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Proc.Nº 22/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - C... foi acusada pelo Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais da prática, entre outros, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 22º, § 1º, do Decreto-Lei nº
33 725, de 21 de Julho de 1944, pois, em interrogatório judicial perante o juiz de instrução criminal, embora tivesse sido expressamente advertida para a cominação do nº 3 do artigo 141º do Código de Processo Penal (adiante, CPP), respondeu quanto aos seus antecedentes criminais por forma que não condizia com o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
A arguida, na contestação que apresentou, suscitou a questão da inconstitucionalidade dos artigos 141º, nº3, 61º, nº3, alínea b) e
342º, nº2, todos do CPP, por violação do artigo 32º, nº1, da Constituição.
Por acórdão de 17 de Janeiro de 1996, a arguida foi condenada pela prática do crime de falsas declarações, previsto e punido no artigo 359º, nº 2, do Código Penal de 1982, revisto em 1995, na pena de 8 meses de prisão, tendo a execução da pena sido suspensa por dois anos.
O acórdão, para chegar a tal conclusão, afastou a arguição de inconstitucionalidade por entender que não pode recair sobre o arguido um dever de prestar declarações (tem direito ao silêncio), não podendo ser o mesmo intimidado com uma punição de falso depoimento, caso resolva prestar declarações, ainda que se não possa falar de um direito a mentir, uma vez que tais limitações têm de ser consideradas como restritas ao próprio objecto do processo, mas não podem ir tão longe que alcancem as meras declarações sobre a identificação do arguido e os seus antecedentes criminais em primeiro interrogatório, porquanto não valendo aqui as declarações do arguido como meio de prova da «culpa» deste pela prática do facto indiciado, não se descortina qualquer razão para que se não possa sancionar a recusa ou a prestação de falsas declarações como forma de levar o arguido a prestar tais declarações com verdade, inexistindo qualquer violação do direito de defesa do arguido.
O Ministério Público recorreu da decisão da primeira instância para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ) e, na resposta da arguida à motivação do recorrente, esta voltou a suscitar a inconstitucionalidade dos artigos 141º, nº3, 61º, nº3, alínea b) do CPP.
O STJ, por acórdão de 24 de Outubro de 1996, decidiu condenar a arguida pela prática do crime de falsas declarações sobre os antecedentes criminais em 1º interrogatório em 5 meses de prisão, que, em cumulo jurídico com a pena de 22 meses de prisão pelo crime de falsificação, redundou na pena única de dois anos de prisão.
A alegação de inconstitucionalidade foi aqui afastada pelo STJ por se entender que os argumentos que consideram poder atentar contra a dignidade do arguido e contra as suas garantias constitucionais na exigência de resposta com verdade às perguntas sobre os seus antecedentes criminais na audiência de julgamento não são válidos quanto ao primeiro interrogatório do arguido, uma vez que as perguntas são feitas exclusivamente pelo juiz, com a assistência do Ministério Publico e do defensor e estando presente o funcionário de justiça. Não é admitida a presença de qualquer outra pessoa, a não ser que, por motivo de segurança, o detido seja guardado à vista - nº 2 do artigo 141º.
É desta decisão que a arguida interpõe o presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo do artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade constitucional dos artigos 141º, nº3 e 61º,nº3, alínea b), todos do CPP.
2. - Nas suas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1 - As normas dos artºs 61º nº 3 al. b) e 141º nº 3 do CPP, ao imporem ao arguido que decline os seus antecedentes, do modo como está consagrado no artº
141º nº 3 do CPP, são além do mais desrazoáveis, por manifesta insensatez;
2 - Na esmagadora maioria das vezes os arguidos quando são presentes ao 1º interrogatório judicial já estão em regime de detenção debilitados, receosos de ficarem em regime de prisão preventiva, muitas vezes em situações de completa inimputabilidade, por serem consumidores de droga e estarem em situação de carência, 'ressacados' como se soi dizer, logo incapazes de revelar os antecedentes criminais, de cor e salteado;
3 - Mais fragilizados ficam quando não têm mandatário a assegurar a defesa e lhes é dito que são obrigados a dizer a verdade sobre os antecedentes criminais, sob pena de cometerem crime de falsas declarações;
4 - Quando o Tribunal tem acesso fácil e seguro ao registo criminal e não necessita da colaboração do arguido para saber o passado criminal do mesmo;
...5 - Os arguidos, porque sujeitos processuais e não meros objectos, têm direito às garantias de defesa, constitucionalmente consagradas no artº 32º da CRP, entre as quais o princípio da presunção de inocência, o direito a um julgamento imparcial e isento, ao 'due process of law', ao contraditório e ao acusatório são de considerar e respeitar;
...6 - Ao imporem ao arguido a obrigatoriedade de revelar os seus antecedentes criminais, aquelas normas, levam a que o juiz que vai decidir, que vai julgar da existência ou não de indicios e da medida de coacção a aplicar, formule um juizo de indicação, julgando os factos em função não dos indícios que o auto de detenção revela, ou os autos, mas já claramente influenciado pelos antecedentes criminais;
7 - O juiz julga em função do juizo formado sobre a personalidade do arguido revelada pelos antecedentes criminais;
8 - Tenderá mais facilmente a acreditar na polícia quando o arguido já tem passado, v.g. por furto, em vez de ponderar todos os factos com imparcialidade e isenção;
9 - O STJ ao referir que as declarações sobre os antecedentes criminais do arguido não valem como meio de prova da culpa do arguido, destinando-se só a avaliar da adopção de medidas de coacção, está bem vistas as coisas a contradizer-se e a dizer-nos que afinal o conhecimento dos antecedentes criminais do arguido valem para formular um juizo sobre a culpabilidade do mesmo;
10 - Os mesmos motivos que determinaram o legislador ordinário a revogar a norma do nº 2 do artº 342º do CPP valem, 'hic et nunc', para considerar inconstitucionais as normas indicadas na conclusão 1ª, porque o motivo não foi o vexame público por o arguido confessar os antecedentes criminais, por violação das garantias de defesa, designadamente violação dos princípios da presunção de inocência, do acusatório e do contraditório;
11 - As normas dos artºs 61º nº 3 al. b) e 141º nº 3 do CPP são materialmente inconstitucionais por violação da norma do artº 32º nº 1 da CRP, sendo certo que entre as garantias de defesa estão o princípio do contraditório, do acusatório e da presunção de inocência;
12 - Devem pois ser julgadas materialmente inconstitucionais as normas dos artºs
61º nº 3 al.b) e 141º nº 3 do CPP, desconformes ao artº 32º nº 1 da CRP, na parte em que obrigam os arguidos a revelar os seus antecedentes criminais, sob a cominação de cometerem crime de falsas declarações, com as legais consequências.'
O Ministério Público também alegou, tendo concluído as que apresentou, pela forma seguinte:
'1º. As normas dos artigos 61º, nº2, alínea b) e 141º, nº 3, do Código de Processo Penal, na parte em que fazem recair sobre o arguido o dever de responder com verdade às perguntas feitas pelo juiz de instrução sobre os seus antecedentes criminais, não violam as garantias de defesa consagradas no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
2º. Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - A recorrente questiona a constitucionalidade do artigo 61º, nº 3, alínea b) e do artigo 141º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal de 1987, tendo deixado cair a questão da inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 342º do mesmo código, por ter sido entretanto revogado. É o seguinte o teor dos preceitos questionados:
Artigo 61º
(Direitos e deveres processuais)
1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: a) ................................................
3. Recaem, em especial, sobre o arguido, os deveres de:
(_) b) Responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais; c) (_)
Pelo seu lado, o artigo 141º tem o seguinte teor:
Artigo 141º
(Primeiro interrogatório judicial do arguido detido)
1. (_)
2. (_)
3. O arguido é perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, número de documento oficial que permita a identificação, se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes. Deve ser advertido de que a falta de resposta a estas perguntas ou a falsidade da mesma o pode fazer incorrer em responsabilidade penal.
Segundo a recorrente, o interrogatório imposto pelo artigo 141º na parte relativa aos antecedentes criminais do arguido e ao qual ele deve responder com verdade, por força do preceituado no artigo 61º, nº3, alínea b) sob pena de, não o fazendo, poder vir a ser condenado pelo crime de falsas declarações, viola o artigo 32º, nº1, da Constituição (CRP).
Com efeito, tal imposição é desrazoável pois o tribunal tem fácil acesso ao registo criminal, além de que, ao declinar tais antecedentes, leva a que o juiz que vai apreciar a sua situação fique desde logo influenciado não apenas pelos factos mas também por tais antecedentes, o que vai afectar as garantias de defesa do arguido.
O STJ face a esta questão de constitucionalidade, fundamentou assim, o seu indeferimento:
'O acórdão recorrido apreciou a questão e conclui, e bem, que em sede do 1º interrogatório as declarações do arguido sobre os seus antecedentes criminais não valem como meio de prova da 'culpa' dele pela prática do ilícito indiciado, destinando-se apenas a servir de elemento a ponderar para a adopção de eventuais medidas de coacção processual. Ora, é só no âmbito da culpa que há necessidade de proteger todas as possibilidades de defesa do arguido.
É esse também o entendimento do legislador ordinário quando recentemente eliminou apenas o nº 2 do artº 342º do mesmo Código, mantendo aquelas outras normas em relação às quais nunca se pôs em causa a sua eventual inconstitucionalidade. Atentando no artº 3º da Lei nº 90/B/95 de 1 de Setembro, nomeadamente na alínea gg), vê-se que a autorização para a eliminação daquele nº 2 do artº 342º teve um fim determinado que não é extensível ao artº 141º. O Governo foi autorizado a revogar essa norma 'já que a indagação em audiência pública dos antecedentes criminais do arguido, atenta com a sua dignidade e com as garantias constitucionais'. A obrigação de o arguido responder com verdade às perguntas sobre os antecedentes criminais em audiência pública pode atentar com a sua dignidade e com as garantias constitucionais que incluem o direito ao silêncio, na medida em que o mesmo pode considerar-se vexado por publicamente ter de 'confessar' os seus antecedentes criminais. O mesmo já não se passa quanto ao 1º interrogatório, visto que as perguntas são feitas 'exclusivamente pelo juiz, com a assistência do Ministério Público e do defensor e estando presente o funcionário de justiça. Não é admitida a presença de qualquer outra pessoa, a não ser que, por motivo de segurança, o detido seja guardado à vista'. - nº 2 do mesmo artº 141º.
É de concluir, pois, como decidiu o acórdão, sem que disso tivesse havido recurso, que as normas referidas pela arguida não são inconstitucionais.'
A recorrente não aceita esta fundamentação, pois entende que os argumentos que, na doutrina, têm sido invocados para considerar inconstitucional a norma do nº2 do artigo 342º do CPP podem servir para considerar que as normas em causa violam as garantias de defesa do arguido consagradas no nº1 do artigo 32º da Constituição.
Vejamos se, de facto, ocorre ou não tal violação.
4. - O nº1 do artigo 32º da Constituição, ao determinar que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa», como que condensa todas as normas dos restantes números do preceito, sem que deixe de existir um conteúdo normativo próprio susceptível de utilização em casos limite e que aqui não interessa considerar.
A recorrente considera que as normas do artigo 61º, nº3, alínea b) e do artigo 141º, nº3, do CPP, na medida em que obrigam os arguidos a revelar, no primeiro interrogatório judicial, os seus antecedentes criminais, sob a cominação do crime de falsas declarações, violam os princípios da presunção de inocência, do contraditório e do acusatório integrantes das suas garantias de defesa.
Vejamos.
O princípio da presunção de inocência está consagrado no nº2 do artigo 32º da CRP, aí se integrando a proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, a preferência pela sentença de absolvição em vez do arquivamento do processo, a exclusão da fixação da culpa em despachos de arquivamento, a não sujeição a custas do arguido não condenado, etc. como seu conteúdo adequado.
O princípio do contraditório, referido no nº 5 do artigo
32º da CRP, traduz o direito que quer a acusação quer a defesa têm de se pronunciar sobre os actos processuais da iniciativa de cada uma delas por forma a que a audiência e os actos instrutórios revistam a forma de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, parificando o mais possível o respectivo posicionamento jurídico ao longo do processo, o qual deve ter uma estrutura basicamente acusatória temperada por um princípio de investigação.
Assim, o princípio do inquisitório domina a fase processual do inquérito conduzida pelo Ministério Público e, de certo modo, a fase de instrução (nº 4 do artigo 288º do CPP); o princípio acusatório atravessa a fase do debate instrutório, a fase da acusação e do julgamento: a exigência decorrente deste princípio de que o órgão que proceda à instrução não seja o mesmo que vier a deduzir a acusação e este seja diferente do que vai proceder ao julgamento realiza uma garantia de imparcialidade e de independência do tribunal.
A estrutura acusatória do processo penal é assim integrada por um princípio de investigação e, para além de visar a parificação, ao longo dos diferentes actos do processo, do posicionamento jurídico da acusação e da defesa, impõe uma rigorosa definição do momento e do modo como se estabelece o estatuto de arguido.
Nos termos do que se dispõe no artigo 57º do CPP, assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal, mantendo-se esta qualidade durante todo o decurso do processo.
À obtenção do estatuto de arguido corresponde o reconhecimento pela lei processual penal de um conjunto de direitos e deveres, que têm de ser acatados por todas as autoridades, sendo certo que alguns dos direitos têm dignidade constitucional (artigo 32º, nºs 1, 2 e 3, da Constituição).
Um dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido é o direito ao silêncio que consta do artigo 61º, nº 1, alínea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.
Na mesma disposição, o CPP consagra também um dever que recai particularmente sobre os arguidos, o dever de responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais - artigo 61º, nº 3, alínea b).
É a norma resultante da conjugação destes último preceito com a norma do artigo 141º, nº3, do CPP, que vem questionada, nos autos, enquanto aplicável ao primeiro interrogatório do arguido e na medida em que a falta de resposta ou a sua falsidade pode fazer incorrer o arguido em responsabilidade penal.
A situação aqui em causa é substancialmente diferente da que foi apreciada no Acórdão nº 695/95, deste Tribunal (in Diário da República, IIª Série, de 24 de Abril de 1996).Neste caso, o que se questionava era a legitimidade da obrigação de prestar declarações sobre os seus antecedentes criminais do arguido, em plena audiência, sob a cominação de responsabilização penal, norma esta que aí se considerou violar o princípio das garantias de defesa bem como o princípio da presunção de inocência do arguido.
No caso dos autos, trata-se de idênticas perguntas ao arguido, no momento do seu primeiro interrogatório judicial.
O arguido detido que não deva ser julgado em processo sumário é interrogado pelo juiz de instrução dentro de 48 horas após a detenção, sendo o interrogatório feito exclusivamente pelo juiz, com a assistência do Ministério Público e do defensor e na presença do funcionário de justiça, a menos que o detido deva ser guardado à vista. O interrogatório destina-se, fundamentalmente, a verificar se existem os requisitos justificativos da detenção, da prisão preventiva ou da substituição desta por qualquer outra medida. O arguido é primeiramente perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho da naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência e número de documento oficial que permita a sua identificação
(números 1, 2 e 3, do artigo 141º, CPP).
Estabelecida a identificação do arguido, é-lhe perguntado se já alguma vez esteve preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes, devendo o juiz proceder à advertência de que a falta de resposta ou a resposta com falsidade às perguntas obrigatórias (identificação e antecedentes criminais) lhe pode acarretar responsabilidade penal (parte final do nº3 do artigo 141º do CPP).
Gozando o arguido do direito ao silêncio não só quanto aos factos que lhe forem imputados como também quanto ao conteúdo das declarações que sobre eles prestar, pode esta obrigatoriedade de responder às perguntas sobre a identificação e sobre os antecedentes criminais feitas nesta fase processual violar tal direito?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Em primeiro lugar, não pode aqui afirmar-se a violação da presunção de inocência do arguido: não se trata agora de utilizar as declarações deste como meio que pode influenciar a prova, o que sempre poderia afectar a sua dignidade pessoal, que o processo penal tem sempre de preservar, mas tão somente de recolher elementos indispensáveis sobre a situação criminal do arguido, uma vez que o processo não está ainda em condições de ter adquirido tais elementos, na sua forma oficial, isto é, através da requisição do respectivo certificado de registo criminal.
Com efeito, após o primeiro interrogatório judicial do arguido, se o processo tiver de continuar, o juiz tem de tomar uma decisão sobre as medidas de coacção que deverá impor ao arguido e, para tomar tal decisão, é fundamental saber quais são os seus antecedentes criminais, uma vez que o conhecimento destes não pode deixar de relevar para a escolha da adequada medida de coacção processual (neste sentido, veja-se Figueiredo Dias, 'Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime', §1019).
Não se trata aqui de qualquer violação do direito ao silêncio do arguido, o qual, por força da lei, se reporta essencialmente aos factos que lhe forem imputados, mas antes de habilitar o juiz do primeiro interrogatório, pelo único meio nesse momento possível, com todos os elementos respeitantes ao arguido, necessários e indispensáveis para, considerados os pressupostos das medidas de coacção (os pericula libertati) e os princípios que regem a sua aplicação em cada caso concreto (da adequação e da proporcionalidade), definir pelo forma mais correcta a sua situação processual.
Acresce que, como refere o Ministério Público nas suas alegações, esta situação - imposição de declarações ao arguido sobre os seus antecedentes criminais em primeiro interrogatório - é substancialmente diferente da contemplada no nº2 do artigo 342º do CPP, que o tribunal já julgou inconstitucional e que o legislador decidiu revogar pelo Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro.
De facto, a autorização legislativa para se proceder a esta revogação assentou no entendimento de que a indagação em audiência pública dos antecedentes criminais do arguido atenta contra a sua dignidade e contra as suas garantias de defesa constitucionais (alínea gg), do artigo 3º, da Lei nº
90-B/85, de 1 de Setembro). Ora, se o legislador entendesse que a imposição de idênticas declarações ao arguido no primeiro interrogatório também contendia com a sua dignidade e com as respectivas garantias de defesa, não deixaria de proceder à revogação da norma que prevê tal imposição simultaneamente com a da norma do nº2 do artigo 342º do CPP, o que não fez.
Como se referiu, não só as circunstâncias factuais são diferentes (o primeiro interrogatório decorre apenas perante o juiz, o Ministério Público, o defensor do arguido e o funcionário judicial, não sendo, portanto, uma «audiência pública»), como também as finalidades são diferentes: a audiência de julgamento destina-se à discussão e prova pública dos factos de que o arguido é acusado e decorre perante quem tem que decidir os factos e fazer a sua subsumpção ao direito; pelo contrário, o primeiro interrogatório judicial destina-se essencialmente a que o arguido seja informado dos direitos que lhe assistem (nº 4 do artigo 141º) e a que lhe sejam formalmente comunicados os factos que lhe são imputados. Este interrogatório apresenta-se como fortemente protector do arguido e realiza claramente os seus direitos de defesa: só pode ser interrogado pelo juiz (nem o Ministério Público nem o seu defensor podem fazer perguntas, mas apenas arguir nulidades), devendo ser expressamente advertido do direito que lhe assiste de não prestar declarações, goza do direito ao silêncio sobre tudo quanto o possa inculpar. Não poderá aqui afirmar-se que as declarações sobre os antecedentes criminais o transformem de sujeito em objecto do processo.
Assim, a cominação de uma sanção (a da responsabilização pelo crime de desobediência ou de falsas declarações) para a violação deste dever de responder às perguntas sobre os antecedentes criminais, em primeiro interrogatório judicial, e de lhes responder com verdade não representa, neste caso, uma violação do princípio da necessidade da pena. De facto, em regra não será possível obter por outros modos, institucionalmente válidos, no momento em que tal informação é necessária, elementos sobre tais antecedentes. Por outro lado, a norma apenas estabelece que a falta de resposta ou a falsidade da mesma pode fazer incorrer o arguido em responsabilidade penal, pelo que sempre se terá de demonstrar que o arguido, ao fazer tais declarações, agiu culposamente.
Não sendo possível no momento em que se procede ao primeiro interrogatório judicial do arguido o conhecimento dos seus antecedentes criminais pelos meios institucionais vigentes, a imposição, nesse interrogatório, do dever de responder e de o fazer com verdade, sob a cominação de, não o fazendo ou de, respondendo, dar respostas falsas, incorrer em responsabilidade penal não viola nem o princípio das garantias de defesa nem o princípio da presunção de inocência do arguido, constantes do artigo 32º da Constituição, nem o princípio da necessidade da penas que se manifesta no artigo
18º, nº2 também da Constituição.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar não inconstitucionais as normas dos artigos 61º, nº3, alínea b) e 141º, nº3, do Código de Processo Penal, na parte em que impõem ao arguido o dever de responder com verdade às perguntas feitas no primeiro interrogatório judicial sobre os seus antecedentes criminais, e, em consequência, nega provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 13 de Maio de 1998 Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida