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Procº nº 438/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Não se conformando com a coima de Esc. 4.427.361$00, que lhe foi imposta por despacho de 22 de Julho de 1997, proferido Director Distrital de Finanças de Évora e tocante a uma infracção ao disposto nas disposições conjugadas do artº 29º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras e dos artigos 26º e 40º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, recorreu a H...,Ldª para o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Évora, tendo o respectivo Juiz, por sentença de 8 de Maio de 1998, julgado improcedente o recurso.
Do assim decidido recorreu a H...,Ldª para o Tribunal Central Administrativo, tendo, na alegação que produziu, dito, no que ora releva:-
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28.º A disciplina criada em matéria de crimes fiscais, sob pena de violação dos princípios constitucionais da justiça e da igualdade, tem de ser aplicada ao regime das contra- -ordenações; aliás,
29.º Não faria sentido que o legislador tivesse pretendido uma reconciliação fiscal com os contribuintes, de modo que achou conveniente para a Administração Fiscal e para a Economia Nacional, e os viesse depois sancionar em termos contra-ordenacionais quando aceitou que a adesão ao plano de regularização extraordinário representava um modo de pôr termo a uma situação que se tinha instalado e a que era preciso reparar, para bem dos contribuintes e da economia.
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32.º O único sentido da suspensão dos processos de contra-ordenação prende-se com a eventualidade de incumprimento por parte dos contribuintes aderentes ao plano, mas é destituído, de sentido que prossigam, sejam aplicadas coimas e muito menos que sejam executadas, relativamente aos contribuintes aderentes cumpridores.
33.º Com a saída do D.L. n.º 124/96 de 10 de Agosto, a recorrente aderiu de imediato ao plano de regularização nele previsto.
34.º O seu pedido de adesão foi deferido e a recorrente pagou a totalidade do imposto em dívida.
35.º Ficou convicta de que com a adesão ao Plano de Regularização das dívidas fiscais não ia ser sujeita a qualquer processo de contra-ordenação e organizou a sua estrutura de custos de acordo com essa convicção.
36.º Foi o Governo que reconheceu que a situação tributária, atentas as vicissitudes conjunturais, impunham uma intervenção extraordinária e rigorosa, como se depreende do preâmbulo do D.L. n.º 124/96, de 10 de Agosto.
37.º Determinou a suspensão dos processos de execução em curso, a suspensão dos processos de averiguações enquanto se mantivesse a situação de cumprimento e a extinção da responsabilidade criminal com o integral pagamento.
38.º Resulta injusto e desigual e viola o princípio da boa fé a aplicação de coimas aos contribuintes aderentes ao plano quando foi afastada a responsabilidade criminal.
39.º A disciplina criada em matéria de crimes fiscais, sob pena de violação do Princípios da Justiça e da Igualdade, e dos restantes consagrados no n.º 2 do artigo 266 da Constituição da República, deve ser aplicada ao regime das contra-ordenações..
40.º A infracção foi reparada nos termos em que a Administração veio a determinar, não houve prejuízo para a Fazenda Nacional. CONCLUSÕES a) Não ficou provado qualquer facto que permita qualificar a conduta da recorrente como negligente. b) Consequentemente à infracção corresponde o crime previsto e punido pelo artigo 24.º do R.J.I.F.N.A. C) Cuja responsabilidade criminal se encontra extinta pelo art. 3.º da Lei n.º
51-A/96. d) A extinção de responsabilidade criminal estende-se, por maioria de razão, à responsabilidade contra-ordenacional, sob pena de violação dos Princípios consagrados no n.º 2 do artigo 266.º da C.R.P., nomeadamente os da Justiça e da Igualdade.
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2. Por acórdão de 27 de Abril de 1999, o Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso, ali se tendo escrito, a dado passo, que 'o regime da Lei 51- -A/96.12.09, no que toca à extinção da responsabilidade criminal, nos termos do art.º 3º, não abrange as contra- -ordenações fiscais, da mesma forma que as não abrange o regime consignado no art.º 26º do RJIFNA, o que tem a ver com a circunstância de os interesses públicos em jogo, no caso das condutas ilícitas serem criminosas, e com as vantagens decorrentes da respectiva regularização, nos termos consignados quer na aludida Lei 51-A/96, quer no mencionado art.º 26º, serem diferentes, quer do ponto de vista qualitativo, quer quantitativo, dos próprios das contra-ordenações'.
É deste Acórdão que, pela H...,Ldª, vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional, fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, e pretendendo, por seu intermédio, a apreciação da inconstitucionalidade da norma 'constante do artigo 3.º da Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro, na interpretação acolhida no douto acordão recorrido no sentido de que o pagamento integral dos impostos e acréscimos legais é susceptível de extinguir apenas a responsabilidade criminal por uma certa infracção de natureza dolosa, mas já não é susceptível de extinguir a responsabilidade contra-ordenacional por uma infracção à mesma norma, sendo determinante o juízo feito pela Administração Fiscal de que existe apenas negligência e não dolo'.
3. Determinada a feitura de alegações, concluiu a recorrente a por si formulada do seguinte modo:-
' a) A infracção ao disposto no artigo 26.º do Código do IVA, quando por período superior a 90 dias pode constituir crime fiscal p.p. pelo artigo 24 do R.J.I.F.N.A.., ou contra-ordenação fiscal p.p. pelo artigo 29.º do mesmo diploma, consoante tenha havido dolo ou não dolo (ou, se preferirem, apropriação). b) O Douto Acordão recorrido faz uma interpretação literal do artigo 3.º da Lei n.º 51- -A/96, de 9 de Dezembro, segundo a qual a extinção da responsabilidade criminal, decorrente do pagamento dos impostos e acréscimos legais, nele prevista, não abrange a responsabilidade contra-ordenacional, pela mesma violação da mesma norma. c) A ser assim bastará à Administração fiscal não instaurar o processo de averiguações, imposto pelo artigo 43.º do R.J.I.F.N.A.., e imputar arbitráriamente a conduta a título de negligência para conseguir a inaplicabilidade prática de uma norma que lhe é económicamente desfavorável. d) Tal interpretação viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, entre outros, que afloram, no artigo 266.º n.º 2 da Constituição. Nestes termos, e nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a extinção da responsabilidade criminal, decorrente do pagamento dos impostos e acréscimos legais, nele prevista, não abrange a responsabilidade contra-ordenacional, pela mesma violação da mesma norma.'
Por seu turno, a Fazenda Nacional apresentou as seguintes
«conclusões»:-
'a) As leis de amnistia excepcionam do procedimento criminal e da condenação certas e determinadas infracções praticadas em determinado período de tempo
b) As leis de amnistia, por serem de natureza excepcional, em sede de direito penal, não comportam interpretação analógica ou extensiva.
c) Por não serem contempladas na Lei nº 51-A/96, de 09.12, as infracções de natureza contra-ordenacional não podem ser abrangidas pela medida de amnistia.
d) A interpretação pretendida pela recorrente colide com os princípios fundamentais de aplicação da lei penal'.
Cumpre decidir.
II
1. A norma contida no artº 3º da Lei nº 51-A/96, de 9 de Dezembro, ora sub specie, dispõe o seguinte:- Artigo 3º Extinção da responsabilidade criminal
O pagamento integral dos impostos e acréscimos legais extingue a responsabilidade criminal.
Por outro lado, no artº 1º do mesmo diploma legal estendeu-se o
âmbito de aplicação daquela Lei aos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais que resultem das condutas ilícitas que tenham dado origem às dívidas abrangidas pelo disposto no Decreto-Lei n.º
225/94, de 5 de Setembro, e no Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto.
O citado Decreto-Lei nº 225/94 veio, a titulo excepcional, permitir
'aos contribuintes a regularização das suas dívidas em prestações', relativamente às obrigações cujo prazo de cobrança tenha terminado até 31 de Dezembro de 1993 (cfr. seu artº 1º), regime que também foi estendido 'às dívidas a instituições de previdência ou de segurança social, bem como às quotizações para o Fundo de Desemprego' (em itálico, palavras do seu exórdio).
E, pelo que respeita ao Decreto-Lei nº 124/96, nele se veio a consagrar, por um lado 'e relativamente à generalidade dos devedores, um regime geral de pagamento em prestações mensais, até um máximo de 150' e, por outro,
'no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo artigo 59.º da Lei n.º
10-B/96, de 23 de Março, ..., um regime extraordinário de mobilização de activos e de recuperação de créditos' (cfr. o preâmbulo desse diploma) com vista ao diferimento de pagamento, de redução de valor, de conversão em capital das entidades devedoras ou de alienação, dos créditos por dívidas de natureza fiscal ou à segurança social cujo prazo de cobrança tenha terminado até 31 de Julho de
1996 (veja-se o seu artº 1º, nº 1).
Por outro lado, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro), extrai-se que constitui crime de abuso de confiança fiscal a apropriação total ou parcial de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário, punindo-se esse ilícito com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido (cfr. nº 1 do artº 24º, sendo que nos seus números 2, 3 e 6 se estatui, respectivamente, que [p]ara efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja - nº 2, que
[é] aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente - nº 3, e que
[p]ara instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
Ainda desse Regime Jurídico resulta (cfr. artº 29º, na redacção indicada) que é considerada contra-ordenação fiscal a não entrega, total ou parcialmente, pelo período até 90 dias, ao credor tributário da prestação tributária deduzida nos termos da lei, comportamento que é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o dobro da mesma, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido (nº 1), dispondo-se nos seus números 2 e 3 que [s]e a conduta prevista no número anterior for imputável a título de negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido (nº 2) e que
[p]ara efeitos do disposto nos números anteriores considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar nos casos em que a lei o preveja (nº
3).
2. Em face de tais normativos do RJIFNA, cabe, antes de mais, realçar que, contrariamente ao que defende a recorrente a vertente do elemento subjectivo não é a mesma consoante esteja em causa um ilícito de abuso de confiança fiscal e o ilícito contra- -ordenacional de falta de entrega de prestação tributária.
Com efeito, o crime de abuso de confiança fiscal previsto no art.º
24º do RJIFNA pressupõe, como um dos seus elementos típicos objectivos, a apropriação da prestação tributária que era devida, consistindo uma das faces do respectivo elemento subjectivo na imputação dessa apropriação ao agente; já no que concerne ao ilícito contra-ordenacional da falta de entrega de prestação tributário, límpido é que o elemento objectivo se reporta à não entrega, total ou parcial, pelo período até noventa dias, ao credor da prestação tributária, enquanto que, e também numa das faces do elemento subjectivo, ela se consubstancia na imputação dessa não entrega, quer o agente tenha sido movido pela intenção de o não fazer, quer a não entrega tenha sido devida a um comportamento que não foi iluminado pela intencionalidade de a ela não proceder, o que vale por dizer que, tocantemente a este último ilícito, tal elemento subjectivo tanto pode revestir a forma dolosa como negligente.
Assim, não pode minimamente ser afirmado que a distinção dos dois ilícitos em presença somente repousa na existência ou na não existência de dolo simples, ou seja, que se estará perante o crime de abuso de confiança fiscal caso tenha havido intenção de não entrega da devida prestação tributária, postando-se, caso essa intenção se não demonstre (mas demonstrando-se todavia que a não entrega se deveu a um comportamento censurável, mas não movido especificamente pelo intuito de a ela não proceder), uma situação subsumível à denominada falta de entrega de prestação tributária, situação esta que constituirá um ilícito de natureza contra-ordenacional. Necessário é que, para além da existência do dolo simples, haja ainda a especificidade consistente no animus apropriandi da quantia que devia ser entregue ao credor da prestação tributária.
Aliás, este último ilícito contra-ordenacional, atenta a sua previsão, existirá independentemente do futuro pagamento da devida prestação tributária. Ponto é, isso sim, que a respectiva obrigação não seja satisfeita tempestivamente e, para além disso, que se não indicie o intuito de obtenção de vantagem patrimonial indevida derivada do não cumprimento da obrigação tributária.
E até é porventura sustentável que, mesmo a indiciar-se a prática de um ilícito de abuso de confiança fiscal (e, por isso, independentemente consideração da norma agora apreciada), essa circunstância não impede que, referentemente à não entrega atempada da devida prestação tributária, se não deixe de considerar como preenchida a contra-ordenação fiscal prevista no citado artº 29º.
Trata-se, pois, de diferentes normas, previsoras de ilícitos de diferente natureza, sendo asado realçar aqui que não procede a óptica da impugnante, a qual parece apontar no sentido de que a responsabilidade contra-ordenacional se enquadra no âmbito da responsabilidade criminal, pois que nem aquela se subsume a esta, nem esta é o género de que aquela é a espécie.
Efectivamente, como diz Eduardo Correia (in Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIX – 1973, págs. 279/280) tendo em consideração a responsabilidade contra-ordenacional, 'o respectivo ilícito não pertence ao direito criminal, na medida em que as respectivas sanções estão desligadas do pathos que as caracteriza e não desqualificam o agente a quem são impostas com a mácula de uma reprovação ético - jurídica'. Neste domínio, veja-se também a distinção efectuada por Costa Andrade (Contributo para o conceito de contra-ordenação (A experiência alemã) na Revista de Direito e Economia, anos VI/VII – 1980/1981, págs. 81 e segs., 117 e 118), onde se pode ler:
'...................................................................................................................................................................................................................a categorização de uma infracção como crime ou contra-ordenação ou a sua conversão recíproca dependem sempre da mediação criadora do legislador.
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Trata-se de uma decisão necessariamente política e pragmática que, sem ser arbitrária, comporta, apesar de tudo, um coeficiente irredutível de indeterminação e discricionaridade. Ela ocorre, com efeito, sob o desenvolvimento de um conjunto de normas e princípios constitucionais que estabelecem orientações e corporizam, por assim dizer, um programa de política criminal imposto ao legislador ordinário. Reportamo-nos não só, nem principalmente aos preceitos de natureza orgânico-formal que condicionam a produção legislativa nesta matéria, v. g., a eventual exigência da forma de lei ou a reserva de competência da assembleia legislativa. Reportamo-nos, para além disso e sobretudo, aos preceitos de índole material ou substancial através dos quais se recorta a Menschenbild e a Weltanschaung que a Constituição propõe ao legislador e pelas quais este deve alinhar em matéria de criminalização, descriminalização ou imposição de coimas. É, por exemplo, a partir de princípios como o do respeito da dignidade humana, da liberdade (maxime de crença ou de religião), da igualdade e do Estado de Direito, que a doutrina alemã tem vindo recentemente a fundamentar os programas de descriminalização. Tem sido, v. g., em nome da dignidade humana que se tem sentido a necessidade de restringir o recurso ao gravame da pena criminal a certas lesões de bens jurídicos de reconhecida importância ético-social. (págs. 117/118).
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Assinalam também Figueiredo Dias (O Movimento da Discriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, in Jornadas de Direito Criminal, o Novo Código Penal Português e Legislação Complementar. C.E.J., 327) e Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, 1997, Parte Geral, I, 140 e 141) que propõem para a distinção entre os ilícitos criminal e o de mera ordenação social o critério da relevância ou irrelevância ética das condutas, ou seja, um critério repousante em características materiais ou qualitativas, não sendo, pois, um critério meramente formal.
3. Neste contexto, ser-se-á levado a concluir desde logo que, do ponto de vista de congruência, não existe qualquer vício lógico quando uma norma ou um seu determinado sentido interpretativo conduzam a que a extinção da responsabilidade criminal por ela ditada não implique necessariamente a extinção da responsabilidade contra- -ordenacional.
Afirma, porém, a recorrente que uma interpretação em tal sentido seria violadora dos 'princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, entre outros, aflorados no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição'.
O normativo constitucional apelado pela impugnante, como se sabe, encontra-se inserido na Parte III - Organização do poder político - Título IX - Administração Pública da Lei Fundamental, nele se contendo o comando de harmonia com o qual os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
Esse normativo, como é bom de ver, consagra princípios constitucionais dirigidos às relações administrativas, ou seja, tal norma visa as relações estabelecidas entre a Administração Pública e os Administrados, e, no que ora releva, ao estatuir o respeito pelos transcritos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, visa especificamente:-
- 'salientar a vinculação da administração pública, que, nas relações com as pessoas físicas, deve adoptar igual tratamento', pelo que, em
'termos negativos, o princípio da igualdade proíbe tratamentos preferenciais' e,
'em termos positivos, obriga a Administração a tratar de modo igual', apontando ainda o princípio da igualdade 'para o princípio da autovinculação da Administração, estritamente associado ao princípio da imparcialidade'; .
- tornar 'claro que no exercício de poderes discricionários não basta que a Administração prossiga o fim legal justificador da concessão de tais poderes; ela deve prosseguir os fins legais, os interesses públicos, primários e secundários, segundo o princípio da justa medida, adoptando, dentre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins e prosseguir esses interesses, aquelas que impliquem menos gravames, sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados';
- 'a necessidade de a Administração pautar a sua actividade por certos critérios materiais ou de valor, constitucionalmente plasmados, como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana (...), o princípio da efectividade dos direitos fundamentais (...), sem esquecer o princípio da igualdade e da proporcionalidade' (em itálico, as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 924 e
925).
Ora, o objecto do vertente recurso, e como não poderia deixar de ser, é uma dada norma e não qualquer decisão concreta destinada a regular uma determinada relação jurídico-administrativa, sendo que, de outra banda, o normativo em análise não tem por finalidade estatuir, quer sobre aquela relação, quer sobre a conferência de poderes à Administração Pública nas suas directas relações com os administrados.
3.1. Poderia, contudo, dizer-se que as referências doutrinais e jurisprudenciais que a recorrente faz, nomeadamente, ao princípio da igualdade, não se reportavam ao contido no artigo 266º, nº 2, da Constituição, mas a esse mesmo princípio enquanto corporizado no seu artigo 13º.
Ainda que assim fosse, não se lobriga que este preceito consagrador de um princípio geral dos direitos e deveres fundamentais seja beliscado pela norma em questão.
Efectivamente, tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é
'sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental -,ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio
(Willkürverbot)' (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o 'princípio da igualdade (...) impõe se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional' (verbi gratia, Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de
13 de Fevereiro de 1997).
Pois bem.
Tendo em conta o que acima se referiu, seja na caracterização diferencial entre o ilícito criminal e o ilícito contra-ordenacional, seja no que tange à dissemelhança entre os elementos subjectivos de um e de outro dos ilícitos que aqui se enfocaram, ser-se--á levado a concluir que se trata de realidades muito diversas, pelo que, em face dessa diversidade, o Diploma Básico não imporia ao legislador (ou ao intérprete aplicador da norma ínsita no artº 3º da Lei nº 51-A/96) que viesse a adoptar a mesma solução para um e outro quando decidisse regular os efeitos advenientes de um pagamento voluntário da obrigação tributária.
Aliás, se se atentar em que, numa situação na qual o legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a devida prestação, aquele o não fez num período muito dilatado no tempo, isso pode constituir um primeiro indício da plausibilidade de instauração de um auto de notícia com vista a averiguar se o crime de abuso de confiança fiscal se desenha, é explicável que, perante o espontâneo pagamento da dívida ou perante uma manifestação de vontade de onde se extraia a intenção do tributado em vir a proceder a esse pagamento, aquele primeiro indício fique sobremaneira abalado em termos de se não justificar a abertura do auto de notícia ou de prosseguir nas averiguações, justamente pela circunstância de o pagamento ou a manifestação da intenção de pagar, ao menos em sede de primeira aparência, se não apresentar como compatível com a intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial (cfr., o artº 26º do RJNIFA, cujo âmbito de aplicação não abrange o ilícito contra-ordenacional de falta de entrega de prestação tributária, o que se compreende porque, impondo-se o pagamento atempado da obrigação tributária, o intuito da previsão desse ilícito
é, precisamente, o de punir com coima quem adoptou um comportamento que conduziu
à falta de cumprimento pontual daquela obrigação, sem, no entanto, a respectiva vontade ser iluminada pelo desiderato de obtenção de uma vantagem patrimonial própria ou alheia).
III
Perante o exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 12 de Abril de 2000 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa