Constitucional decidiu que o assento era inconstitucional por violação do princípio da não discriminação que deriva do artigo 36º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, mas essa decisão, de acordo com a tese do Ministério Público, teve por objecto mediato uma norma – o artigo 1110º do Código Civil – que indicava expressamente o 'interesse dos filhos' como um dos critérios que deveria servir de base aos tribunais quando confrontados com a questão da atribuição da casa de morada da família por ocasião do divórcio:
'A discriminação, violadora do princípio da igualdade de tratamento dos filhos, assentava deste modo, em o interesse dos filhos nascidos de mera união de facto não poder nunca – mesmo quando tal se revelasse materialmente fundado – influir na decisão sobre a atribuição do direito ao arrendamento ao progenitor a cuja guarda eram confiados, ao contrário do que ocorria quando tivesse existido uma relação matrimonial, em que o referido interesse dos menores era erigido em critério legal eventualmente condicionante da decisão a tomar acerca da transferência da posição contratual de arrendatária. Pelo contrário, como se referiu, na hipótese sobre que versam os autos, a ponderação do «interesse dos filhos» surge sempre como elemento totalmente estranho à aplicação das normas que dispõem sobre as «preferências conjugais» nas colocações, tidas como mera decorrência da invocação de uma situação matrimonial, revelando-se absolutamente indiferente ao funcionamento do dispositivo legal a existência de filhos, a sua menoridade e as condições concretas de vida do agregado familiar.'
Em conformidade com estas considerações, o Ministério Público concluiu pela procedência do recurso, com base em que:
'[...] Não implica tratamento discriminatório dos filhos nascidos fora da constância do matrimónio a circunstância de os respectivos progenitores, vivendo em união de facto, não poderem beneficiar de certos direitos ou faculdades que a lei apenas concede como decorrência de uma relação matrimonial pré-existente, sem que o interesse dos filhos seja considerado elemento juridicamente relevante no dispositivo legal em questão.'
4. Não se encontrando razões que obstem ao conhecimento do presente recurso, cumpre decidir.
II
5. O objecto do presente recurso é a questão da eventual violação do princípio da igualdade entre filhos nascidos de casamento e filhos nascidos de união de facto, o que implica uma leitura conjugada do artigo 36º com o artigo
13º da Constituição da República Portuguesa.
Na perspectiva do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a restrição da preferência conjugal às relações familiares baseadas no matrimónio operada pelas normas invocadas viola o artigo 36º, nºs 4 e 6, da Constituição da República Portuguesa. Por isso o tribunal decidiu recusar a aplicação das normas sobre a preferência conjugal na interpretação restritiva que exclui as situações de união de facto, em nome do interesse dos filhos. É desta decisão que o Ministério Público recorre, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
6. As normas cuja aplicação o tribunal recusou com fundamento em inconstitucionalidade, ambas do Decreto-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro, são do seguinte teor:
'Artigo 42º
1 – Na segunda parte do concurso previsto neste diploma os candidatos serão ordenados segundo as seguintes prioridades:
[...] Quarta prioridade: Candidatos professores do quadro com provimento definitivo casados com funcionários ou agentes do Estado e dos corpos administrativos ou com militares que, ao abrigo da preferência conjugal, requeiram a sua colocação nos termos do presente diploma.'
'Artigo 46º
1 – A colocação ao abrigo da preferência conjugal referida no artigo 42º deste diploma obedecerá às condições a seguir indicadas:
Consideram-se funcionários ou agentes os indivíduos que se encontrem
providos em lugares do quadro ou contratados além do quadro, por tempo
indeterminado, em serviços e organismos da administração central, regional
ou local, das Forças Armadas, da Administração Pública ou dos corpos
administrativos, os aposentados que, à data da sua aposentação, se
encontravam em qualquer das situações referidas nesta alínea e ainda os
professores que, de acordo com a lista definitiva de colocações, tenham
adquirido direito ao primeiro provimento como professores do quadro;
Ainda que ambos os cônjuges sejam professores do quadro, apenas um deles
poderá solicitar a sua colocação ao abrigo desta preferência;
Os candidatos poderão concorrer aos estabelecimentos de ensino situados a
menos de 30 km da residência familiar e ou do local de trabalho do cônjuge,
não podendo o número de estabelecimentos indicados exceder 50;
Os estabelecimentos referidos na alínea anterior serão do nível de ensino a
que o candidato pertence, considerando-se ainda, para este efeito e no caso
do ensino secundário, as escolas preparatórias onde funcione aquele ensino.
2 – Para efeitos da alínea c) do número anterior, o candidato não poderá concorrer a nenhum estabelecimento da mesma freguesia, vila ou cidade onde se situa aquele a cujo quadro pertence.
3 – Os professores que tenham adquirido direito ao primeiro provimento com nomeação definitiva, mediante lista de colocações, poderão beneficiar do direito
à colocação ao abrigo da preferência conjugal.
4 – Para efeitos de colocação ao abrigo da preferência conjugal, os professores dos quadros dos ensinos preparatório e ou secundário candidatar-se-ão nos termos definidos no aviso de abertura do concurso.'
7. As regras sobre preferência conjugal têm o seu antecedente no já longínquo Estatuto do Ciclo Preparatório do Ensino Secundário (Decreto nº
48.572, de 9 de Setembro de 1967, publicado no Diário do Governo de 1968, p. 345 ss) que, no artigo 331º, determinava:
'1. Podem ser colocados em comissão nas escolas de frequência feminina ou mista, com os vencimentos e regalias da sua categoria, professoras efectivas de outras escolas preparatórias, casadas, para prestarem serviço na localidade onde esteja colocado o cônjuge, quando as necessidades de serviço determinarem a chamada de professor provisório do respectivo grupo e o cônjuge seja, por ordem de preferência:
1º Professor efectivo do ciclo preparatório;
2º Professor efectivo ou do quadro de qualquer outro ramo ou grau de ensino, ou assistente do ensino superior;
3º Funcionário público, militar ou civil, cuja colocação dependa de ordem superior, não disciplinar, ou da orgânica dos serviços e possa ter duração superior a um ano.'
2. As referidas professoras serão abonadas pelo quadro da escola a que pertençam. Posteriormente, 'no âmbito de política geral de auxílio à família', o Governo decidiu alargar a preferência conjugal aos ensinos liceal e técnico. O artigo
único do Decreto nº 559/70, de 16 de Novembro, dispunha o seguinte:
'1. Podem ser colocadas em comissão, com os vencimentos e regalias da sua categoria, professoras dos quadros dos ensino liceal e técnico, casadas, para prestarem serviço na localidade onde esteja colocado o cônjuge, quando as necessidades de serviço determinarem a chamada de professor eventual ou provisório do respectivo grupo e o cônjuge seja, por ordem de preferência:
1º Professor do quadro do ramo de ensino a que pertencer a professora;
2º Professor do quadro de qualquer outro ramo ou grau de ensino;
3º Funcionário público, militar ou civil, cuja colocação depende de ordem superior, não disciplinar, ou da orgânica dos serviços e possa ter duração superior a um ano.
2. As referidas professoras serão abonadas pelo quadro da escola a que pertençam. Após a Constituição de 1976, o legislador, compreensivelmente, manteve esta orientação. Os artigos 1º, nº 1, alínea h), 11º e 12º do Decreto-Lei nº 373/77, de 5 de Setembro, determinaram a aplicação das regras da preferência conjugal à colocação de professores dos ensinos preparatório e secundário. De acordo com estes normativos, 'podem ser colocados na localidade onde esteja colocado o cônjuge [em regime de destacamento e por um ano], os professores, de ambos os sexos, efectivos, dos ensinos preparatório e secundário casados com funcionários públicos' (artigo 12º, nº 1). Estas colocações só poderiam efectuar-se 'em estabelecimento do nível ou ramo de ensino a que o professor pertencer' (artigo
12º, nº 3). Este regime sofreu ainda pontuais alterações introduzidas pelos Decretos- -Leis nºs 13/78, de 14 de Janeiro, 15/79, de 7 de Fevereiro, e 75/85, de 25 de Março, cujos artigos 3º, nº 1, alínea c), e 7º (o último com a redacção resultante da alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 50-A/87, de 29 de Janeiro) constituem a fonte próxima dos artigos 42º e 46º do Decreto-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro, em apreciação no presente recurso de constitucionalidade. Estes normativos têm por objectivo, em primeira linha, proteger a união dos agregados familiares constituídos por funcionários públicos, em que um dos membros do casal seja professor do ensino público (o 'auxílio à família' de que já se falava no Preâmbulo do Decreto-Lei nº 559/70, de 16 de Novembro). Estabelecendo a regra da preferência conjugal, o legislador facilita a aproximação dos membros da família, evitando situações de afastamento que podem ter influência negativa no equilíbrio dos membros do casal. Assim, pode afirmar-se que, numa primeira leitura, estas normas se destinam a promover a união e a convivência entre os membros do casal.
8. Num segundo momento, as normas podem revestir um alcance mais amplo, sem perderem o seu âmbito inicial, ou seja, além de protegerem a união do casal, promovem também, nos casos em que existam filhos, a maior convivência possível entre pais e filhos, sobretudo se se tratar de filhos menores. O interesse do legislador no acompanhamento dos filhos pelos pais – traduzindo, aliás, uma orientação constitucional, apoiada nos nºs 5 e 6 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa –, é, assim, um segundo objectivo das normas em análise que, embora não tenha expressão no texto das normas, lhes está claramente subjacente. A norma espelha portanto uma preocupação constitucional: a protecção da família
(artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa). O interesse dos filhos pode configurar-se como um objectivo indirecto do legislador. A circunstância de não estar em causa directamente a definição do estatuto dos filhos não impede porém que o interesse dos filhos seja considerado na interpretação e aplicação das normas em causa. Como escreveu Pereira Coelho (Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Junho de 1985, in RLJ, Ano 120º, nº 3756, p. 79 ss, 81, 82, nota 6) – a propósito do problema da atribuição do direito ao arrendamento em situações de cessação da união de facto e da não admissibilidade da ponderação do interesse dos filhos dessa união (através da aplicação analógica das regras sobre atribuição da casa de morada da família em virtude de divórcio), por este interesse ser, alegadamente, um interesse meramente indirecto –, 'não só os filhos beneficiam imediatamente da atribuição do direito de arrendamento ao progenitor a quem ficam confiados, como poderão vir a suceder no direito de arrendamento por morte desse progenitor [...]'. Foi esta, aliás, a orientação seguida no já citado acórdão nº 359/91 do Tribunal Constitucional.
9. As normas sobre preferência conjugal cuja constitucionalidade se questiona no presente processo – que, no seu teor literal, retomam o essencial da solução adoptada na legislação dos anos 60 – devem hoje em dia ser interpretadas de acordo com os princípios inspiradores da Constituição de 1976.
Em parte, aliás, as normas em vigor adaptaram-se aos novos valores constitucionais. Onde, nas normas mais antigas, se tratava exclusivamente da colocação de 'professoras', a fim de acompanharem o cônjuge professor ou funcionário público, passou a referir-se a colocação de 'professores'. Tais normas – se, nessa parte, o respectivo texto se tivesse mantido inalterado – teriam de ser interpretadas, na actualidade, necessariamente no sentido de abrangerem na sua previsão todos os professores, independentemente do sexo.
Por outro lado, as normas em vigor apenas tomam em conta a situação profissional do outro membro do casal e utilizam a expressão 'cônjuge'. Justifica-se que as normas não aludam expressamente à situação dos filhos: apenas se menciona, como
é natural, o elemento da família considerado activo, do ponto de vista profissional, para o fim tido em vista.
Impondo a Lei Fundamental a equiparação entre filhos nascidos de união matrimonial e filhos nascidos fora dela, no artigo 36º, nº 4, no que constitui uma concretização específica do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, cabe ao intérprete e aplicador do direito a tarefa de conciliar o texto das normas que no seu teor literal contrariem esse objectivo – ou que não se refiram de modo expresso a esse objectivo – com a preocupação do legislador constitucional. E essa tarefa de adequação interpretativa entre o conteúdo das normas e o teor dos preceitos constitucionais deverá ter lugar ainda que o interesse dos filhos não apareça expressamente nomeado, sob pena de se frustrarem, por razões puramente formais, os imperativos constitucionais.
Tendo tudo isto em conta, conclui-se, no caso dos autos, que a interpretação que restringe a aplicação das normas reguladoras da preferência conjugal apenas às situações de casais constituídos com base no matrimónio colide com a proibição de discriminação de filhos gerados fora do casamento,
ínsita no artigo 36º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. Por outras palavras, os filhos de pessoas que vivem em união de facto não devem ser discriminados (privados do convívio com os seus pais) em relação a filhos de pessoas unidas por matrimónio, em consequência de uma interpretação restritiva das normas que estabelecem a preferência conjugal nos concursos para colocação de professores do ensino público. A proibição de tal discriminação é directamente aplicável às relações de emprego público, por força do artigo 18º, nº1, da Constituição da República Portuguesa. III
10. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 36º, nº 4, da Constituição da
República Portuguesa, as normas dos artigos 42º, nº 1, e 46º do Decreto-Lei nº
18/88, de 21 de Janeiro, na medida em que excluem da preferência nelas
estabelecida os professores que, sendo pais de filhos menores, mas não
casados, convivam em condições idênticas às dos cônjuges e coabitem com
aqueles filhos;
Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida no que se refere
à matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 11 de Maio de 1999 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida (vencido,conforme declaração de voto que junta)
Declaração de Voto:
Discordei da orientação que fez vencimento por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, não me convenceu o paralelismo tirado entre a norma constante do artigo 1110º do Código Civil e as normas agora julgadas inconstitucionais constantes do Decreto-Lei n.º 18/88. Na verdade, no Acórdão n.º 359/91, que aliás votei vencido, e que incidiu sobre assento relativo à matéria do referido artigo 1110º do Código Civil, ainda se poderia sustentar uma conexão reflexa com a situação jurídica dos filhos, por a estes existir referência expressa na norma do Código; nas normas agora em análise inexiste qualquer referência desse género, além de que não colhe o reforço argumentativo extraído das considerações a propósito do direito dos filhos a sucederem no arrendamento. A preferência é preferência conjugal, sem mais, o que quer dizer que opera haja ou não filhos. Opera inclusivamente quando, existindo filhos, estes, por exemplo, sejam maiores, ou tendo eles constituído família, vivam sobre si próprios, ou, sendo menores, nem sequer coabitem com os pais, tenham ou não nascido do casamento. Numa perspectiva da procura razão de ser objectiva da norma, mais do que a protecção da família, creio que terá pesado na mente do legislador a preocupação de compensar o ónus de uma vida profissional, sujeita a alterações sucessivas de residência directamente impostas por lei ou resultantes do desenvolvimento normal de uma carreira, como é a de certos funcionários públicos, com a atribuição de uma vantagem de que outros funcionários não gozarão por não estarem sujeitos a essas alterações. Em segundo lugar, a referência à situação de filhos nascidos do matrimónio, no presente contexto, é uma via mediata de equiparar as situações de família constituída através do casamento com as situações de família criada através de uniões de facto. É esse o nó górdio da questão que aqui se enfrenta enviesadamente. Poderá entender-se que essa equiparação é possível. Mas admitindo que assim seja, é necessário relevar que no presente acórdão se está a raciocinar em termos de direito a constituir. Tal equiparação não existe no plano legal. No presente caso, consequentemente, o que poderia configurar-se seria uma inconstitucionalidade por omissão. É abusivo converter a fiscalização concreta, que é fiscalização da inconstitucionalidade por acção, em fiscalização da constitucionalidade por omissão. Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)
Declaração de voto Votei vencido pelas razões que passo a expor sucintamente: O artigo 36º, n.º 4, da Constituição proíbe que os filhos nascidos fora do casamento sejam, 'por esse motivo, objecto de qualquer discriminação'. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, pois, ser discriminados, não apenas quando se trate de filhos do(s) mesmo(s) progenitor(es), mas em geral, sendo vedado o tratamento diverso de filhos nascidos de pais casados e filhos nascidos de progenitores não casados. Todavia, para se poder, com esse fundamento, censurar uma norma, é necessário que ela implique uma discriminação, isto é, designadamente, efeito(s) diverso(s) – ou a possibilidade de tais efeitos –, consoante se esteja em presença de filhos nascidos no ou fora do casamento. Ora, isso não acontece, a meu ver, com as normas em causa no presente recurso, que prevêem uma preferência conjugal na colocação de professores, sem em ponto algum mencionarem os filhos, ou, sequer qualquer relevância do interesse destes, ainda que apenas como critério adicional de preferência. Uma norma pode dispor directamente sobre o estatuto dos filhos – por exemplo, o seu direito a alimentos ou os seus direitos sucessórios –, ou pode limitar-se a considerar o seu interesse para a produção de uma dada consequência jurídica, que os afecta directa ou indirectamente. Em qualquer destes casos, a existência ou o interesse dos filhos afectam as consequências jurídicas, pelo que tal tratamento jurídico não pode ser diverso consoante tenham ou não nascido no casamento. Já, todavia, uma norma que se limite a prever o dever de cooperação dos cônjuges, ou que atribua ao cônjuge sobrevivo os direitos de habitação da casa de morada da família e de uso do recheio desta, apesar da sua projecção reflexa também sobre o interesse dos filhos, não acarreta, a meu ver, uma discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, desde logo, porque a existência de filhos em nada afecta os efeitos jurídicos produzidos, que se ligam apenas ao estatuto de cônjuge. Afigura-se-me, pois, insuficiente, para afirmar a existência de uma discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, que a norma tenha como objectivo complementar, além da protecção do casamento, a protecção geral da família, restringindo-se, contudo, à família fundada no casamento, ou que tal norma afecte o interesse dos filhos reflexamente, quando, nem a existência de filhos, nem o seu interesse, são ou devem ser, de alguma forma, considerados na aplicação da norma, para produção do efeito jurídico que prevê (no presente caso, uma preferência na colocação como funcionário), sendo, pois, a tutela do interesse dos filhos apenas uma resultante indirecta dessa aplicação. Dito isto, logo se deixa ver a diferença, essencial, entre as normas em questão no presente caso e no decidido pelo Acórdão n º 359/91. No assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, em causa naquele aresto, o reconhecimento de uma discriminação assentava em que o interesse dos filhos, que deveria, segundo o artigo 1110º do Código Civil, ser tomado em conta para a atribuição do direito ao arrendamento, apenas se reportava aos filhos de pais casados, não abrangendo nunca os nascidos fora do casamento, de uniões de facto que se separavam. O interesse dos filhos, conquanto indirecto, era, assim, relevante na própria hipótese da norma, como elemento que esta mandava ponderar
(artigo 1110º, n.º 4), podendo alterar o efeito jurídico (a atribuição do direito ao arrendamento) a produzir. Diversamente, no presente caso, a preferência em questão abstrai totalmente da existência de filhos. Estes, e a ponderação do seu interesse, surgem sempre como elemento que, como bem pôs em evidência o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, é 'totalmente estranho à aplicação das normas que dispõem sobre as preferências conjugais nas colocações, tidas como mera decorrência da invocação de uma situação matrimonial, revelando-se absolutamente indiferente ao funcionamento do dispositivo legal a existência de filhos, a sua menoridade e as condições concretas de vida do agregado familiar.' Não se pode, assim, ponderar na aplicação da norma o interesse dos filhos, nascidos no ou fora do casamento, pois a preferência liga-se a uma circunstância
– o casamento – independente logo da própria existência de filhos
(circunstância, essa, aliás, de tal forma diversa que, segundo a Constituição, não pode fundar um tratamento diferenciado dos filhos nascidos nela ou fora dela). E, assim, o facto de o interesse dos filhos não aparecer nomeado na norma não pode considerar-se irrelevante, não porque esse interesse não seja afectado, mas porque torna os critérios de aplicação das normas estranhos à existência ou ao interesse dos filhos, não se vendo como possa ser 'considerado na interpretação e aplicação das normas em causa' (nem se tendo considerado inconstitucional que o não seja). A meu ver, a posição inversa levaria a considerar inconstitucionais, por violação da proibição de discriminação entre filhos nascidos no e fora do casamento, praticamente todas as normas que estabelecem um regime para pessoas casadas, tenham ou não filhos, diverso do das que vivem em união de facto. Pois, quando tais filhos existirem (num caso, nascidos no casamento, no outro, de pessoas não casadas - ou mesmo, como acontecia em parte no presente caso, apenas de uma das pessoas que vivem em união de facto), normalmente o seu interesse, que não foi considerado relevante para aplicação das normas em causa em termos de alterar os efeitos jurídicos a produzir, não deixará também de ser afectado, ainda que apenas reflexamente, por tais normas, e a protecção da família não deixará também, normalmente, de ser uma das suas finalidades. Ora, a meu ver - apesar de no artigo 36º, n.º 1, a Constituição distinguir entre o direito a constituir família e o direito a contrair casamento, assim parecendo reconhecer uma família não fundada no casamento, e apesar de os filhos nascidos nesta não poderem ser objecto de discriminação - não deve considerar-se o legislador ordinário impedido de – num espaço de liberdade de conformação e consoante as concepções políticas e sociais ou outras considerações que o moverem para cada problema (por exemplo, a segurança dos critérios de preferência para colocação de professores) – prever um regime jurídico específico para os cônjuges, mesmo que isso possa reflexamente atingir os filhos, desde que a existência ou o interesse destes não seja, nem haja constitucionalmente de ser, relevante para a aplicação de tais normas. Não podendo, pois, acompanhar, nem o reconhecimento de uma 'interpretação restritiva' na exclusão de uniões de facto onde a lei prevê apenas uma preferência conjugal (o que, aliás, suporia que o sentido 'natural' do termo
'cônjuge' incluísse já pessoas não casadas, 'unidas de facto'; pode, antes, a meu ver, perguntar-se se a inclusão de pessoas em união de facto na hipótese de uma norma que apenas refere 'cônjuges' não implica, mais do que interpretação extensiva, extravazar dos limites dos sentidos literalmente possíveis do termo, e, portanto, segundo a tradicional configuração dos limites da interpretação, analogia), nem a afirmação de uma discriminação, por esse motivo, entre filhos nascidos no e fora do casamento, resultante do estabelecimento de tal preferência para cônjuges, não teria considerado as normas em causa inconstitucionais. Luís Nunes de Almeida